Roteiro de verão, Viagem de Memória

As viagens de Leonor Xavier têm o sabor deste e do outro lado do Atlântico e levam-nos num périplo entre as águas geladas do Estoril, o infinito de Búzios, os agostos em Melides ou o mar fundo do Funchal.

Melhor diria eu Memória em vez de Roteiro, já que foram variados os meus caminhos de agosto, ao longo de uma vida que tem muito o que contar. E nesta fase em que as lembranças do passado dão sabor às fragilidades do presente, assisto aos movimentos de verão sem desgosto por renunciar às praias, às travessias de areia, às subidas e descidas de degraus e ladeiras, aos cuidados em ravinas, às passagens por rochas escorregadias. Acidentados, cansativos e até perigosos foram muitas vezes os percursos,  até alcançarmos o poiso perfeito entre marés, o desejado espaço, o bom abrigo. A natureza era então forte e selvagem, e nessas jornadas aventurosas dos verdes anos, a tentação do diferente merecia qualquer esforço, exigia resistência e imaginação.  

Muito se tem falado dos velhos, os mais pobres e esquecidos, por estes tempos mais confinados, sem direito a humanas doçuras, sem beijos e abraços de presença ou despedida. São-nos mostrados esses que sobrevivem isolados nas suas doenças e dores, postos fora dos tons dos dias, sofredores destes longos tempos de verão, que parecem nunca mais acabar. Vejo estes velhos exibidos nas notícias de jornal, nas imagens de televisão, nos dissídios entre autoridades e hierarquias. Compenso-me assim nesta fase da vida e como disse, em roteiro de verão que é suculenta viagem interior. A memória é generosa e fértil em etapas, contextos e circunstâncias. No tempo presente, desconheço novas estradas e destinos, apoios de praia, salvação de nadadores, não sei aconselhar o onde e como ir, o onde ficar e comer. Mas posso sugerir os temperos da variedade, da surpresa, dos ambientes de praia e mar que experimentei e vivi.   

Da minha primeira infância, revejo os retratos com os pais e os avós, da adolescência releio os diários, relembro os amores primeiros, os entusiasmos, as cumplicidades, as confidências segredadas. O cinema ao ar livre, a patinagem, os gelados do Santini, as gincanas, as aventuras de praia, as tardes de pinhal. Sinto até hoje a densidade fria do mar no impulso do corpo inteiro, a furar a onda, a segurar a respiração, a avançar até longe, imaginando os outros lados do mundo. Até aos primeiros anos de casada, o cenário era o Estoril, os ventos de agosto, as tardes arrefecidas, os agasalhos a segurar o frio das noites. Depois, foi Sintra a novidade dos meus verões. Às vezes o Guincho sem vento e sempre, a Praia Grande, as manhãs em face do imenso horizonte de mar, a extensão de espaço plano na maré vazia, as brincadeiras dos filhos pequenos, nas enormes redondas piscinas feitas de areia molhada. As tardes de ar da serra, as rodas de amigas em conversa de tomar conta, quando todas acreditávamos na felicidade dos meses de verão a cada ano repetidos e renovados, enquanto as transformações se iam anunciando, distantes do dia a dia que era aquele, o nosso que não falava de política, dinheiro, religião.  

A grande mudança para o Brasil foi o inverno em vez de verão, a primavera que era outono, a gigantesca cidade de São Paulo em que um dia tinha as quatro estações, em temperaturas de calor e arrepio de corpo. O Guarujá era a grande praia, plana, lisa, envolvida em prédios e casas luxuosas, esplanadas de praia, menus de siri e camarão, a água do mar escura, a distância de chão andado até chegar fora de pé. A luz do dia a acabar cedo, de repente, sem entardecer, e de carro, a subida da Serra do Mar até á cidade, pela auto estrada dos Bandeirantes, oito pistas de um e outro lado, desmedida era essa subida de trânsito demorado, quase sempre. Foi o Guarujá, foi São Sebastião, foram algumas experimentações de praia, até de ilhas, nesses primeiros anos. Diferente o mar, desalinhadas as ondas, traiçoeiras as correntes já a seguir, no Rio de Janeiro. Copacabana nunca, Leblon às vezes, Ipanema sempre. Rituais de praia, não existia despir ou vestir adereços, nada mais que chave de casa, pés quase descalços, um pouco dinheiro vivo trocado para um chá de mate, um suco de limão. Os filhos pequenos, as adolescências depressa. 

E Búzios. Aí, o infinito do mar macio, os peixes nas transparências da água, as braçadas de nadar, seguidas, regulares, ordenadas para a distância. A harmonia entre ambiente e corpo, o sentido dionisíaco da vida, a diversidade de personagens, nacionalidades, escolhas, experimentações. Ou os dias de vento e desassossego de ondas. Sem cheiro a maresia, nunca a maresia se deixa sentir no Brasil. Nem no Rio, nem em Recife, nem em Fortaleza, nem em Salvador. Aí, os caminhos de viagem interior passavam pelas saudades do mar português.

Já no final dos anos oitenta, o regresso a Lisboa. As praias da costa da Caparica, os agostos de Melides, de Vila Nova de Milfontes, de vários Algarves, da Ericeira, do Estoril, neste tempo em que as distâncias não existem, e as semanas de verão disparam em destinos, em alternativas, em  absoluta mobilidade. O mar encorpado, escuro e transparente de São Miguel. O mar quieto da Terceira. O mar feito piscina do Faial. O mar fundo do Funchal.  Tudo acontecido neste mundo atual vertiginoso, em que doce, para mim, é a mistura e memória dos passados que vivi.