Vacina. Entre a ciência e a política

‘Não vamos por atalhos’ no que toca à vacina, prometeu o CEO da Pfizer. Mas há receios de interferência de Trump, em tempo de eleições.

A corrida a uma vacina segura contra a covid-19 aproxima-se da reta final e o mundo observa, ansioso. No que toca a Portugal, como parte da União Europeia, a expetativa era ter acesso à vacina até ao final do ano, vinda da farmacêutica britânica AstraZeneca, que – antes de ter decido suspender os testes devido a uma reação adversa identificada num dos voluntários -, tinha afirmado que, se os ensaios clínicos corressem bem, poderia ter dados em outubro ou novembro. Já nos Estados Unidos, o país mais afetado pela pandemia, a discussão é outra. Teme-se que a Pfizer, que planeia ter resultados em outubro, esteja a ser pressionada para permitir a distribuição da sua vacina antes das eleições presidenciais de 3 de novembro. Ou que Donald Trump siga o exemplo russo e chinês, aprovando uma vacina antecipadamente.

Num país com um movimento anti-vacinação tão forte a desconfiança quanto à interferência política nos ensaios clínicos pode ter consequências desastrosas. Neste momento, mais de um terço dos norte-americanos recusaria uma vacina contra a covid-19, mesmo que fosse gratuita e a sua eficácia atestada pelas autoridades, segundo uma sondagem recente da Gallup. «É a pior situação em que a sociedade pode estar», admitiu Albert Bourla, diretor executivo da Pfizer, esta quarta-feira, quando confrontado pelos receios da politização da ciência por trás da vacina. «Nunca submeteremos a aprovação qualquer vacina antes de sentirmos que é segura e eficaz», comprometeu-se, citado pela Reuters. «Não vamos por atalhos».

 

Fazer as contas

Os receios escalaram esta semana, quando se soube que o Centro de Controlo e Prevenção de Doenças norte-americano (CDC, em inglês) pediu aos governadores que se preparassem para distribuir uma vacina contra a covid-19 a partir de 1 de novembro, dois dias antes das eleições. Num país paralisado pela pandemia, com mais de 190 mil mortes e seis milhões de infeções registadas, em que quase 60% dos norte-americanos culpam a gestão de Trump pela escala da tragédia, segundo uma sondagem da Ipsos, uma vacina seria a derradeira «surpresa de outono».

O termo, no jargão político dos EUA, onde as eleições decorrem sempre, impreterivelmente, na terça-feira após a primeira segunda-feira de novembro, refere-se a qualquer evento nas vésperas da ida às urnas, deliberado ou não, que possa alterar o rumo das eleições. Contudo, o problema é que a probabilidade de conseguir uma vacina segura antes de 3 de novembro está próxima do zero, avisaram especialistas.

«Faça contas simples», sugeriu à CNN Larry Corey, um médico do Fred Hutchinson Cancer Research Center, em Seattle, que lidera a equipa que coordena os ensaios clínicos apoiados pelo Governo norte-americano. «Nós desenhámos os ensaios para conseguir 130, 140 endpoints, sete meses depois do começo dos testes», disse Corey. Com endpoints, refere-se a voluntários infetados com covid-19. «O primeiro ensaio começou a meio de julho». E julho mais sete meses dá fevereiro. Não que seja impossível que haja uma vacina segura antes disso, atenção, é só muito improvável.

É que, ao contrário de outros medicamentos, as vacinas são geralmente dadas a pessoas saudáveis. Por exemplo, no ensaio clínico de um medicamento contra o cancro, basta encontrar pacientes dispostos a arriscar algo novo. Já com uma vacina é preciso ter pessoas saudáveis, que vivam no meio de um surto, e a partir daí dar a umas um placebo e a outras a vacina, e ver se os últimos são menos infetados do que os primeiros.

Ou seja, caso a vacina fosse muito, muito eficaz, poderia ser óbvia a diferença, mesmo com poucos dados. «Talvez descobríssemos isso cinco meses depois de desenhar o ensaio», considerou Corey. O que, mesmo assim, seria apenas em dezembro, e nuncauma «surpresa de outubro». Além de ser um cenário improvável: a eficácia da vacina da gripe, por exemplo, anda entre os 40 e os 60%. E o principal especialista em doenças infecciosas dos EUA, Anthony Fauci, já disse que se contentava com 50% de eficácia na vacina da covid-19.

No entanto, o processo tornar-se-ia mais rápido se a tragédia norte-americana acelerasse, ou se os ensaios clínicos se deparassem com hotspots: quanto mais infeções, mais dados.

A questão é que é suposto os voluntários esforçarem-se para não contrair o vírus. «Estás a dizer às pessoas para usar máscaras e manter distanciamento social», salientou Ann Falsey, da Faculdade de Medicina da Universidade de Rochester, que está a coordenar os ensaios da AstraZeneca em Nova Iorque, ao canal norte-americano. «Não lhes estás a dizer para ir sem máscara a uma convenção de motards no Dacota do Sul».

 

Emergência

Outro motivo de preocupação nos EUA é a sugestão de que o Presidente Trump poderá pressionar a FDA, a agência encarregue de monitorizar a qualidade dos medicamentos, a aprovar uma eventual vacina usando os seus poderes de emergência. Algo que aconteceu com centenas de medicamentos, mas nunca com uma vacina – exceto em 2005, com a vacina contra o Antrax, que não era para uso do público geral.

Para uns, incluindo Anthony Fauci, é algo que pode fazer todo o sentido, pois permitirá saltar barreiras regulatórias e salvará milhares de vidas. Para outros, a pressa pode sair cara. «Se o público não confiar no processo de autorização e o vir como politicamente influenciado, como será a aceitação da vacina?», questionou o virologista John Moore, ao Washington Post. É que se neste momento apenas 65% do público pretende tomar a vacina, com sugere a Gallup, já é abaixo dos 75% de imunidade, considerado o padrão para a imunidade na epidemiologista clássica. Isto assumindo que uma eventual vacina seria 100% eficaz, algo que quase certamente não será.