Viver a cegueira dentro de outra cegueira

A pandemia tirou-lhes a sua visão, o toque. Alguns dizem ser constantemente repreendidos, outros já arranjaram defesas. O SOL revela as dificuldades que cegos e amblíopes vivem todos os dias com a covid-19. 

Sai de casa, sem bengala, às vezes sozinha, outras vezes acompanhada pelos três filhos. Tem 95% de incapacidade de visão. Se já era difícil viver com o facto de não ver praticamente nada, com o surgimento da pandemia as dificuldades aumentaram de forma significativa para Teresa Vaz, mulher, mãe e presidente e fundadora da Associação de Apoio à Informação a Cegos e Amblíopes (AAICA). Não poder usar tanto o tato para mexer nas coisas – um dos cinco sentidos que predomina na vida dos deficientes visuais – tem sido um dos maiores problemas. "Tenho especial cuidado com isso, porque a minha tendência é pôr a mão em tudo: no corrimão, nos produtos de supermercado para ver o que são…", conta ao SOL. 

Quando sai à rua acompanhada tem sempre o alerta constante dos seus filhos. "Oiço muitos berros vindos deles. Mãe, não mexas. Mãe, está quieta, não toques nisso. Eles estão sempre nisto. É horrível", admitiu Teresa Vaz. No entanto, o pior talvez seja quando entra em estabelecimentos comerciais. Como não usa bengala, os funcionários não percebem que tem baixa visão. Por isso, é muitas vezes chamada à atenção para não tocar nas coisas ou até mesmo para cumprir o distanciamento físico de segurança. "Respondo-lhes logo para me darem uns olhos, porque assim já vejo. Eu não consigo ver diferenças de espaço para cumprir a distância de segurança. E, como me aventuro sem bengala, as pessoas acham que sou normal", sublinhou, confessando até que, por vezes, tem de adotar estratégias para não a "chatearem" tanto. "Às vezes coloco um cartaz no peito a dizer que tenho baixa visão – a amarelo e com letras pretas. E já não gritam comigo. Gosto de ser autónoma. Nesse cartaz escrevo que tenho baixa visão. E assim as pessoas já têm mais cuidado. É que eu só consigo ver mesmo em cima dos objetos. Não vejo, por exemplo, os acrílicos que são muito usados agora. É horrível", atirou.

Para entrar nos estabelecimentos, usa sempre máscara. Mas só o facto de o toque ter de ser limitado tem trazido perturbações psicológicas. "Temos uma série de desvantagens que não tínhamos antes. Ou seja, vivemos à mesma com a nossa cegueira dentro de outra cegueira. E esse é o meu maior choque enquanto pessoa com baixa visão. É viver uma permanente cegueira ou uma cegueira dentro de outra. É um bocado isso que acontece connosco", desabafou Teresa Vaz, explicando que agora tem de ter ajuda de outras pessoas. "Agora precisamos de ter alguém que nos grite", acrescentou, não perdendo, no entanto, o ânimo. "Para dizer realmente o que vejo, a minha capacidade é de 0,1 num olho e 0,5 noutro. Vejo mesmo muito pouco, mas eu aventuro-me, salientou.

Já Vítor Graça, que é cego, tal como a sua mulher, e, por isso, precisa de usar bengala revela outras dificuldades. O presidente da Associação Promotora do Ensino dos Cegos (APEC) tenta relativizar o novo normal para os cegos imposto pelo aparecimento da covid-19 em Portugal – como por exemplo ter de andar de máscara até mesmo na rua. "Claro que há situações em que temos de ter mais cuidados. Quando ando sozinho tenho de andar com máscara na rua, porque não tenho a perceção do espaço. Não sei se as pessoas estão afastadas de mim ou não", sublinhou ao SOL, explicando que tanto ele como a sua mulher colocam sempre luvas antes de sair de casa. "Saímos com a maior proteção possível, porque a tendência é tocar nas coisas. Mas evitamos tocar", adiantou.

E para que não aconteça o mesmo que acontece com Teresa Vaz – alertas constantes dos outros –, leva sempre consigo a sua bengala para que não haja dúvidas de que é cego. "Ao usar a minha bengala, as pessoas percebem. Mas neste aspeto existe um grande problema. Muitos cegos e pessoas com baixa visão têm vergonha de assumir aquilo que são. Se eu for na rua com alguém, as pessoas não percebem que eu sou cego, porque tenho o apoio dessa pessoa e não da bengala. E devíamos definir as nossas limitações, mas muitos não querem porque não estão preparados. As pessoas têm vergonha de serem diferentes, de serem excluídas. E é complicado", alerta Vítor Graça.

 

Covid-19 retirou ajuda a quem mais precisa 

Com o encerramento das associações de apoio aos cegos desde março, as pessoas com deficiência visual tiveram de quebrar a rotina. Não houve pessoas a ter formações e até aquelas que, por algum motivo, deixaram de ver não tiveram a oportunidade de se deslocar às associações para receber apoio. 

Que o diga Vítor Graça. "A covid-19 afetou muito as instituições. Aqui, na APEC, estávamos a atender pessoas, a dar formação, de mobilidade e outras áreas. E, com a covid-19, as pessoas deixaram de vir aqui. Algumas pessoas que precisam de aprender, porque deixaram de ver, não têm como vir aqui e ter essa informação", reforçou, falando até das famílias dos cegos que muitas vezes os colocam de parte. E foi com as famílias que passaram todos estes meses de confinamento. "Muitos dos cegos também nem sempre estão integrados. Às vezes, nem as famílias estão preparadas para incluir. Quantas vezes as pessoas cegas vão a uma reunião familiar e são colocadas de parte. Às vezes é inconsciente, mas muitas vezes são mesmo postas de lado", confessou. 

 

Outro problema para os cegos em tempo de covid-19 

As orientações dadas pela Organização Mundial de Saúde e que passam em muitos canais de televisão não são dobradas e os cegos, assim como as pessoas com baixa visão. Sem perceber a língua inglesa, Teresa Vaz explica que é impossível perceber as recomendações, que nesta altura de pandemia se tornam muito importantes.

"Outra coisa horrível é o facto de eu não conseguir assistir a um telejornal quando um estrangeiro vai falar sobre a covid-19. Não consigo ler as legendas. Nem eu nem os cegos. Ainda por cima numa altura como esta, em que temos de ter toda a informação atualizada. Vão falar em inglês e não leio as legendas. Nem há sequer qualquer tipo de dobragem. E isso está na lei portuguesa", atirou.

O SOL ainda tentou contactar a Associação dos Cegos e Amblíopes de Portugal (ACAPO), que não quis prestar quaisquer esclarecimentos por se encontrar sem direção até 10 de setembro. 

Já o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social (MTSSS) disse não ter recebido qualquer exposição por parte de cidadãos com deficiência visual ou de associações nesta altura de pandemia. "O gabinete da senhora secretária de Estado da Inclusão das Pessoas com Deficiência e o Instituto Nacional para a Reabilitação, I.P., organismo da administração central com competência em matéria da área da deficiência, não receberam qualquer exposição por parte de cidadãos identificados como tendo deficiência visual ou organizações representativas desta área da deficiência", começou por referir, adiantando que "atendendo à emergência de saúde pública de âmbito internacional declarada pela OMS, diariamente foram tomadas medidas excecionais, dirigidas à população em geral e às pessoas com deficiência e suas famílias, onde naturalmente se incluem as pessoas com deficiência visual".

 A terminar, o gabinete da secretária de Estado da Inclusão das Pessoas com Deficiência, Ana Sofia Antunes, deixou uma garantia: "Não obstante as reais preocupações apresentadas que conhecemos e entendemos ser da maior pertinência, reiteramos que o Governo atualmente se encontra a trabalhar em diversas medidas políticas e programas para a área das acessibilidades físicas e comunicacionais".