Beirute, três vezes invisível

A cada dia que passa uma cidade muda, como uma pessoa também muda, mais a mais quando ocorre tal devastação, com o seu cortejo de ruínas materiais e imateriais. Mesmo que a reconstruam, mesmo que algum dia, porventura, a ponham limpa e direita, a ferida ficará, a lembrança, a dor, a cicatriz. 

Para o Miguel

 

Beirute esteve desde sempre no meu catálogo de cidades invisíveis, e assim continuou, ao contrário de outras que, entretanto, pude visitar ou mesmo viver um pouco. Invisível no sentido de imaginada e querida, embora sabendo que real, mas qualquer cidade desejada tem sempre um pouco da invisibilidade que Calvino genialmente cunhou, na sua criação literária superior sobre os relatos de viagem que Marco Polo faz a Kublai Khan, imperador dos Mongóis, um homem melancólico e consciente de que o seu poder ilimitado não contaria afinal assim tanto, sobretudo num mundo a caminhar em direção à ruína. E, então, um viajante visionário fala-lhe de cidades impossíveis, leva-o em sonho, em superação, em metáforas, em crescimento, em demanda imaginária mas poderosa, invisível mas alimentícia. Todos temos um pouco da sua melancolia, todos vivemos num mundo que sempre caminha para uma certa ruína, e todos sonhamos e desejamos – entre muito mais – cidades. Beirute sempre esteve nesse meu horizonte, os anos foram passando, não passei da impossibilidade à possibilidade, embora sabendo que, como sempre acontece, o que acaba por se visitar ou viver é diferente do que se imaginou e desejou. Mas assim foi, ou, mais correto, assim não foi. E agora já é tarde para ir mais longe do que o Mongol nostálgico ouvindo Marco Polo.

 

É tarde porque Beirute se (me) tornou agora – para mim e para tantos – invisível uma segunda vez, pois após a destruição recente e bruta ela é outra, não é e provavelmente nunca mais será a mesma. A cada dia que passa uma cidade muda, como uma pessoa também muda, mais a mais quando ocorre tal devastação, com o seu cortejo de ruínas materiais e imateriais. Mesmo que a reconstruam, mesmo que algum dia, porventura, a ponham limpa e direita, a ferida ficará, a lembrança, a dor, a cicatriz. E isso sempre fará dela coisa diversa, cidade diferente. Uma outra forma de vida, até porque para sempre marcada pela recordação deste corte súbito e violento no seu devir. Uma outra cidade será, seja para quem apenas a imaginou e desejou, como eu, seja para quem a visitou e a viveu. Sobretudo para quem a viveu, a Beirute que vier não será mais a Beirute que foi, a que era. Não pode ser. Segunda vez invisível /impossível, portanto.

 

Mas há ainda um terceiro nível de invisibilidade e esse é o mais profundo, o mais importante e o mais doloroso. Trata-se da invisibilidade das perdas e dos sofrimentos individuais. Quem perdeu a vida, a saúde, um membro, um amor, um amigo, uma casa, um local de trabalho, ou ‘apenas’ uma recordação. Sempre que algo assim acontece, e sobretudo com esta dimensão, tendemos a concentrarmo-nos no todo, no efeito de esmagamento da tragédia coletiva, no pathos incaracterístico e sem nomes de Beirute. Mas Beirute não é apenas nome de cidade. Beirute é o nome de cada um que agora perdeu, mais ou menos, mas sempre alguma coisa. Talvez isso seja para a maioria de nós invisível, mas para quem o sofre ou para quem está perto desses é uma visibilidade tão forte que encandeia e quase cega. É essa Beirute que quero colocar aqui e agora no horizonte. Quem dera que fosse impossível como as cidades de Marco Polo. Mas infelizmente a pena inspirada de Italo Calvino não passou por ali.