Proust e o prisioneiro

O que guardamos dos livros que lemos? Qual a parte que fica retida nos esconsos da memória e qual a que se perde? E se estivermos a falar de uma obra monumental como Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, com os seus sete volumes, dezenas de personagens e milhares de páginas?

O pintor polaco Józef Czapski (1896-1993) descobriu a resposta a esta pergunta de forma dolorosa.

Nascido em Praga no seio de uma família aristocrática, licenciou-se em Direito em S. Petersburgo. Depois disso, passou pelo exército, entrou para a Academia de Belas-Artes de Cracóvia e, em 1924, entusiasmado com a arte moderna, instalou-se em Paris para se dedicar à pintura.

No final da década de 1930 regressou à Polónia e integrou o exército. Sabemos o que aconteceu a seguir: Ribbentrop, pela Alemanha, e Molotov, pela União Soviética, assinaram o famoso pacto de não agressão e a Polónia, entalada entre estes dois regimes totalitários, ficou totalmente impotente para travar a invasão nazi em setembro de 1939. Czapski, então com 43 anos, «foi capturado numa batalha contra os alemães, no entanto ele e o seu regimento viram-se feitos prisioneiros pelo Exército Vermelho», como explica o tradutor Eric Karpeles na introdução ao livro Lost Time – Lectures on Proust in a soviet prisoner camp.

Embora aquele não fosse de modo algum um lugar invejável, Czapski poderia dar-se por satisfeito caso soubesse que, na primavera de 1940, a nata do exército polaco tinha sido literalmente extirpada da face da Terra: no espaço de apenas um mês, 22 mil oficiais foram executados às ordens de Estaline. O pintor era um dos menos de 400 sobreviventes.

Presos num campo montado sobre um mosteiro demolido, 400 km a nordeste de Moscovo, Czapski e os seus companheiros de infortúnio decidiram dar uma série de palestras para combater a monotonia e o desalento. O pintor optou por falar sobre Proust e a sua obra, que começara a ler em 1926 quando estava em casa de um tio em Londres e a febre tifoide o condenara ao repouso. Mas como fazê-lo sem livros? É em momentos de dificuldade como este que as extraordinárias capacidades do intelecto humano se revelam em toda a sua magnitude. Aos poucos, Czapski começou a recordar as suas leituras tanto da Recherche como sobre a vida do seu autor, e montou um diagrama que lhe serviria de mapa e auxiliar de memória. Cerca de 40 compatriotas juntavam-se ao fim da tarde, vestidos com as roupas dos prisioneiros e calçados «com sapatos molhados», para o ouvir falar sobre o grande escritor. «Ainda consigo vê-los a formar um grupo compacto debaixo dos retratos de Marx, Lenine e Estaline, exaustos de trabalhar lá fora sob temperaturas que chegavam a descer aos 45 graus negativos, ouvindo com atenção palestras sobre temas muito afastados da situação em que nos encontrávamos», descreveria Czapski. À primeira vista, é estranho que a história de um burguês privilegiado, vivendo no luxo do seu apartamento sobreaquecido em Paris, pudesse interessar a homens que passavam por privações e dificuldades terríveis. O que tinha Proust para dar aos prisioneiros polacos? Estímulo intelectual? Sim, mas algo mais do que isso. Provavelmente também um pouco de conforto e de humanidade, dois antídotos preciosos, imagino, quando se vive um quotidiano cruel e desumano.