Para inglês ver…

De que valem as leis se depois não há meios para fiscalizar e/ou autoridade reconhecida para as aplicar?

por José Manuel Azevedo (Economista)

Após longo período de domínio do mercado de escravos, em especial de origem africana, a Coroa britânica proibiu a prática da escravatura em início do século XIX (em 1807). Aproveitando-se da sua supremacia marítima à época, o reino determinou a respetiva abolição em todas as suas colónias cerca de 25 anos mais tarde, tendo até obrigado o Brasil a firmar um tratado de abolição do tráfico em 3 anos, o que de facto não sucedeu. Com a intensa pressão britânica sobre a Corte portuguesa, que havia entretanto chegado ao país, foi depois promulgada a ‘Lei Feijó’, que declarava livres os africanos negros desembarcados em portos brasileiros. O sentimento geral era, contudo, que tal lei não seria respeitada, o que levou a circular na Corte o comentário de que o Regente Feijó fizera uma lei ‘para inglês ver’.

 

Porquê todo este introito?

• O Ministério da Saúde constituiu há cerca de dois meses um Gabinete Regional de Intervenção para a Supressão da covid em Lisboa e Vale do Tejo. Ninguém terá coragem para contestar a decisão. Na realidade, contudo, com o número de recursos disponíveis para detetar e, principalmente, identificar cadeias de contágio, sem a prometida aplicação de rastreio (foi apenas no dia 11 de agosto publicado o decreto que a oficializa), os casos na região não têm dado, infelizmente, sinal claro de estabilizar, mesmo que as autoridades de saúde afirmem o oposto;

• Legislação diversa, como por exemplo sobre o layoff simplificado, determina os requisitos a cumprir para que as empresas ou os profissionais independentes com trabalhadores a cargo possam beneficiar do apoio extraordinário visando a manutenção dos postos de trabalho. Analisando-os em pormenor, será assim tão simples demonstrar que a instituição A ou B está em condições de lhes aceder? Um profissional independente, cuja remuneração será em regra variável, não terá impacto significativo se a sua atividade se reduzir em 30%, por exemplo, e não nos 40% ou mais que o regime estatui? 

• Voltando às moratórias concedidas aos inquilinos, alguém especificou se os dispositivos estabelecidos na Lei 4-C/2020 (rapidamente redigida e promulgada, admito) se aplicavam a arrendamento de segunda habitação? Por que razão foi necessária a publicação da portaria nº 91/2020 do Ministério das Infraestruturas e Habitação para se inferir, repito, inferir, que esse tipo de arrendamento não pode beneficiar do regime de mora? E só aí se chegou quando foi necessário identificar os requisitos a que obedece a comprovação da perda de rendimentos dos inquilinos… 

• Outro exemplo: o código dos contratos públicos, transposição para a legislação nacional de diversas Diretivas Europeias do Parlamento Europeu e do Conselho,  precisava de ser tão exigente, a ponto de haver requisitos nela não estipulados e que Portugal contemplou no seu ordenamento jurídico? É o próprio CCP que refere que "o seu conteúdo vai além da mera reprodução das regras constantes das referidas diretivas". Com o fundamento da desejada, compreendida e legítima promoção da transparência e eliminação da corrupção, não acabámos por conceber um ‘mastodonte burocrático’ que depois tão habilmente sabemos contornar?

• Muito se falou da ida ou não de Mário Centeno para o cargo de Governador do Banco de Portugal. Como se sabe, já ocupa a posição há cerca de um mês. De que valeram então os pareceres desfavoráveis (exceto do PS) expressos em audiência parlamentar a que foi sujeito o ‘Ronaldo das Finanças’?

•  As nossas praias são local privilegiado escolhido pelos nacionais e pelos turistas estrangeiros que nos visitam para passar férias. Um conjunto de regras foi estabelecido pelo Governo para a respetiva utilização, podendo à partida dizer-se que tais regras fazem sentido. Contudo, serão exequíveis? Pergunto: como é de facto controlada a lotação das praias, em especial das de maior dimensão, que têm muitas vezes diversos pontos de acesso? Afirma-se serem interditas as atividades desportivas com 2 ou mais pessoas. Quem impede que 4 ou 5 “deem uns toques” de voleibol ou mesmo que joguem uma ‘futebolada’ à frente dos banhistas? 

• Finalmente, sobre outras regras, quem evita que clientes entrem sem máscara por uma loja,  enquanto outros são atendidos? 

Garanto-vos que já presenciei situações como estas últimas. Quando será o egoísmo substituído pela sã consciência individual e coletiva? De que valem as leis se depois não há meios para fiscalizar e/ou autoridade reconhecida para as aplicar? Lembram-se da ‘Lei Feijó’…?