A chantagem é a arma usada pelos fracos

Portugal, por culpas próprias e maleitas alheias, está hoje colocado perante um desafio de dimensão semelhante. É certo que não há, felizmente, tanto quanto a vista alcança, um risco de perda de liberdade, mas há indubitavelmente um perigo de perder boa parte do conquistado, remetendo a nossa economia e, consequentemente a nossa sociedade, para níveis…

Em 1978, perante a evidência de uma crise económica e social muito forte que poderia fazer perigar a democracia, Mário Soares teve a coragem de reconhecer que era necessário «meter (transitoriamente) o socialismo na gaveta».
«Não se trata agora de construir o socialismo, trata-se de recuperar a economia deste país para manter e salvar a democracia portuguesa» – afirmou, nessa data, o Presidente Soares, tornando viável a definição e a construção de um socialismo democrático europeu que abriu caminho à adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia.
Só quem não é capaz de perceber que Mário Soares, o pai fundador do nosso regime democrático, considerava a Liberdade (para todos e não apenas para os seus apoiantes) como o valor supremo da sua luta política, pode duvidar da importância e da sinceridade desta sua afirmação.

Portugal, por culpas próprias e maleitas alheias, está hoje colocado perante um desafio de dimensão semelhante. É certo que não há, felizmente, tanto quanto a vista alcança, um risco de perda de liberdade, mas há indubitavelmente um perigo de perder boa parte do conquistado, remetendo a nossa economia e, consequentemente a nossa sociedade, para níveis de penúria inimagináveis.

Não é por isso razoável que o país seja conduzido de forma errática e com os habituais truques verbais para a ocultação de uma realidade cruel.

O desemprego, que constitui a violência mais terrível que pode acometer uma sociedade, vai disparar para níveis social e politicamente insuportáveis, logo que cessem ou se moderem os estabilizadores automáticos que ainda o disfarçam. Não haverá critérios estatísticos, por mais imaginativos que sejam, que ocultem essa verdade.

A diminuição da produção nacional ou seja do PIB, será significativa pelo menos nos próximos dois anos e essa queda não será compensada pelas subvenções ‘a fundo perdido (?)’ obtidas ao abrigo do programa de recuperação da União Europeia, que aliás só chegarão, com boas hipóteses, a partir de 2022 e distribuídas por uma série de anos seguintes.

Com um desemprego crescente e insuportável, sobretudo para os jovens, e com uma riqueza nacional a cair ou a crescer insuficientemente, vai ser difícil manter a narrativa da não austeridade, que tem alimentado a propaganda oficial ou oficiosa.

É certo que muitas das causas para esse declínio são externas e até imprevisíveis, mas é certo também que, na linha do que explicava recentemente o Presidente Ramalho Eanes, a imprevisibilidade só torna mais difícil prevenir os cenários mais imprevisíveis.

Infelizmente, neste período difícil da nossa existência coletiva, o bom senso e o sentido de estado não tem abundado na vida política portuguesa e essa ausência não é uma característica exclusiva de um setor específico ou de um partido em particular.

Os exemplos são tantos que se torna difícil escolher os mais significativos pelo que o melhor critério é recorrer aos mais recentes.

É inacreditável que, com o país mergulhado numa situação económica muito difícil e complexa, um dos três partidos que suportam, desde o seu início, a atual solução de governo apresente ao país a reivindicação de um salário mínimo de 850 euros e a disponibilidade para ajudar a gastar os recursos da ‘bazuca’ de Bruxelas que chegarão um dia destes.
O salário mínimo agora reclamado, se correspondido, equivaleria a mais de 85% do salário médio nacional o que demonstra a irresponsabilidade da proposta e antecipa as consequências que tal facto teria sobre o frágil tecido empresarial português. Por outro lado, a disponibilidade para ajudar no ‘gasto’ revela bem como vale tudo para conquistar votos, pois não há nada de comum entre o modelo de recuperação que a UE viabilizará e o projeto político do referido partido que sempre contestou a integração europeia de Portugal.

Mais grave ainda é a pressão exercida, de forma doentia, sobre a opinião pública para que se discuta o problema do Novo Banco e dos custos que a sua Resolução e posterior venda, provocaram e provocarão ao contribuinte português. Tem valido tudo para esta cruzada, desde o desconhecimento total da matéria em discussão, à amnésia seletiva, à fuga às responsabilidades e ao populismo mais infrene.

Neste ‘tiro ao boneco’ ou seja ao Novo Banco, tem participado todos, desde os que representam o Governo, aos que se imaginam na oposição e aos ‘especialistas independentes’ de boa parte da comunicação social de referência.
Não se contesta que a situação do Novo Banco seja escrutinada e que sejam penalizados os agentes que, eventualmente, tenham praticado atos de ilegalidade ou irresponsabilidade; o que se questiona é a forma como esse escrutínio está a ser feito, com praticamente todos ao molho e em busca do melhor pedaço, que só pode acabar com graves prejuízos para o Banco e consequências colaterais para toda a banca portuguesa.

Mas o requinte da irresponsabilidade ocorreu com a ameaça de uma eventual crise política, em período de preparação do Orçamento de Estado para 2021 e na ‘véspera’ da suspensão de poderes constitucionais do PR.

Em circunstância alguma um chumbo orçamental justifica, à partida, a abertura de uma crise política, pois o regime constitucional tem suficientes mecanismos que permitem superar a maioria dos impasses. Basta ter sentido de estado, responsabilidade e bom senso e compreender que a boa política, não é compatível com a chantagem.

Infelizmente neste período difícil da nossa história coletiva faltam protagonistas como Mário Soares, disponíveis para colocarem, o interesse coletivo acima do interesse partidário e especialmente acima da pulsão doentia para exercer, sem controle, um poder pessoal. Ora, esta lacuna, normalmente, tem um elevado preço.