Um quadro roubado três vezes e outras histórias

No final de agosto, um quadro do mestre Frans Hals avaliado em 15 milhões de euros foi roubado de um museu holandês. Pela terceira vez.

Frans Hals foi o «grande grande retratista do Harleem», assim o apelidou H. W. Janson no seu omnipresente e clássico manual História da Arte, um dos mais famosos livros sobre história da arte do mundo. Nascido em Antuérpia, por volta de 1580/5, o pintor  pode não ser hoje mundialmente conhecido como um Rubens ou um Caravaggio – e, na sua obra, pode ser vista a influência de ambos os mestres –, mas o seu legado  está extremamente bem cotado  no mercado. E, claro, o artista que pertenceu ao chamado ciclo da Idade Dourada nos Países Baixos   continua a ser acarinhado na Holanda como um dos grandes mestres. O seu estilo e pincelada imediatos são facilmente identificáveis em quadros como O Alegre  Beberrão (c. 1628,  hoje no Rijksmuseum,  Amesterdão) ou Dois Rapazes a Rir (c.1626).

E é precisamente essa última obra que nos traz a estas páginas, e não propriamente pela sua qualidade pictórica ou pelo valor em que está avaliada – cerca de 15 milhões de euros. O quadro foi roubado há cerca de duas semanas, no na madrugada do dia 27 de agosto, do museu de Het Hofje van Aerden, em Leerdam, perto de Utrech, por dois ladrões que entraram no espaço por volta das 3h30, forçando a porta traseira das instalações, acredita a Polícia. De momento, não há pistas sobre o paradeiro da obra. A notícia ganha, contudo, contornos peculiares se atendermos ao passado da obra: acontece que não é a primeira vez que as autoridades lidam com o furto do quadro.  Na realidade, tal já tinha acontecido em duas outras ocasiões. Dois Rapazes a Rir  foi roubado pela primeira vez em 1988, tendo sido recuperado três anos depois, explicou Hanneke Sanders, porta-voz da Polícia holandesa, citada pelo New York Times. Os responsáveis pelo roubo foram, na altura, apanhados e condenados pelo crime. E em 2011 a obra voltou a desaparecer mas a Polícia conseguiu localizá-la seis meses após o roubo. Foram então presos e condenadas  quatro pessoas, com idades entre os 48 e os 62 anos, acrescentou Sanders.

Tanto no roubo de 1988 como no de 2011 os ladrões levaram uma obra de Jacob van Ruisdael, que, tal como o seu ‘par’, acabou por ser recuperado. Até agora: desta feita, os ladrões levaram apenas o quadro de Frans Hals do museu de pequenas dimensões, de gestão privada e que estava fechado devido à pandemia. 

Os três roubos tiveram ainda outra característica em comum: a ausência de operações sofisticadas. Em qualquer uma das ocasiões, tenha sido em 1988, 2011 ou em 2020, os ladrões parecem ter entrado sem grandes problemas nas instalações durante a madrugada  – o que, talvez, explique a reincidência. Ainda assim, os assaltantes tiveram que operar de forma rápida devido aos alarmes,  o que mais uma vez se provou eficaz . «O museu é pequeno. O alarme soou, mas eles foram-se embora em três minutos», precisou à mesma publicação Arthur Brand, um detetive privado que se especializou no roubo de obras de arte.

Os representantes do museus não comentam o roubo e a Polícia pede  agora  aos populares que partilhem o máximo de informação que puderem. «Estamos num estado muito inicial da investigação», disse, logo após o roubo, a porta-voz. «Pedimos às pessoas que tenham algum vídeo ou se viram alguma coisa; toda a ajuda é bem-vinda para conseguirmos resolver isto».

 

Larápios com arte

Apesar de, a partir do século XX, as notícias dos roubos de quadros e outras obras de arte serem comum na imprensa – com os factos a alimentarem, por vezes, a imaginação do grande ecrã –, há muito que os quadros se tornaram objetos de desejo suficientemente valiosos para inspirar roubos.

Como contam Margot e Rudolf Wittkower no livro  Born Under Saturn: The Character and Conduct of Artists , há relatos de roubos de obras de arte desde o século XVI. E eram mais comuns do que se possa imaginar, havendo períodos em, curiosamente, que eram os próprios aprendizes a roubar os mestres. «Artistas obscuros roubavam os que tinham sucesso; os aprendizes roubavam os mestres. Os holandeses e outros pintores estrangeiros a viver em Itália eram frequentemente presas para os seus compatriotas acabados de chegar a quem davam hospitalidade e que pagavam a gentileza dos seus anfitriões levando  os seus quadros e vendendo-os». Tal acontecia devido a uma condição que continua a ser bem conhecida  pelos artistas dos nossos dias: a precariedade. « O número de artistas desempregados ou com pouco trabalho em Roma durante a segunda metade do século XVI e ao longo do século XVII era muito grande. A sua vida era difícil e as tentações eram muitas. Consequentemente desenvolveu-se uma rede subterrânea de ladrões e receptadores que abasteciam o mercado da arte com bens roubados. Assim, em 1562 um tal Rainaldo Rofferio de Bolonha roubou da oficina do seu mestre, Maino Mastorghi, um busto de alabastro e vendeu-o a um canteiro que por sua vez o vendeu a um escultor que vivia na Piazza del Popolo. […]».

Margot e Rudolf Wittkower recordam, nesta senda, um episódio operado precisamente por artistas que, deixando os pincéis de lado, se renderam ao crime organizado e funcionaram quase como uma quadrilha. «Em 1611 um grupo de três artistas preparou um grande golpe. Eram eles um jovem pintor, Bernardino Parasole […]; um amigo de Parasole, um pintor chamado Domenico; e o irmão do ‘Signor Terenzio, pintor do Cardeal Montalto’ […]. A vítima desta vez não foi um artista mas um antiquário. O saque incluiu alguns cartões de Polidoro da Caravaggio, uma quantidade de desenhos, e quatrocentas medalhas».  Mas não eram apenas os pintores os alvos dos seus pupilos e, por vezes, mais do que o valor dos objetos, era a inveja a motivar os roubos. «Nalguns casos, de escultores, por exemplo, este ‘mercado negro’ de obras de arte roubadas alimentava as oficinas dos artistas menos criativos ou menos dotados com moldes e modelos alheios, a partir dos quais eles faziam esculturas que não estavam ao alcance do seu talento…», continuam.

Com o passar dos séculos as motivações económicas ganharam terreno face a estas quase ‘tricas’ entre artistas, com os ladrões a roubar os quadros com o intuito da venda. Mas há outros, como, por exemplo, o patriotismo alegado por Vicenzo Peruggia, o italiano que, em 1911, roubou a Mona Lisa do Louvre com a intenção de devolver a obra de Leonardo da Vinci ao seu país.

Saltemos para o século XXI e para 2020, ano em que a pandemia e o fecho sem precedentes de museus e monumentos parece estar a revelar-se uma janela de oportunidade para este tipo de crime (ver caixa acima).  Pode a história, que já teve um final feliz duas vezes, voltar a repetir-se? O tempo – e a investigação – o dirão. À boleia do caso, recordamos, de seguida, alguns dos mais inusitados roubos de quadros – e há finais para todos os gostos.

 

O resgate da Madonna do Fuso

A história do roubo de A Madonna do Fuso, de Leonardo da Vinci, é mais um daqueles casos em que a realidade supera a ficção. O enredo está cheio de detalhes cinematográficos: temos uma das (poucas) obras de um dos maiores génios da pintura da História, um castelo na Escócia, um bando de malfeitores liderado por advogado e até um resgate. A trama começa em agosto de 2003, o quadro que pertence à valiosíssima coleção privada do duque de Buccleuch foi roubado do Castelo de Drumlanrig, na Escócia. A obra pintada pelo mestre renascentista em 1501 e que retrata Maria e o menino Jesus foi levada por dois homens que, fingindo ser turistas, ameaçaram o guarda com um machado e escaparam com a obra pela janela. Quatro anos depois, em outubro de 2007, o quadro foi recuperado durante uma operação policial no escritório de advogados HBJ Gateley Wareing, em Glasgow. A polícia chegou até às instalações porque em julho desse ano Marshall Ronald, um advogado de 53 anos, se tinha oferecido como intermediário para a devolução da obra, pedindo depois aos proprietários um resgate de mais de 4,5 milhões de euros pela obra que, caso não fosse concretizado, resultaria na destruição da obra-prima. Ronald acabou por ser acusado com outros quatro homens de extorsão, mas não foram identificados os autores do roubo. A obra voltou a casa, mas o duque de Buccleuch já não presenciou o momento: morreu em setembro de 2007, um mês antes de a sua Madonna ter sido localizada.

 

Sete em um

A lista, divulgada pelo diário holandês Volkskrant, impressiona: Women with Eyes Closed (2002), de Lucian Freud; Femme devant une fenêtre ouverte, dite la Fiancée (1888), de Paul Gauguin; La Liseuse en Blanc et Jaune (pintado em 1919 é o quadro que ilustra este texto), de Henri Matisse; Autoporträt (1889 e 1891), de Meyer de Haan; Waterloo Bridge, London e Charing Cross Bridge, London, ambos de Claude Monet e datados de 1901 e, por fim, Tête d’Arlequin (1971), de Pablo Picasso. As sete obras de arte foram levadas de uma só vez do Centro Kunsthal, uma galeria de Arte de Roterdão, em outubro de 2012. Os quadros, pertencentes à Colecção Triton, uma coleção privada de arte moderna, estavam expostos na galeria a propósito de uma exposição comemorativa das duas décadas do espaço. Apesar de o alarme ter sido ativado durante o assalto, os assaltantes, à semelhança do que se passou há duas semanas com o quadro de Frans Hals, fugiram rapidamente do local. O valor total das obras (100 milhões de euros) apenas foi divulgado no ano seguinte, quando foram apanhados os responsáveis: três homens de nacionalidade romena que assumiram o roubo e a tentativa de venda dos mesmos no mercado negro. As obras ainda não foram recuperadas apesar de, em 2018, terem circulado notícias de que o quadro de Picasso tinha sido descoberto na Roménia – tudo não passou, afinal, de um golpe publicitário engendrado por dois encenadores belgas.

 

 

Um mistério com mais de meio século

Mais de meio século após o seu desaparecimento, A Natividade com São Francisco e São Lourenço, de Caravaggio, continua a ser considerado um dos maiores roubos de obras de arte da história. O quadro de enormes dimensões que encimava o Oratório de São Lourenço, numa capela em Palermo, Itália, desapareceu sem deixar rasto no dia 17 de outubro de 1969. A tela foi milimetricamente recortada, deixando uma moldura vazia. A máfia siciliana tem sido apontada como a responsável pelo furto, mas nada foi provado e as teses mirabolantes sobre o destino da obra sucederam-se com o passar das décadas. Chegou a escrever-se que a obra foi retalhada e vendida aos pedaços; que o roubo foi encomendado por antiquários e enviada para a Suíça; que foi comida por ratos numa das sedes da máfia; que os criminosos, para evitar serem descobertos, se desfizeram dela dando os pedaços de tela a comer aos porcos; que serviu de tapete ao conhecido ‘capo dei capi’ Totò Riina; ou ainda que continua exposta numa das salas de poder da Casanostra. Há ainda uma teoria que aponta que o Estado italiano até já recuperou a pintura, visto que os mafiosos a venderam por uma pechincha ao Governo em troca de melhores condições dentro da prisão. Em 2018, o Vaticano organizou uma conferência onde foi discutido o paradeiro da obra e o FBI mantém ainda hoje a pintura no top 10 da lista de obras desaparecidas.

 

As molduras da esperança

81 minutos. Foi este o tempo exato usado pelos dois assaltantes que, disfarçados de polícias, irromperam pelas salas do Isabella Stewart Gardner Museum no dia 18 de março de 1990 e roubaram 13 importantes obras de arte, avaliadas em 500 milhões de euros, deste museu de Boston. Os assaltantes chegaram ao local pela 1h24, afirmando que tinham sido alertados devido a distúrbios. Rompendo o protocolo, um dos dois seguranças de serviço naquela noite deixou-os entrar. Os homens algemaram os seguranças e deixaram-nos na cave do espaço, prosseguindo assim com um plano bem estudado e dirigindo-se a obras específicas – a maioria estava na chamada Dutch Room. O Concerto, de Jan Vermeer (1632-1675) e três obras de Rembrandt (1606-1669), nas quais se incluem um autorretrato do pintor, a tela Mulher e Homem de Negro e Cristo na Tempestade, no Mar da Galileia – a única paisagem marítima conhecida da obra do mestre holandês – contam-se entre os mais valiosos quadros roubados. Foram ainda levados desenhos de estudo de Monet e de Degas, um vaso da dinastia chinesa Shang (1200-1100 a.C.) e um mastro de bandeira do exército de Napoleão. Apesar de o museu ter sensores de movimento, os mesmos não estavam ligados à polícia, e por isso os aparelhos apenas serviram para reconstituir o percurso dos ladrões dentro das instalações. Passados 30 anos, a instituição oferece 10 milhões de euros em troca de informações que levem à efetiva recuperação das obras e o FBI nunca deixou de investigar o caso. Hoje, o museu continua a manter as molduras dos quadros roubados no mesmo local, como símbolos de esperança, clamando pelo retorno dos quadros levados.

E no fim houve um autocarro

Marselha já foi palco de roubos ‘espetaculares’. Na década de 20 do século passado, houve até um bando que, beneficiando da localização que se havia tornado um ponto de encontro para impressionistas, se especializou neste tipo de crime,  mas a história com um desfecho peculiar que aqui escolhemos trazer  é bastante mais recente. A 31 de dezembro de  2009, um quadro de Edgar Degas, As Coristas (1877), foi roubado do Museu Cantini, em Marselha. Nada mais se soube do paradeiro da obra até que, em fevereiro de 2018, foi encontrada num autocarro, em Paris. O quadro estava escondido na bagageira e… nenhum dos passageiros reclamou a sua posse.