Vicente: o amigo rebelde

As pessoas pensaram que nos tínhamos travado de razões, mas isso nunca aconteceu. Já não éramos ‘quase como irmãos’, como nos tempos do Comércio do Funchal, mas continuávamos a considerar-nos amigos.

Embora fosse apenas dois anos mais velho do que eu, o Vicente Jorge Silva conheceu o meu pai antes de me conhecer a mim. Não sei por que razão, nos anos 60 ele foi para Paris, andou por lá, chegou à fala com o meu pai – que aí vivia há anos – e tornaram-se amigos. O meu pai já era um intelectual muito reconhecido e o Vicente tinha por ele uma grande admiração. Quase uma veneração.

Nessa altura a França sofreu o terramoto do Maio de 68, que o meu pai viveu com uma alegria juvenil. Não sei se o Vicente estava em Paris quando isso aconteceu. Mas, se não estava, é como se estivesse – porque o Vicente Jorge Silva se identificava em absoluto com aquele espírito: libertário, anticapitalista e anticomunista, independente em relação aos partidos, rejeitando o caminho que seguia a civilização ocidental mas recusando ao mesmo tempo o comunismo soviético e o seu modelo castrador da liberdade.

O Maio de 68 marcou tanto o Vicente Jorge Silva, que, verdadeiramente, nunca mais se libertou dele. De certo modo, o Vicente foi até ao fim um soixante-huitard, um filho do Maio de 68 francês.

Um dia ligou-me. Em 1969, talvez. Vinha de Paris, tinha convidado o meu pai para colaborador de um jornal que começara a dirigir – o Comércio do Funchal, um título antigo que relançara com um grupo de amigos da Madeira –, o meu pai aceitou o convite mas foi-lhe dizendo que tinha pouca disponibilidade, adiantando porém: «Tenho um filho que gosta de escrever e talvez lhe interesse». Era eu.

Tivemos um primeiro encontro em Lisboa, em casa do José Manuel Barroso, estavam meia dúzia de pessoas, e eu fiquei fascinado com a sua energia, o seu entusiasmo, a convicção que irradiava, o modo expressivo como falava. Fiquei logo colaborador do jornal.

Embora já tivesse escrito noutros sítios, o CF – assim o tratávamos –, publicado em papel cor-de-rosa como os jornais económicos, tornou-se imediatamente o ‘meu jornal’. E os outros colaboradores que fui conhecendo tornaram-se imediatamente meus amigos. Partilhávamos o mesmo espírito: éramos completamente livres, escrevíamos o que queríamos. Além do José Manuel Barroso, conheci então o Fernando Dacosta, o António Mega Ferreira, o António Aragão, o Luís Manuel Angélica, o Luís Matias, o Júlio Henriques, outros mais.

O CF tornou-se rapidamente uma referência do jornalismo de esquerda em Portugal. Com o Notícias da Amadora e pouco mais (embora este com muitas ligações ao PCP). Éramos distribuídos no continente pelas Publicações D. Quixote, da Snu Abecasis.

Veio o 25 de Abril, o CF foi ocupado por um grupo esquerdista e o Vicente Jorge Silva aterrou um dia no continente. Retomámos o contacto quando ele já era redator do Expresso. Responsável pela secção sindical (mas detestando a Intersindical, dominada pelo PCP).

Nesta altura ele introduziu-me num pequeno grupo, muito restrito, que compreendia a Helena Vaz da Silva e o António Mega Ferreira. No Verão Quente e no período a seguir demo-nos muito os quatro.

Entretanto, ainda em 1974, publiquei o meu primeiro livro – Do Estado Novo à Segunda República, na Bertrand – e na sequência disso apresentei-lhe um jovem editor, idealista como nós: o Eduardo Martins Soares (que hoje assina Eduardo Fragoso). Este entusiasmou-se com o Vicente e convidou-o logo para escrever um livro sobre os tempos loucos que se viviam. E, para o ‘agarrar’, fez-lhe um adiantamento sobre os direitos de autor. O Vicente era assim: entusiasmava as pessoas, caía-lhes no coração.

Mas o tempo passou, o Vicente não conseguia escrever o livro, até que um dia me disse: «Zé António, tens de ser tu a desenrascar-me. Eu não consigo escrever e já recebi dinheiro. Vamos sentar-nos a conversar, gravamos as conversas e fazemos o livro em conjunto».

E assim foi. Foram noites e noites de conversa em minha casa, muito estimulantes. Ele depois levava as cassetes, alguém no Expresso as desgravava e passava ao papel, nós revíamos os textos – e ao fim de uns meses de árduo trabalho o livro estava pronto. Foi publicado com o título O 25 de Abril Visto da História e constituiu um razoável êxito editorial.

Atingiram-se os anos 80, o Vicente chegou a chefe de redação do Expresso, eu comecei a colaborar lá ocasionalmente, até que o Marcelo Rebelo Sousa saiu da direção para o Governo, convidado por Balsemão (que rendera Francisco Sá Carneiro, morto em Camarate).

Ora, nesta altura, o Vicente diz-me que tinha de ser eu a substituir o Marcelo na página 2 do Expresso, onde ele escrevia uma análise política muitíssimo lida. Recusei de imediato. Não me via de todo como substituto de Marcelo Rebelo de Sousa, nem queria profissionalizar-me como comentador. Era arquiteto, escrevia como hobby, não desejava compromissos.

Mas o Vicente insistiu, insistiu, insistiu. Até que lhe propus uma alternativa: escreveria uma coluna pequena, não sobre os factos da semana mas sobre um acontecimento preciso. Assim nasceu a ‘Política à Portuguesa’, que ganharia logo bastante protagonismo.

É nesta sequência de acontecimentos que sou convidado por Augusto de Carvalho (que substituíra interinamente Marcelo de Sousa como diretor), para subdiretor do Expresso. Fiquei atordoado. Era arquiteto e não queria mudar de profissão. Mas tratava-se de um convite tentador para um jovem de 33 anos…

No dia em que Augusto de Carvalho me fez o convite, fui jantar com o Vicente Jorge Silva e um grupo de jornalistas do Expresso. Sabiam que o Augusto de Carvalho tinha convidado alguém para a direção, mas não sabiam quem era. O jantar inteiro foi dedicado a este tema. O Vicente, que liderava o grupo, vociferava: «Seja quem for, nós recusamos!».

O Expresso nessa época vivia mais ou menos em autogestão – e os jornalistas achavam que, quem viesse para coadjuvar o Augusto de Carvalho, teria como objetivo meter a redação ‘na ordem’. Por isso, recusavam.

Mantive-me calado durante todo o jantar. Regressámos juntos à redação do Expresso, no velho edifício da rua Duque de Palmela, eu conduzi o Vicente para uma sala vazia e aí disse-lhe: «Vocês acabam de fazer um pacto em que recusam a entrada de seja quem for para a direção. Quero dizer-te que a pessoa convidada pelo Augusto de Carvalho fui eu». O Vicente deixou-se cair para trás, sobre uma cadeira, com o rosto lívido. E disse: «Se fores tu, não me oponho». Só isto.

E cumpriu. A redação do Expresso era muito rebelde, mas o facto de ele me apoiar foi decisivo para a minha entrada para subdiretor, que acabei por aceitar, vencendo as dúvidas iniciais.

Seis meses mais tarde, novo sobressalto: o Augusto de Carvalho demitia-se (em conflito aberto com o Vicente), e eu passava contra-vontade de subdiretor a diretor. As nossas posições invertiam-se: o Vicente, que fora o meu diretor no Comércio do Funchal, tornava-se meu subordinado. E isso trouxe inevitavelmente alguns atritos entre nós. Ele coordenava a célebre Revista do Expresso, gozava de um estatuto muito independente, de uma grande liberdade de ação, mas o facto de ter alguém por cima – ainda para mais uma pessoa que já chefiara – era uma situação incómoda para um líder nato como ele.

O Vicente tinha o coração na boca. Não suportava o erro. Era incapaz de ser hipócrita, pelo contrário: era de uma frontalidade por vezes brutal. Implacável. Quando se enervava, os seus olhos faiscavam, ficava vermelho como se fosse ter uma apoplexia, berrava. Tivemos alguns choques. Mas o jornal entrou numa fase ascendente, imparável, com um sucesso nunca imaginado, e isso amortizou eventuais conflitos.

O Expresso era então o jornal ‘de toda a gente’. Ninguém da classe média o deixava de ler – desde a extrema-esquerda à extrema-direita. A Revista atraía um público mais à esquerda, mais dado à utopia, mais idealista, o caderno principal satisfazia os leitores mais conservadores, mais pragmáticos, mais realistas. Mas as duas metades equilibravam-se muito bem.

Deu-se depois o êxodo para o Público. Finalmente o Vicente era o líder incontestado, podia dar as ordens, fazer as coisas à sua maneira. E, naturalmente, entrou em competição com o Expresso. Pretendendo ser um ‘semanário publicado todos os dias’, colocou como objetivo destronar o Expresso aos sábados.

Para responder a esse desafio, lançámos uma campanha com o slogan «Acredite, se ler no Expresso». Não falando no Público, eu tentava subtilmente retirar-lhe credibilidade, dizendo que a informação publicada pelos outros jornais podia ser verdadeira… ou não. E o certo é que, apesar de um razoável sucesso, o Público não conseguiu aproximar-se do Expresso – que continuou mesmo a crescer, vindo a atingir a inimaginável tiragem de 200 mil exemplares.

Pouco depois, eu e o Vicente tivemos uma polémica em público – a propósito (curiosamente) de Marcelo Rebelo de Sousa e da sua famosa frase «Não serei líder do PSD nem que Cristo desça à Terra». As pessoas pensaram que nos tínhamos travado de razões, mas isso nunca aconteceu. Já não éramos ‘quase como irmãos’, como nos tempos do Comércio do Funchal, mas continuávamos a considerar-nos amigos.

Ao fim de 10 anos na direção do Público, o Vicente Jorge Silva saiu, não sei por que razão, e aí acabou a sua carreira jornalística. Tornou-se apenas cronista, e creio que parte dele morreu nesse momento. Ele precisava de ter gente à volta, de dar ordens, de agitar as pessoas, de ter ideias e as pôr em marcha através dos jornalistas de que dispunha. Não era um cronista (embora escrevesse excelentes crónicas) nem um escritor – era um agitador de ideias que tinha encontrado no jornalismo a sua forma de intervenção. Por isso, o afastamento das pessoas, a solidão, o viver fora de uma redação constituíram para ele um duro golpe. Não falámos sobre isso, mas pressenti-o.

Há uns anos voltámos a encontrar-nos numa redação. Ele mostrou interesse em escrever no SOL e eu recebi-o de braços abertos. Demos um abraço apertado. Durante algum tempo voltámos a conviver nas páginas do mesmo jornal.

Depois ele tornou a afastar-se, regressou ao Público, adoeceu. A sua irmã mais nova, Carolina Silva, que trabalha comigo há muitos anos – pois não foi para o Público embora adorasse o irmão, e depois acompanhou-me a mim, ao José António Lima, ao Mário Ramires e ao Vítor Rainho na fundação do SOL –, nunca me falou da doença. Era penoso para ela e sabia que também seria penoso para mim. Na segunda-feira, falámos ao telefone, perguntei-lhe se estava tudo bem, ela respondeu que sim e acrescentou simplesmente: «Mais ou menos…». Percebi que estava chorosa. Concluí que o irmão piorara. Nessa noite, o Vicente Jorge Silva deixava o mundo dos vivos que tão arrebatadamente habitou.