Hotel Ruanda. A queda em desgraça do herói

Paul Rusesabagina, que salvou centenas de pessoas durante o genocídio do Ruanda, em 1994, está detido, aos 66 anos, acusado de rapto, fogo posto e homicídio. Em tempos saudado como um herói, subitamente passou a ser um ‘cabecilha do terror’ aos olhos do regime de Paul Kagame, de quem era um feroz crítico.

Quem viu o filme Hotel Ruanda (2005) dificilmente pode esquecer as cenas finais, quando uma caravana da ONU com mais de 1200 refugiados, até então abrigados no Hôtel des Mille Collines, se depara com uma multidão no meio da estrada. Urravam de ódio, marchando com as machetes a arrastar pelo chão, enquanto disparavam para o ar. Era a infame Interahamwe, uma milícia de jovens extremistas hutus que nesse ano de 1994 protagonizava o genocídio do Ruanda, em que foram assassinadas cerca de 800 mil pessoas, sobretudo tutsis e hutus moderados. «Tragam as crianças para aqui», pedia o nosso herói, Paul Rusesabagina, subgerente do Mille Collines, enquanto a sua família, aterrorizada, se escondia no fundo do camião. De súbito, no meio das árvores, surgem os rebeldes. Fazem mira e disparam sobre a Interahamwe, que corre em debandada, abrindo caminho para a caravana de Rusesabagina, como o Mar Vermelho face a Moisés.

As voltas que a vida dá. Hoje, aos 66 anos, o herói do Hôtel des Mille Collines, galardoado pelo seu trabalho humanitário, é acusado de «fundar, liderar e patrocinar grupos violentos, armados e terroristas». Está sob custódia policial no Ruanda, para gáudio do atual Presidente, Paul Kagame, líder dos rebeldes que salvaram Rusesabagina, a Frente Patriótica Ruandesa (FPR). É que Kagame agarrou o poder logo após o genocídio e nunca mais o largou: foi reeleito em 2017, com uns inacreditáveis 99% dos votos. Já Rusesabagina viria a tornar-se um dos seus mais amargos críticos, após ser catapultado para o estrelato a nível mundial.

Genocídio

Mais de 25 anos depois do genocídio, o Hôtel des Mille Collines, que ostenta quatro estrelas, bem no coração de Kigali, continua a ser um lugar de luxo, inacessível à maioria dos ruandeses. Mesmo com a quebra de preço devido à pandemia, o custo de uma noite continua a rondar os cem euros, num país onde 40% da população vive com menos de dois dólares (equivalente a 1,68 euros) por dia, segundo o Banco Mundial. As estatísticas oficiais do Ruanda pintam um cenário muito mais solarengo, mas foram manipuladas pelo Governo de Kagame em 2019, verificou o Financial Times.

No entanto, em abril de 1994, com a clientela habitual do Mille Collines – expatriados ricos, diplomatas, jornalistas, empresários ruandeses e poderosos generais – em fuga ou demasiado ocupada a cometer um genocídio, o hotel abriu portas a todos. «Havia pessoas a dormir em todo o lado», recordou Zozo, que em 2005 ainda trabalhava como concierge na receção. «Não havia água. Era sujo aqui. Na cidade havia armas a disparar – bum, bum, bum – e havia fumo no ar», contou ao Guardian.

Nos 113 quartos do Mille Collines, nos corredores dos seus cinco andares, no elegante jardim em redor da piscina, num bar cheio de bebidas importadas, tão escassas, aglomeraram-se 1268 pessoas, incluindo uns 700 tutsis, caçados pelos génocidaires, os extremistas hutus que chamavam aos tutsis inyenzi, ou ‘baratas’, em kinyarwanda. Acusavam-nos de serem todos espiões, uma quinta coluna dos guerrilheiros tutsis da FPR, que invadiram o país vindos do Uganda. «Em junho foi terrível. A eletricidade foi cortada, o gerador não estava a funcionar», não esqueceu Abias Musonera, então responsável pela manutenção. «As pessoas arrancaram os arbustos lá de fora, cortaram as portas do hotel para fazer lenha. Acenderam fogos para cozinhar, mesmo nos corredores, e fizeram buracos nas carpetes», relatou ao jornal britânico.

No Ruanda do genocídio, onde igrejas e estádios rotineiramente passavam de refúgio a cenários de massacres em massa, o Mille Collines era um raro santuário, muito graças à influência de Paul Rusesabagina, um hutu encarregado do hotel após a fuga dos donos belgas. Durante anos, enquanto subgerente, após estudar hotelaria no Quénia, Suíça e Bélgica, o trabalho de Rusesabagina fora bajular diplomatas, políticos e oficiais. Conhecia os seus prazeres secretos e vaidades, sabia que subornos os faziam olhar para o outro lado, memorizara as suas bebidas favoritas, escutara conversas, e não se coibiu de o usar para proteger o hotel. Lá dentro, a mulher, Tatiana, uma tutsi cuja mãe, irmão, cunhada e vários sobrinhos foram mortos no genocídio, vivia aterrorizada, tomando conta dos seus três filhos.

«Este é um charuto Cohiba. Vale 10 mil francos», ilustrou Don Cheadle no início de Hotel Ruanda, onde encarnou o papel de Rusesabagina. «Mas vale muito mais para mim», continuou. «Se eu der a um empresário 10 mil francos, o que é que lhe importa? Ele é rico. Mas se lhe der um charuto Cohiba, direto de Havana, Cuba… Isso é classe».

Em tempos de genocídio, esse cuidado serviu-lhe bem. Durante algum tempo, à custa de subornos a generais, até conseguiu que militares protegessem os portões do Mille Collines, mantido sob cerco, por vezes alvo de tiros e disparos de rockets. Lá fora, o massacre continuava, casas ardiam e as estradas enchiam-se de cadáveres. Na RTLM, a infame rádio supremacista hutu, que divulgava listas de nomes tutsis destinados ao extermínio, apelava-se à morte de Tatiana e do traidor Rusesabagina.

O estatuto do hotel como santuário tornou-se tal que até notórios génocidaires decidiram deixar lá a família. Como o padre Wenceslas Munyeshyaka, que presidiu ao massacre de boa parte da sua congregação na catedral Sainte Famille, mas manteve a sua mãe idosa, uma tutsi, no hotel. Ou Robert Kajuga, dirigente nacional da Interahamwe, secretamente filho de um tutsi que arranjara um bilhete de identidade hutu falso, que decidiu esconder os irmãos no hotel de Rusesabagina.

«Cada vez que ameaçavam o hotel, ele ligava aos oficiais do exército, abria as adegas e distribuía o vinho e o champanhe», contou Thomas Kamilindi, um jornalista ruandês que se refugiou no Mille Collines. Fora atraído pela presença de brancos, diplomatas, capacetes azuis e jornalistas internacionais. Pensava que pudessem fazer a Interahamwe pensar duas vezes antes de cometer um massacre enquanto o mundo observava. Quando os estrangeiros partiram, sobrou a proteção de Rusesabagina. «O que o Paul fez foi extraordinário. Ele deu-nos o hotel de borla. Quando a água da piscina acabou, ele mandou uma camioneta buscar mais água, não sei aonde», assegurou ao Guardian, em 2005.

Velhas fraturas

Desde então, o tom quanto a Rusesabagina mudou no Ruanda. Os seus defensores falam baixo, temerosos de ter o destino de tantos outros opositores de Kagame, que tendem a desaparecer ou a serem presos, mutilados e assassinados. Já os acusadores do antigo subgerente são estridentes, acusam-no de negar o genocídio, ligam-no a ataques de guerrilhas extremistas hutus na fronteira com a República Democrática do Congo. Proclamam-no «o cabecilha do terror», como se lia após a sua captura na manchete do jornal New Times, marcadamente pró-regime.

A mudança foi brusca. Depois de anos de Governo de Kagame, em tempos saudado como reformista, apelidado por Bill Clinton como expoente de «uma nova geração de líderes africanos», para muitos, incluindo Rusesabagina, tornou-se cada vez mais claro que Kagame instalara uma nova elite corrupta, saudosa dos tempos em que tutsis governavam o país em nome dos colonizadores belgas.

Na sua autobiografia, An Ordinary Man (2006), em que se focava na sua viagem pessoal, nos seus esforços para salvar vidas face a extremistas hutus, Rusesabagina cometeu o erro de mencionar que as RFP também cometeram atrocidades em massa contra civis hutus, algo bem documentado por grupos como a Human Rights Watch. Talvez o destino do antigo subgerente do Mille Collines tenha sido selado por um parágrafo, que traz à memória as velhas tensões étnicas de um país martirizado. «O Ruanda é hoje uma nação governada por e para benefício de um pequeno grupo de tutsis da elite», escreveu. «Aqueles poucos hutus que foram elevados a altos cargos são geralmente fatos vazios, sem qualquer autoridade real própria. São conhecidos localmente como hutus de serviço ou hutus de aluguer».

Queda em desgraça

Para Terry George, realizador de Hotel Ruanda, foi bizarro assistir à súbita queda em desgraça do herói do Hôtel des Mille Collines, após escutar tantos testemunhos dos seus feitos. «Tive a oportunidade de conhecer o Presidente ruandês, Paul Kagame», escreveu num artigo de opinião no Washington Post, em 2006. «Sentei-me ao lado dele, enquanto ele, a mulher e a maioria do Parlamento do Ruanda assistiam ao filme. Depois, ele inclinou-se para mim e disse que o filme tinha feito muito bem ao expor os horrores do genocídio por todo o mundo. Na noite seguinte passei o filme no Estádio Amahoro para umas 10 mil pessoas. Foi a sessão mais emotiva em que alguma vez estive. Passei quase uma hora a aceitar agradecimentos e parabéns».

Contudo, o próprio Rusesabagina não esteve presente. Nas suas viagens pela Europa e pelos Estados Unidos criticara publicamente Kagame e não se sentira seguro para regressar à sua terra natal. Pouco após ser publicada a sua autobiografia, o Presidente começou a falar em «heróis fabricados» no estrangeiro, a imprensa ruandesa atirava-se ao oportunismo de Rusesabagina e o livro Hotel Rwanda, Or, The Tutsi Genocide as Seen by Hollywood (2008), escrito por um sobrevivente do genocídio e um assessor de imprensa de Kagame, declarava o antigo subgerente do Mille Collines uma fraude, conivente com o regime hutu, que roubava refugiados desesperados e apenas queria salvar-se a si mesmo. Rapidamente surgiram acusações de terrorismo, enquanto muitos testemunhos da bravura de Rusesabagina eram esquecidos ou alterados. Até pelos seus amigos.

«Ele quer destruição. Está a fazer com que ruandeses sejam mortos, a levar o nosso país de volta a tempos negros. Tem de ser responsabilizado», apelou Odette Nyiramilimo, uma médica que sobreviveu ao genocídio refugiando-se no Mille Collines, que viria a ser eleita senadora e ministra de Kagame. Falava ao New Times após a detenção de Rusesabagina mas, em 2005, a sua conversa era muito diferente. «Paul sempre foi uma pessoa muito calma e muito boa no seu trabalho. Durante a guerra manteve-se o mesmo. Ele estava no comando», garantiu na altura Nyiramilimo à revista People.

Outros tinham contas antigas a ajustar, como Pasa Mwenenganucye. Quem viu Hotel Ruanda recordar-se-á dele como Gregoire, o insolente rececionista hutu que aproveita o tumulto para ocupar a suíte presidencial do Mille Collines, regalando-se com cerveja importada e mulheres, sob a ameaça de revelar às Interahamwe que Rusesabagina escondia os odiados inyenzi. «Não sente o cheiro a baratas?», questiona Gregoire, retratado por Tony Kgoroge, num confortável roupão. «Será que está habituado ao cheiro?», continua, referindo-se à mulher de Rusesabagina. «E sei quem trata do cheiro». Por fim, no filme, parece que Gregoire se arrepende, após deparar-se com centenas de corpos descartados de homens, mulheres e crianças, mas é sol de pouca dura. Acaba por entregar os refugiados e juntar-se às cruéis Interahamwe. «O filme é uma ficção de Hollywood. Se devia ser uma história real, então é um cesto de mentiras», disse Mwenenganucye à Reuters em 2007, nada agradado com o seu retrato, acusando Rusesabagina de expulsar refugiados que não conseguiam pagar as contas.

Rapto ou captura?

Ainda não é claro como o herói de Hotel Ruanda chegou às mãos da justiça ruandesa, conhecida pelo seu longo braço – as secretas de Kagame, que estão entre as mais capazes de África, foram creditadas por tentativas de assassinato e mortes suspeitas de dissidentes por todo o continente. Entretanto, as autoridades do Ruanda falam em «cooperação internacional», sem dar detalhes, enquanto os média ruandeses enumeram os alegados crimes da Frente Nacional de Libertação (FNL), que Rusesabagina é acusado de financiar e apoiar, incluindo rapto, fogo posto e homicídio.

Já a família de Rusesabagina, que residia no Texas, diz que foi raptado em trânsito no Dubai, mas as autoridades dos Emirados Árabes Unidos negaram ter algo a ver com o assunto. «Pensar é um crime em alguns lugares», assegurou um dos filhos do herói do Hôtel des Mille Collines, Trésor Rusesabagina, à CNN. «O meu pai é culpado de ter a coragem de falar. Isto é político, claro que é»