Espanha. Bairros mais pobres de Madrid sofrem surto descontrolado

“Quem é que vai cozinhar ou limpar nos outros bairros se eles nos confinarem aqui?”, perguntou uma moradora de Puente de Vallecas.

Do outro lado da fronteira, em Espanha, as autoridades tentam desesperadamente controlar a segunda vaga de covid-19, após um número recorde de novos infeções, esta quarta-feira: foram 11 193 novos casos, comparados com o primeiro pico espanhol, de 10 859 casos, a 20 de março. O governo regional de Madrid, onde se registaram quase um terço dos novos casos, planeia limitar a mobilidade nos bairros mais afetados, sobretudo nas regiões mais pobres do sul da capital e em cidades na periferia. Enquanto isso, antevê-se um êxodo urbano dos habitantes mais abastados, muitos dos quais procuram casas maiores longe da cidade, avançou o El País.

Para os que ficam para trás, a sensação é de déjà-vu. “De certa maneira, é como a situação em março, mas em câmara lenta”, descreveu Carlos Velayos, médico dos cuidados intensivos do hospital de Fuenlabrada, um dos focos do surto nos subúrbios de Madrid. A direção do seu hospital prevê que os cuidados intensivos cheguem ao máximo de capacidade na segunda metade de setembro, avisou à AP.

“Em março foi como uma bomba nuclear que levou o sistema de saúde como um todo a colapsar numa questão de semanas”, notou o médico. As imagens de camiões frigoríficos à porta dos hospitais de Madrid devido ao excesso de cadáveres e do Palácio do Gelo transformado em morgue improvisada são difíceis de esquecer.

“Podemos não estar nesse ponto ainda, mas não é razão para não estar preocupado”, salientou Velayos. Desta vez houve mais tempo para preparar o pior, mas há outros problemas, como as muitas cirurgias adiadas durante a primeira vaga, que se tornam cada vez mais urgentes. “Permitimos que os surtos chegassem a um nível em que são incontroláveis”, lamentou.

 

Miséria e precariedade

À semelhança do que vimos em Lisboa, em Madrid, o peso da pandemia caiu sobretudo sobre as periferias, onde pessoas mais pobres, boa parte delas imigrantes, fazem longas deslocações todos os dias, em transportes públicos apinhados, até ao centro da cidade. Muitos têm trabalhos precários e pouco qualificados em que o teletrabalho não é opção. E regressam para pequenos apartamentos onde isolar-se da família é quase impossível.

“Há coisas que são estruturais, não dependem de nós”, lamentou Carmen Rodríguez, uma profissional de saúde de Puente de Vallecas, que tem a maior taxa de novas infeções per capita de Madrid. “Em julho, já víamos que isto crescia e crescia”, lembrou, em declarações ao El País.

“Mas faltou o essencial: o rastreio. Agora verão que há que isolar as pessoas daqui para que não se contagie o bairro de Salamanca”, continuou, referindo-se a um dos bairros mais aristocráticos da capital, conhecido pelas suas lojas de luxo e restaurantes com estrelas Michelin. Já Puente de Vallecas é dos bairros mais pobres.

“Dirão que, aqui, as pessoas não cumprem as regras ou que são os imigrantes. Mas não tem nada a ver. A situação económica é o que é, as casas são muito mais pequenas, vivem muitas pessoas juntas”, disse Rodríguez.

Sobra a questão fácil de esquecer: “Quem é que vai cozinhar ou limpar nos outros bairros se eles nos confinarem aqui?”, interrogou-se uma moradora de Puente de Vallecas, Ángela Cantos, à Associated Press. “Madrid vai ficar paralisada”.

 

O outro lado da moeda

Muitos habitantes de Madrid não estão assim tão preocupados, têm alternativas. É o caso de América Hernández, que decidiu mudar-se de um apartamento no bairro de Salamanca para uma casa muito maior, em San Sebastián de los Reyes, a 18 quilómetros da capital.

“Depois de ficarmos presos entre quatro paredes percebemos que não interessa ter um bar ou uma loja perto se não temos espaço para as crianças brincarem, onde possamos sentir-nos mais relaxados”, explicou ao El País. Não foi a única a pensar assim: desde o início da pandemia, a procura por propriedades de campo em Espanha aumentou 46%, segundo dados da imobiliária Fotocasa.