Governo recupera estudo Porter

Uma semana antes de o Governo apresentar programa de Costa Silva decide recuperar estudo Porter pedido por Mira Amaral em 1994. Ex-ministro diz que documento agora apresentado por paraministro ‘não serve para nada’.

por Marta F. Reis e Sónia Peres Pinto

Dias antes de António Costa apresentar o programa de relançamento económico de António Costa Silva, o Conselho de Ministros decidiu atualizar o famoso relatório Porter – documento encomendado por Luís Mira Amaral, então ministro das Indústria do Governo de Cavaco Silva ao economista Michael Porter. Essa atualização consta das Grandes Opções do Plano, documento aprovado na semana passada pelo Executivo, onde pode ler-se: «Realizaremos ainda um estudo de atualização do Relatório Porter, elaborado há 25 anos».

A ideia do Governo é identificar as «potencialidades da economia portuguesa e definir políticas públicas que permitam melhorar o perfil de especialização e a estrutura do nosso tecido industrial». Com um foco nas atividades consideradas emergentes, como é o caso das baterias.

Ao SOL, Mira Amaral aplaude a iniciativa do Governo e não se mostra surpreendido com a decisão: «Há tempos tive um almoço com o ministro da Economia e tive oportunidade de falar sobre o relatório Porter e de entregar um estudo realizado pela CIP sobre a reindustrialização 4.0».

Ainda assim, considera que a atualização deveria ser mais abrangente e não focar-se apenas nas baterias. «Há mais clusters tecnológicos que deviam ser estudos» e dá exemplo de seis: materiais; biotecnologia; tecnologias de informação e comunicação; saúde e ciências da vida; aeronáutica e, por fim mobilidade, onde poderia estar integrada as baterias.

Para o responsável que trouxe Michael Porter a Portugal, em 1994, é preciso ir mais além e não ficar apenas pelo programa avançado por António Costa e Silva a pedido de António Costa e que, no seu entender, «é inútil». «Os estudos de Costa Silva são vazios, é poesia. Não serve para nada», afirma ao SOL.

Mira Amaral admite, no entanto, que ainda tem esperança nos ministros da Economia e do Planeamento, já que os considera «equilibrados» e os «únicos capazes de fazer um plano para a economia que seja exequível e realista».

Já em junho o ex-ministro, em entrevista ao SOL, tinha garantido que o relatório Porter «levou a construir um conjunto de task forces entre o Ministério da Indústria, as associações empresariais, empresários, economistas e gestores, que iriam implementar as recomendações». E lembrou que a ideia era «‘aportuguezar’ as conclusões no sentido de o aplicar na economia portuguesa».

O documento defendia uma aposta nos setores tradicionais da economia portuguesa, como o calçado, têxtil, vestuário e confeções, vinhos, turismo e mobiliário. Definia ainda cinco áreas que precisavam de intervenção: a educação, o financiamento, a gestão florestal, a capacidade de gestão, a ciência e a tecnologia.

Ideias essas, que segundo, Mira Amaral, acabaram por ‘ficar na gaveta’ com a entrada do Governo de António Costa. «Lamentavelmente perdeu-se muito tempo e não tivemos na economia portuguesa as consequências que deveríamos ter», disse na mesma entrevista.

 

Visão de Costa Silva

O paraministro que, esta semana, reviu o seu programa estratégico para o relançamento da economia, garantiu quando «há uma epidemia como esta não é o mercado que nos vai salvar. É o Estado», chamando a atenção para «a importância dos serviços públicos». E foi mais longe: «Este vírus mudou a natureza da incerteza, alargou essa incerteza».

Para o gestor, este é um debate que vai ser travado agora. No seu entender, «a esmagadora maioria do povo português percebe» a importância dos serviços públicos e o investimento que é preciso fazer «em toda a galáxia» dos serviços do Estado.

A administração pública foi, aliás, uma das áreas que receberam mais contributos durante o período de discussão pública do plano de Costa Silva que decorreu em agosto. «Temos uma Administração Pública muito orientada para a emissão de pareceres e pouco orientada para a resolução dos problemas, temos de mudar essa cultura», defendeu.

Ideias essas que levaram António Costa a considerar que um dos grandes desafios nacionais será o de compatibilizar o objetivo da eficiência e a luta contra a burocracia na utilização dos fundos europeus com a transparência e prevenção da corrupção.

O primeiro-ministro estimou em cerca de seis mil milhões de euros por ano o envelope financeiro anual disponível para o país nos próximos anos, quando Portugal apresenta como recorde num ano a utilização de fundos europeus na ordem dos três mil milhões de euros. «Estamos perante uma enorme responsabilidade e, por isso, era essencial ancorar este horizonte numa visão estratégica, porque um dos grandes riscos que temos na execução é perder-se a continuidade e cumulatividade que cada uma das medidas tem de possuir para que no final tudo bata certo».

 

O que pensa o paraministro

Depois da grande polémica, Costa Silva sai em sua defesa da ferrovia, insistindo na alta velocidade entre Porto e Lisboa. «O comboio deverá ser o principal meio de transporte nacional», diz o documento apresentado esta semana. A proposta deixa cair a adoção da bitola europeia, argumentando que o tema divide opiniões, o investimento seria colossal (e poderá sempre ser feito no futuro) e que para as ligações com Espanha, que antevê que possam ser a base do crescimento do hinterland ibérico (a expressão é repetida no documento, em português significará dinamizar o interior do país), é suficiente a bitola ibérica.

Um programa de qualificação de adultos, o aumento do investimento em programas de ação social para os ensinos básicos, secundário e superior e um programa de qualificação e modernização das redes de escolas e centros de formação são algumas das propostas do segundo eixo da visão estratégica, dedicado à qualificação e à ciência, que propõe ainda, para rejuvenescer o corpo docente, o investimento num programa de reformas antecipadas, negociadas com os professores mais idosos, e alargar o recrutamento de novos professores jovens.

Na saúde, a versão inicial do documento traçava objetivos gerais como um plano de investimento para reforçar o SNS e defendia também um programa nacional de investimento na prevenção de doenças, um plano para a investigação na área das ciências da saúde, um programa de investimento para as biotecnologias da saúde e outro para transformar Portugal numa ‘fábrica da Europa’ na produção de medicamentos e dispositivos médicos inovadores. Na senda da atual crise, Costa Silva advoga ainda a aposta nacional na fileira dos equipamentos de proteção. Em termos de grandes obras, além dos hospitais já planeados no SNS (e incluídos nos últimos Orçamentos), a aposta seria numa infraestrutura nacional de terapia oncológica com protões, convertendo o Centro Nuclear de Sacavém – um projeto que chegou a ser lançado na última legislatura, em 2018, quando o Governo aprovou orientações estratégicas para a criação desta nova unidade de tratamentos avançados em Loures. Das propostas recebidas no período de consulta pública, Costa Silva destaca a necessidade de investir na formação de profissionais e as «propostas de utilização de inteligência artificial e ciência de dados no tratamento da informação» de atos de gestão e de prestação de cuidados.

 

Reabilitação urbana em vez de novos bairros sociais

No eixo dedicado ao Estado social, a visão estratégica de Costa Silva reconhece que os programas de investimento não são novidade, mas passam a ser possíveis a uma nova escala. A recuperação do parque habitacional devoluto, em vez da construção de bairros sociais, e a qualificação de rede de cuidados para a população mais idosa são duas das áreas destacadas no documento apresentado em julho, que defende emprego social para pessoas menos qualificadas em áreas como a limpeza das florestas. O gestor propõe mudanças no financiamento da Segurança Social, hoje associado à remuneração do trabalho, propondo uma indexação ao rendimento das empresas. Se na proposta inicial se lia que o problema da demografia não se resolve só com políticas de apoio à natalidade, apontando-se à atração de mão-de-obra qualificada do exterior, da consulta pública vieram propostas de apoio à natalidade e a requalificação e alargamento da rede pública de creches, tema que tem sido debatido nos últimos Orçamentos e não surgia na proposta inicial. A desburocratização dos programas de combate à pobreza, a criação de mecanismos de microcrédito e a abertura da ADSE a todos os ativos com emprego foram outros contributos recebidos.

Um dos capítulos mais extensos da visão estratégica é dedicado ao hidrogénio verde e às centrais de biomassa, em que é proposto o investimento no cluster de engenharia de produtos e sistemas complexos com base nas tecnologias digitais, no cluster de indústrias e economia da defesa (que cobre as indústrias aeronáuticas e espacial) e no cluster das renováveis, e a aposta no hidrogénio verde – que o Governo fez descolar este verão com a apresentação do Plano Nacional de Hidrogénio, que tem suscitado críticas. No entanto, defende que o investimento deve ser encarado na senda da descarbonização do país. Aquacultura e pescas são outras áreas apontadas para investimento, assim como as centrais de biomassa.

Já no capítulo dedicado à reconversão industrial, o «reforço do apoio à internacionalização e a criação de enquadramentos específicos para o setor das startups de base tecnológica», além da reconversão da indústria automóvel para a componente da mobilidade sustentável, são apontados como prioridades. Dos contributos da discussão pública, outra das recomendações de Costa Silva na análise apresentada esta terça-feira prende-se com a necessidade de assegurar a transparência e proteger a livre concorrência no leilão de atribuição de frequências 5G.

 

O fracasso do autocarro

Quanto à transição energética e eletrificação da economia, o paraministro pretende reforçar a aposta na energia solar, na energia eólica no mar (offshore) e reforçar incentivos à instalação de painéis fotovoltaicos. «O aproveitamento de todas estas fontes pode permitir a exportação de energia, e para isso é preciso tratar das interligações entre a Península Ibérica e a França e também com o Norte de África».

Também a coesão do território, agricultura e floresta são consideradas prioritárias, com Costa Silva a defender projetos de ordenamento e valorização do território, como contratos de desenvolvimento territorial que juntem comunidades intermunicipais, universidades, politécnicos e associações empresariais, ou uma nova política fiscal para o interior do país, ao nível do IRC. O combate à desertificação, em particular no Baixo Alentejo e no norte do Algarve, é considerado urgente. Costa Silva propõe um novo programa, mobilizando academia e empresas, em diálogo com os países do norte de África. No setor agrícola, onde o Governo já avançou com um plano a dez anos, uma das propostas recebidas passa pela criação de um estatuto especial para agricultores inovadores.

Em relação à mobilidade, o consultor aposta num programa de eletrificação de frotas urbanas e o apoio à construção de ciclovias seriam algumas das apostas do gestor no campo da mobilidade, em busca de cidades mais verdes. Investir numa rede de metro de superfície e de elétricos nas grandes cidades, «como forma de minorar os efeitos do ‘fracasso’ do autocarro como meio de transporte público urbano, que se mostrou incapaz de dissuadir a utilização de viaturas particulares».

Depois de críticas do setor à visão estratégica apresentada em julho, Costa Silva sublinhou que o turismo é vital e deve ser sustentado. Apostar na diversificação da oferta turística, apoiando o desenvolvimento do turismo de saúde e bem-estar e do turismo cultural, promover os parques naturais do país e investir na requalificação do património arquitetónico português foram algumas das propostas recebidas nesta área. No comércio, a preocupação é a digitalização. Na cultura, as ideias de Costa Silva passam também pelo reforço das tecnologias digitais. No desporto, dois contributos convenceram Costa Silva: um programa de reabilitação de instalações desportivas, através de cofinanciamento de pequenas obras em clubes e associações desportivas de base local, e a promoção da marca ‘Portugal no Desporto’, tornando o país um destino para o turismo desportivo com enfoque nos desportos náuticos e promovendo junto de atletas nacionais e estrangeiros os 14 centros de alto rendimento que existem no país.