Costa ganhou a batalha, mas não a guerra

Polémicas sucessivas com os médicos sobre o lar de Reguengos revelaram a tensão, mas também querelas antigas. No PS, a percepção é a de que o primeiro-ministro minimizou danos.

Foram duas semana difíceis para o Governo. E tudo à volta do mesmo assunto: o surto de covid-19 num lar em Reguendos de Monsaraz. Que matou 18 pessoas. Primeiro, uma entrevista da ministra do Trabalho, Ana Mendes Godinho, em que reconhecia que não tinha lido um relatório arrasador sobre o caso, feito pela Ordem dos Médicos. Acabou por o ler, mais tarde, mas obrigou o primeiro-ministro a defendê-la e a encerrar o assunto. Porém, na semana seguinte, esta que termina, foi António Costa quem protagonizou nova polémica sobre o tema. O primeiro-ministro disse, em entrevista ao Expresso, que a Ordem dos Médicos não tem competências para fazer auditorias como a que fez em Reguengos de Monsaraz. 

O que lhe valeu críticas. Mas  um vídeo que circulou nas redes sociais, de um off the record com os jornalistas que o tinham entrevistado, onde são audíveis as palavras "gajos" e "cobardes" dirigidas por António Costa em relação a médicos no caso de Reguengos de Monsaraz, ditou que esta semana  acabasse a receber a Ordem dos Médicos. Foi o próprio bastonário que pediu a audiência para desanuviar o clima de tensão. Pediu-o na segunda-feira e São Bento foi célere a responder: marcou-a para o dia seguinte, às 09h00. Mas Costa não os recebeu sozinho. Chamou a ministra da Saúde, Marta Temido, e o secretário de Estado António Lacerda Sales (apreciado pelos médicos e uma figura respeitada no PS) para o encontro. Que deveria ter selado o fim da tensão. No final, as declarações aos jornalistas não deram espaço a perguntas, mas o primeiro-ministro realçou que os mal-entendidos tinham sido esclarecidos. "Acho que testemunhou de forma inequívoca o meu apreço e consideração pelos médicos portugueses e pela generalidade dos profissionais de saúde", acrescentou o primeiro-ministro , virando-se para o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães.

O caso estava encerrado para São Bento. Costa ganhou a batalha, segundo  vários socialistas ouvidos pelo SOL. E todos convergiram na ideia de que apaziguou o problema, com um custo político controlado, mas "saiu-se bem".

Mas, o problema com a classe médica está resolvido? Não está. As causas são anteriores a este episódio e resultam, em parte, da animosidade que existem entre médicos e a tutela: Marta Temido. A governante vem do setor da administração hospital, e fontes conhecedoras da área lembram ao SOL que médicos e administradores hospitalares raramente se dão bem. "É algo antigo", lembra ao SOL uma fonte do setor.  Já António Lacerda Sales, secretário de Estado da Saúde, é um médico (socialista)  bem visto pela classe. Mais, no PS há essa perceção: a de que o político e médico tem mais capacidade para garantir consensos por comparação com a ministra da Saúde.

Contas feitas, Costa resolveu uma polémica, mas não sanou um problema. Há até quem lembre, aliás, que, no passado, também José Sócrates, então primeiro-ministro, também teve uma guerra com juízes quando lhes quis reduzir as férias judiciais. Isto apesar dos dois exemplos não serem comparáveis. Seja como for, neste caso, o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, quis pressionar António Costa para o diálogo. Mas o processo não lhe terá corrido tão bem como correu ao primeiro-ministro no final de audiência em São Bento.  

As estruturas sindicais não ouviram a palavra "desculpa" do primeiro-ministro e Miguel Guimarães acabou por enviar aos seus pares uma carta (após a audiência) a assegurar que o chefe de Governo não foi fiel nas palavras públicas ao que disse  dentro da reunião. Na versão do bastonário, Costa "não revelou a mensagem de retratamento da mesma forma enfática que aconteceu na reunião", escreveu Miguel Guimarães. Nas conversas entre os profissionais de saúde, o resultado da audiência acabou por ditar alguma contestação ao bastonário. Mais, houve quem lembrasse ao SOL que a carta do bastonário não tinha a assinatura do presidente do Conselho Regional do Norte da Ordem dos Médicos, António Araújo (irmão do ex-secretário de Estado-adjunto e da Saúde, Fernando Araújo, no anterior Governo socialista).

Já entre socialistas há quem recorde que Miguel Guimarães disse, no Parlamento, a 4 de dezembro que a Ordem "não tem poderes de fiscalização". Na altura, o bastonário respondia a questões sobre um caso que chocou o país: o de um bebé que nasceu em Setúbal com malformações que não foram detetadas durante a gravidez.  Por outro lado, uma fonte socialista lembra ao SOL que um desabafo feito numa conversa informal do primeiro-ministro com jornalistas contradiz, de alguma forma, o que o próprio António Costa aconselhou no passado ao seu Governo. Quando o então ministro da Cultura, João Soares, ofereceu umas "bofetadas" virtuais na rede social Facebook a colunistas do Público (e foi obrigado a demitir-se), o chefe do Executivo fez questão de lembrar que "enquanto membros do Governo, nem à mesa do café podem deixar de se lembrar que são membros do Governo". E terá feito, aliás, um discurso propedêutico à sua equipa para evitar dissabores futuros.

No rescaldo da polémica, que opõe Costa à Ordem dos Médicos, António Capucho, antigo militante do PSD, diz ao SOL que "era fundamentalmente preciso um esclarecimento maior. Prova disso é que a Ordem dos Médicos já veio a terreno dizer que aquilo que o senhor primeiro-ministro transmitiu à comunicação social, sem ter dado oportunidade a perguntas, fica longe daquilo que o senhor primeiro terá dito diretamente à Ordem dos Médicos, entre portas e entre muros. E, portanto, não há esclarecimento nenhum. Dizer que estão ultrapassados os mal-entendidos. Mas quais mal-entendidos? Não sabemos. Não há pedido de desculpas, não há reconhecimento de culpa da parte do Governo e acho que ficou tudo em águas de bacalhau".

Esta semana, o  antigo bastonário da Ordem dos Advogados José Miguel Júdice afirmou no seu espaço de comentário na SIC Notícias "As Causas" que todo este caso pode ser revelador de um "descontrolo emocional, que revela um misto de arrogância, violência, insensatez, cansaço e aparente grave falta de rigor" do primeiro-ministro. Por seu turno, João Soares, ex-deputado socialista, afirmou na RTP3: "Se o que o primeiro-ministro disse é o que foi transposto num órgão de comunicação social escrito, embora online, não vejo  nisso nada  de particularmente grave. Bem pelo contrário. É uma expressão de um desgosto em relação àquilo que é a manipulação… Eu lamento profundamente que estejamos a transformar esta tragédia que aconteceu em Reguengos numa querela político-partidária que não tem nenhuma razão de ser". E defendeu que a situação nos lares é insustentável e que  "é preciso encontrar gente que se apaixone pelo trabalho que vai fazer na área social". Contactado pelo SOL, João Soares não quis acrescentar mais sobre este caso.

Do ponto de vista partidário, o BE pediu o fim das picardias, o  PSD exigiu conhecer os relatórios sobre Reguengos de Monsaraz, enquanto o CDS sintetizou que "o socialismo faz cada vez pior à saúde da nossa democracia", depois de já ter pedido a demissão da ministra do Trabalho. Já André Ventura, do Chega, foi mais longe para dizer que Costa "dificilmente tem condições para se manter no cargo". A Iniciativa Liberal classificou o caso de "inaceitável".
Do lado de Belém,  Marcelo Rebelo de Sousa pediu união de esforços – de "mãos dadas" – a todos, porque os portugueses não compreenderiam esta crispação. Mais, exigiu que se reforce a coordenação entre Ministério da Saúde e do Trabalho para enfrentar os problemas nos lares.