A cidade a que temos direito

Em várias cidades por este mundo fora as máscaras de protecção individual fazem parte do quotidiano de centenas de milhões de cidadãos muito antes da pandemia ter tapado a boca e o nariz da nossa vida colectiva. 

por José Pedro Rodrigues
Vereador da Mobilidade da Câmara Municipal de Matosinhos

A propósito da comemoração da Semana Europeia da Mobilidade, associada na sua edição de 2020 à mobilidade livre de emissões, tem vindo a relembrar-se que metade da humanidade já habita em cidades e que daqui a 30 anos 80% dos habitantes do planeta se concentrarão em cidades e mega-cidades. Sabendo-se que cerca de 30% das emissões poluentes nestes aglomerados urbanos estão associadas à satisfação das necessidades de mobilidade, e que a morte prematura relacionada a emissões poluentes atinge níveis perigosamente inéditos – por exemplo, aproximadamente 400 mil por ano, na Europa, segundo pesquisa da Agência Europeia do Ambiente –, o desafio da descarbonização neste sector e promoção de novos hábitos de mobilidade ganha reforçada actualidade. 

As cidades são inteligentes quando respondem eficazmente às necessidades dos cidadãos, quando colocam as pessoas no centro das transformações e atentam ao equilíbrio ecológico. Para esse objectivo, em matéria de transportes e mobilidade, não concorrem apenas novos recursos tecnológicos, capazes de medir o pulsar do movimento das cidades em tempo real, mas sobretudo o cumprimento de políticas de promoção do transporte público que durante demasiado tempo foram sendo secundarizadas. 

Não se trata portanto de um desafio novo. Apenas estamos confrontados com o resultado do apelo ecológico ter caído em saco roto durante décadas. As cidades foram deixando de ser ‘inteligentes’ quando cresceram sem que as redes de transportes públicos crescessem com elas, remetendo inevitavelmente o cidadão ao uso particular do automóvel e condicionando a essa circunstância as decisões funcionais do território, a distribuição dos serviços, a concentração de equipamentos, o desequilíbrio na ocupação do espaço. 

As recentes políticas de promoção do transporte público, por via da redução do custo dos passes e do aumento da sua intermodalidade nos núcleos metropolitanos do nosso país, podem ser decisivas para inverter esta tendência e recuperar a dimensão da mobilidade colectiva que faz bem às nossas cidades e ao orçamento das famílias. Mas, paralelamente à diminuição destes custos, é indispensável uma qualificação decisiva das operações, cobertura de rede, horários, frequências que sejam compatíveis com os ritmos de vida e as necessidades quotidianas das pessoas, agravadas pelo impacto da pandemia. Além do mais, esta transformação só será bem sucedida se conquistar os hábitos das gerações mais novas e há espaço para as políticas públicas municipais acelerarem esta mudança.

Sendo por si só uma vantagem na melhoria da qualidade de vida das cidades, a estabilização do serviço de transporte público abre também portas à consideração de medidas complementares de micro-mobilidade sustentável que podem decisivamente mudar os hábitos de quem circula nas nossas comunidades. Mais uma vez, colocando o cidadão e as suas necessidades no centro das transformações, os resultados podem ser entusiasmantes.

A partir de medidas e passos concretos que tenham sempre no horizonte a satisfação das necessidades das populações podem desenhar-se alternativas viáveis de mobilidade nos nossos territórios, criando condições para dispensar as viagens desnecessárias em automóvel, diminuindo emissões poluentes e o desperdício do espaço público, ganhando maior qualidade de vida e mais espaço para o que realmente importa: viver bem e saudavelmente. 

Com a consciência de que no nosso País, a geografia das transformações necessárias em matéria de transportes não se esgota nas fronteiras das cidades, mas implica estreito diálogo intermunicipal e patamares regionais com efectivas competências políticas e administrativas.

Desde o fim do século XIX que a filosofia materialista define a inteligência como o resultado da matéria altamente organizada: se concordarmos que a inteligência no planeamento urbano reside na capacidade de pensar e construir uma cidade democrática, que multiplica o acesso fácil a usos e serviços públicos de educação e saúde, espaços em que se respira cultura, desporto, lazer, ou simplesmente o descanso de um ar saudável, onde o local de emprego não fica todos os dias à distância de um tempo irritante, então a tecnologia poderá ser factor de inclusão e desenvolvimento e conseguiremos caminhar, nestas matérias, para um desejável equilíbrio ecológico e para a cidade a que temos direito.