‘Todos os que estavam escondidos naquele sótão sabiam que o mais difícil era o silêncio’

‘Penso que Stefania tanto se orgulhava das vidas que salvou como era assombrada pelas suas memórias da guerra’, conta Shanon Cameron ao SOL.

Stefania Podorska tinha apenas 16 anos quando os alemães invadiram a cidade de Przemyśl, no leste da Polónia. De um momento para o outro perdeu o emprego na mercearia da família judaica para quem trabalhava e viu-se obrigada a tomar conta da irmã de seis anos.

Mas as suas provações estavam apenas a começar. Depois de Max Diamant, um dos jovens dessa família judaica, conseguir escapar de um comboio em andamento que tinha como destino um campo de concentração, Stefania acolheu-o na sua casa da Rua Tartaska. A seguir a Max, outros doze judeus fugidos viriam instalar-se sob o seu teto.
A essas quinze pessoas – Stefania, a irmã e os treze hóspedes judeus – juntar-se-iam ainda dois agentes das temidas SS em janeiro de 1944, depois de a casa ter sido requisitada pelo exército ocupante.

Enquanto os dois nazis dormiam nos quartos que lhes foram atribuídos, e as duas irmãs na sala, os treze judeus clandestinos continuavam a escassos metros deles, escondidos no sótão, com pouco espaço, pouco ar e quase nenhuma luz natural. Quanto tempo conseguiriam resistir sem serem descobertos?

A escritora norte-americana Sharon Cameron ouviu pela primeira vez a história incrível – mas verídica – de Stefania Podorska no início da década de 90, numa entrevista que passou no canal local de TV. Muitos anos depois, haveria de conhecer a protagonista, assim como o seu filho, Ed Burzminski, com quem viajou à cidade polaca onde tudo aconteceu.

Com base nas memórias escritas de Stefania, que lhe foram confiadas por Ed Burzminski, e em vários outros testemunhos, Sharon Cameron teceu um romance em que procura reconstituir esses anos dramáticos. Uma Luz na Escuridão (ed. Planeta) propõe-se mostrar-nos o que viveu, pensou e sentiu Stefania enquanto arriscava tudo para salvar os seus hóspedes das garras dos nazis. A autora respondeu às perguntas do b,i. por email.

 

Que tipo de cidade era Przemyśl e como era lá a vida antes do início da guerra?

Przemyśl é uma cidade antiga, que recua ao século VIII, construída em ambas as margens do rio San, não longe da fronteira com a Ucrânia. Antes da guerra, era uma cidade de sinagogas e catedrais, com cerca de 70% da população católica romana ou grega ortodoxa, e cerca de 30% da população judaica. Embora cristão e judeus fizessem negócios entre si e convivessem de forma relativamente pacífica, socialmente eram grupos muito distintos. Depois da guerra, dos mais de 18 mil judeus que tinham residido em Przemyśl, apenas cerca de 400 tinham sobrevivido. 

 

Viajou para a Polónia para conhecer a cidade onde se desenrola esta história? 

Sim! Em outubro de 2018 viajei até Przemyśl na companhia de Ed Burzminski, o filho de Stefania Podgórska, e explorámos a cidade juntos, caminhando nas ruas que os seus pais tinham percorrido décadas antes. Visitámos a casa na Rua Tartaska e estivemos no sótão, descobrimos o apartamento onde os Diamant tinham vivido e o local da fábrica alemã de ferramentas onde Stefania trabalhou. Percorremos o perímetro do que foi o Gueto Judaico, encontrámos a cave onde Max Diamant e o seu irmão se esconderam da Gestapo. Também visitámos o campo de extermínio de Belzec, onde 23 membros da família Diamant foram assassinados. Foi uma experiência profunda para ambos.

 

É quase impossível ignorar os paralelos entre o caso de Stefania e o de Anne Frank. O diário da adolescente holandesa foi-lhe útil enquanto fonte para perceber como poderia ser a vida clandestina daquelas pessoas escondidas no sótão?

Li o Diário de Anne Frank muitas vezes, e enquanto escrevia este livro tive a oportunidade de ouvir pessoalmente a meia-irmã de Anne Frank a falar sobre as suas experiências de se esconder e de ser mandada para um campo de concentração. São histórias humanas que transcendem os países e as culturas e considero-as muito relevadoras e inspiradoras. Outra fonte muito útil foi o diário de Renia Spiegel, uma adolescente judia de Przemyśl que esteve escondida e acabou por ser descoberta e morta pela Gestapo. Este homicídio aconteceu na rua onde os Diamant tinham o seu apartamento, onde Stefania vivia, e o diário de Renia só muito recentemente viu a luz do dia. A sua escrita maravilhosa deu-me uma perspetiva a partir de dentro da vida de uma rapariga judia em Przemyśl durante a guerra.

 

Além dos que referiu, e das memórias de Stefania, houve outros documentos e testemunhos que a ajudaram a reconstituir os factos?

Sim, quase demasiados para referir. Além das memórias de Stefania, e de horas de entrevistas tanto com Stefania como com Max, tive a oportunidade de entrevistar pessoalmente Helena Podgórska, a irmã mais nova, que foi tão heroica como Stefania. Estas memórias eram difíceis para Helena, que ainda assim foi tão generosa e gentil que entendeu partilhá-las comigo. Também entrevistei Dziusia Schillinger, uma das crianças que estiveram escondidas no sótão da Rua Tatarska, e que atualmente vive na Bélgica. Respondeu às minhas perguntas específicas sobre Stefania e Max e sobre a vida no sótão. Como outras fontes usei os testemunhos gravados de duas outras crianças escondidas no sótão, assim como o Livro Yikzor de Przemyśl, os Arquivos de Przemyśl e dezenas de outras obras académicas sobre o Holocausto na Polónia, assim como horas e horas de entrevistas de sobreviventes polacos feitas pelo Holocaust Memorial Museum dos Estados Unidos. O livro foi ainda revisto e o seu rigor histórico verificado por um pedagogo do Holocausto de Israel.

 

O que poderia ter acontecido a Stefania caso os alemães descobrissem que ela escondia judeus no sótão de sua casa?

Para Stefania e Helena, assim como para os treze judeus escondidos, essa descoberta significaria simplesmente a morte. A lei estipulava que qualquer pessoa que auxiliasse um judeu seria executada, e muitos homens, mulheres e crianças inocentes foram fuzilados de imediato, assim que se descobriu que escondiam judeus em suas casas. Os registos alemães mostram que 548 polacos foram executados por ajudar judeus na área à volta de Przemyśl, incluindo o enforcamento público de Michal Kruk, que está descrito no livro, assim como a família que foi morta a tiro por esconder Renia Spiegel, apenas algumas portas abaixo. Stefamnia e Helena sabiam exatamente o que estavam a arriscar, que era nada menos que as suas vidas.

 

O facto de Stefania ser católica pesou na sua decisão de ajudar aquelas pessoas? E, mais tarde, poderá ter-lhe dado algum conforto nos momentos mais difíceis? Há muitas referências à religião nas suas memórias?

Stefania era uma pessoa muito religiosa. A fé tinha muita importância na sua vida, e durante a minha viagem a Przemyśl pude visitar a capela onde ela costumava ir rezar para obter conforto e orientação espiritual. Mas penso que para ela a situação estava para lá da religião, para lá de ser católico ou judeu. Para Stefania, era apenas uma questão do que estava certo ou errado. O que os nazis estavam a fazer era errado, e fazer alguma coisa para tentar remediar a situação estava certo. Por isso ela fez o que considerava certo, e arriscou tudo por isso. Essa é a minha definição de herói.

 

Conseguiu obter uma descrição detalhada do sótão onde aquelas 13 pessoas estiveram escondidas? Se era grande, se estava limpo, se tinha luz natural?

Quando visitei o sótão em 2018 o edifício estava a ser renovado, por isso tive de recorrer à imaginação para tentar perceber como seria estar naquele espaço. Mas tive acesso a fotografias anteriores à renovação, da década de 1980, e os testemunhos pessoais daqueles que lá viveram. O espaço era incrivelmente apertado. As 13 pessoas só cabiam se estivessem deitadas de lado. Se uma pessoa precisava de se virar, tinham todas de se virar ao mesmo tempo. O teto era inclinado e ia descendo, pelo que só era possível estar de pé num dos lados. Não tinha aquecimento, havia muito pouco ar, e só uma janela, que tinha de estar tapada. Havia ratos e pulgas, e um balde servia de casa de banho. Mas toda a gente que estava escondida naquele sótão sabia que a parte mais difícil da vida ali era o silêncio. Quando os nazis estavam no quarto de dormir, debaixo deles, não podia haver um ressonar, um tossir ou um espirro. Qualquer movimento, qualquer som, podiam significar a morte. Tinham de estar deitados quietos e deixar que os ratos passassem por cima deles. Era um sítio medonho.
O número 13 está associado ao azar. Stefania ou as 13 pessoas que estavam escondidas no sótão alguma vez terão pensado nisso ou visto esse número como um mau presságio?
Nunca tinha pensado nisso. Não penso que Stefania ou alguma das pessoas escondidas visse o número como um mau presságio. Isso não está referido nos escritos ou testemunhos de ninguém. Eu vejo-o como um bom presságio. Afinal de contas, todos os treze se salvaram. E há treze perguntas nesta entrevista!

 

Sim, foi propositado. Temos alguma informação sobre como estas pessoas passavam o tempo no sótão?

No início, o sótão era apenas usado como esconderijo para quando alguém ia para aquela casa. Por isso, enquanto não podiam sair, quem estava escondido podia cozinhar, tricotar camisolas para vender, e fazer outras atividades domésticas. Mas quando os nazis se instalaram na casa, deixar o sótão tornou-se quase impossível, e por causa da necessidade de silêncio e as limitações de movimentos não havia quase nada que se pudesse fazer para passar o tempo. As crianças disseram mais tarde que aprenderam a sentar-se e a sonhar, inventando histórias nas suas cabeças. Max fazia desenhos das pessoas ali escondidas, que ainda hoje sobrevivem, incluindo a imagem de Stefania e Helena desenhadas como anjos referida no livro.

 

O seu livro está escrito na primeira pessoa, colocou Stefania como narrador. Como é que um escritor que vive no Tennessee se coloca na pele de uma jovem polaca que vive durante a Segunda Guerra Mundial?

Essa foi uma pergunta que coloquei muitas vezes a mim própria. Pude conhecer Stefania Podgórska em 2017 e mesmo nessa altura, no seu último ano de vida, a sua presença era muito forte. E a mesma coisa pode ser sentida nas memórias que escreveu. A sua voz e a sua personalidade são nítidas e cristalinas. Depois de ir a Przemyśl com o seu filho, e de mergulhar na investigação sobre a sua vida, senti que a conhecia. E que privilégio é conhecermos um dos nossos heróis dessa forma tão íntima e pormenorizada. Mas, pesando tudo, julgo que a razão pela qual uma pessoa como eu pode escrever sobre alguém como Stefania é que a sua a história é sobre ser-se polaco, católico ou mesmo sobre viver durante a Segunda Guerra Mundial. A história de Stefania é uma história humana, uma história que nos desafia a todos, onde quer que vivamos, a colocar a questão: ‘O que vou fazer hoje mesmo para enfrentar o ódio?’.

 

O heroísmo de Stefania é um caso isolado ou houve outros exemplos de pessoas que esconderam e salvaram judeus durante a ocupação nazi da Polónia?

Como um pouco por toda a parte durante o regime nazi, houve muitos na Polónia que nada fizeram para se opor ao tratamento que os nazis davam aos judeus e a outros grupos que foram perseguidos. Podia ser uma questão de ignorância, de cumplicidade, ou de sobrevivência pura e simples. Mas, como em todo o lado, também houve polacos corajosos que se opuseram. Que desafiaram os nazis e tentaram salvar as vidas de amigos, vizinhos e, por vezes, mesmo de desconhecidos. Como os registos alemães mostram, muitos desses heróis pagaram o preço derradeiro. Penso que Stefania representa todos esses heróis, conheçamos ou não os seus nomes, e espero, ao homenageá-la, homenageá-los a todos eles.

 

Como foi a vida de Stefania depois da guerra? Sabe se ela se orgulhava do seu feito ou se vivia assombrada por esta experiência traumática?

Penso que Stefania tanto se orgulhava das vidas que salvou como era assombrada pelas suas memórias da guerra. Viver no medo permanente de ser descoberto e morto deixa a sua marca, e no resto da sua vida ela teve de lidar com a ansiedade e com stresse pós-traumático, mesmo depois de emigrar para os Estados Unidos com Max e os seus filhos. Mas Stefania também foi homenageada pelo que fez, sendo nomeada Justa entre as Nações pelo Yad Vashemn [memorial de Israel para recordar as vítimas judaicas do Holocausto], sendo feito um filme acerca da sua vida na década de 1990, aparecendo um várias entrevistas televisivas e documentários, e mesmo discursando na cerimónia de consagração do Holocaust Memorial Museum dos Estados Unidos, com o então Presidente Bill Clinton, o primeiro-ministro de Israel e outros dignitários ao seu lado no palco. Ela orgulhava-se imenso de o seu sacrifício significar que treze vidas foram salvas. Que as suas escolhas não apenas mudaram o mundo para aquelas pessoas, mas também para os seus filhos e netos. Espero que pudesse orgulhar-se de saber que a sua história continua a desafiar outros a fazer essa mesma escolha. Espero que ela pudesse orgulhar-se de que a sua história mostra a leitores em Portugal e noutros países que as suas decisões importam e que podem verdadeiramente ajudar a mudar o mundo.