‘Fui convidado para fazer Gigis um pouco por todo o lado’

Pelo seu restaurante passaram milhares de figuras do mundo económico, político ou social, mas a grande estrela é mesmo Gigi, o chefe da Quinta do Lago. 

Uma figura incontornável do universo da restauração portuguesa. Pelo seu restaurante passaram milhares de figuras do mundo económico, político ou social, mas a grande estrela é mesmo Gigi, o chefe da Quinta do Lago. Com o seu feitio inconfundível, dá alma a um dos melhores restaurantes de peixe e marisco do país. Ontem fez 70 anos e faz um balanço da vida em tempos de pandemia. Bernardo Reino, vulgo Gigi, enfrentou recentemente um cancro e explica como esse alien devia deixar as crianças em paz. Durante o confinamento, os vídeos em que mostrava a preparação de alguns dos seus manjares favoritos tornaram-se virais. Começámos a entrevista no restaurante, mas rapidamente percebemos que teríamos que escolher um lugar onde não fosse tão solicitado. Seguimos então para a sua casa, onde já cozinhou um peixe no forno para Carolina do Mónaco.

36 anos de restaurante, 70 anos de vida. Nestes anos qual foi a principal transformação do mundo?

Eu trabalhava em seguros, tinha saído da tropa. E hoje em dia penso que ainda bem que saí. Houve as fusões, na altura em que os seguros e bancos ainda eram coisas recomendáveis. No meu tempo – nos anos 60, 70 – os banqueiros ainda tomavam conta do dinheiro dos contribuintes, o dinheiro dos contribuintes era sagrado. E nos seguros a mesma coisa. Anos depois cheguei à conclusão de que uma das primeiras mudanças do mundo foi essa.

Os banqueiros e os seguros deixaram de ser respeitáveis?

Houve umas fusões – eu também estava um pouco desmotivado, tinha vontade de ter uma loja de vinho e nessa altura fiz uma loja do vinho no Bairro Alto que correu lindamente. Queria mudar, estava a imaginar-me aos 60 anos barrigudo de whisky em balão. E disse: ‘Ou mudo agora ou não mudo’. Tiveram uma grande influência as minhas idas ao Brasil com os meus irmãos, que já na altura tinham uma pousada em Búzios, com um grande restaurante. Tiveram também uma grande influência os meus amigos Joaquim Machaz [um dos donos do hotel Tivoli], e o Manecas Moceleck [figura carismática da noite lisboeta dos anos 80 que esteve à frente das discotecas Stones e Bananas] e isto começa com esse caldeirão, digamos assim. Resolvi mudar. E as coisas proporcionaram-se. Na altura fiz o seguro de um helicóptero e até ainda me lembro da matrícula. Era o CSAI, de uma companhia chamada Heliávia. E depois do seguro – que era de um amigo comum nosso – foram feitos uns voos de divulgação. E um dos voos calhou com a abertura do Bananas em Vale de Lobo. E nós viemos de helicóptero para o Algarve. O Manecas, o dono do helicóptero e eu. A Heliávia hoje em dia é uma companhia de alugueres mas na altura foi uma coisa muito inovadora… um helicóptero em Portugal? Estamos a falar de 84, ainda não tínhamos entrado para a CEE. Viajar de helicóptero em Portugal, uma coisa que agora é comum, na altura era surreal. O Manecas estava, justamente, a fazer um Bananas em Vale de Lobo em 84. E nesse ano nós passávamos a vida a ir almoçar ao Passos, na praia do Ancão. No Passos havia uma carne magnífica, que era o T-bone, mas eu, se como dois dias carne, ao terceiro já não consigo. Então desafiava o Manecas para irmos pela praia até à da Quinta do Lago, ao restaurante onde estou hoje, de uns chilenos, os Naraianos. Tinham um conjunto musical, e chegaram do Chile, fugidos do Pinochet, a quem o André Jordan [então dono da Quinta do Lago], como sempre, abriu portas. O André Jordan tinha sempre uma porta aberta para refugiados, pois ele próprio o foi durante a II Grande Guerra. Como a Quinta do Lago estava no arranque, eles abriram o restaurante, e a especialidade era o ceviche. Na altura desafiei várias pessoas para irem comer o ceviche, mas quase ninguém queria. Eu pagava três doses e comia sete ou oito!Hoje está na moda e todos o querem. Entretanto, o Manecas acaba o contrato do Bananas e no ano seguinte é desafiado para vir para a Quinta do Lago. Convida-me e eu disse-lhe que colaborava, mas não ia estragar a nossa amizade, até porque tinha a loja do vinho em Lisboa que estava a correr lindamente. O Manecas meteu um amigo nosso em comum como sócio dele, que era o Tó Felizardo, companheiro das corridas. Mas eu colaborei. Houve esse ano de colaboração. Entretanto volto ao Brasil e no ano a seguir regresso a Portugal com a ideia de comprar o Quebra Coco, na praia dos Tomates, ou outro restaurante junto à praia. Quando disse ao Manecas, em Lisboa, que fui lá abaixo para comprar o Quebra Coco’, ele perguntou-me por que não ficava com o restaurante. Quando ele me disse que não ia continuar, marquei um almoço com o André Jordan, na Pérola, por intermédio de um amigo nosso, Filipe Vieira da Rocha. E foi assim, viemos para o Algarve. Por incrível que pareça, a última companhia de seguros onde trabalhei, hoje em dia a Allianz, deu-me uma licença sem vencimento de seis meses convencida que eu ia voltar. Aí o André Jordan também fez um contrato de seis meses à experiência, renovável. Falei no projeto, mas verdadeiramente o que tinha em mente, e a falsa modéstia é a pior das vaidades, era aos 34 anos fazer um verdadeiro projeto de praia – na altura os restaurantes tinham sardinha, sol, sangrias tintas com licor e vinhos em wine cooler… 

Não começou com sandes?
Não, não. Elitizei. Nunca tive sandes. Tive salada de atum com feijão frade, começou assim. E com peixe grelhado. Muito rusticamente. Na verdade, elitizei, mantendo uma traça, o elegante rústico, digamos assim. Nessa altura, inclusive, a Gigi Bola, foi inventada aqui.

Ideia sua?
Eu e o meu querido ‘irmão’ Machaz bebíamos uma coisa que era a Bola Bola, conhecida como pêssego bellini – consiste em picar o pêssego e juntar espumante, no final dá para comer o fruto. Fazia isso já na loja de vinhos no Bairro Alto, com um espumante que era do Luís Pato. Quando cheguei cá abaixo a coisa surgiu. Primeiro comecei com os pêssegos mas a seguir aos pêssegos veio o sumo de laranja. A Bola Bola foi evoluindo e eu deixei o nome Gigi Bola. Gigi da minha parte e Bolas que era o nome que eu chamava ao Machaz. Há 36 anos. A coisa correu muito bem, mas muito timidamente ao princípio. 

Vivia na parte de baixo do restaurante?
Sim, vivia. Tínhamos um apartamento em Vilamoura mas os filhos fizeram uma ‘ditadura’ para vir para aqui. Aliás, praticamente era uma casa na praia. Agora está muito na moda alugar casas na praia. Na altura tínhamos aqui um quarto enorme, que hoje é o armazém dos vinhos. Mas tínhamos dois quartos, na verdade. Encarei isto como um projeto de vida. Tinha vendido tudo, a minha casa de Sintra, a Rei Seguro, que era uma seguradora que tinha com o António Ferreira de Almeida, ligado aos carros antigos, de que eu já partilhava o gosto. Na verdade, estava mesmo com um projeto de mudança de vida. Não quer dizer que agora não mude de vida aos 70. Como dizia o professor Celestino da Costa: ‘Ó Gigi, a gente pode ir fazendo projetos até aos 100 e depois logo se vê’.

Mas não havia o restaurante Flor da Várzea em Sintra?
Isso foi o recurso para empregar o meu pessoal daqui do Algarve no inverno; também continuei com a loja do vinho. A loja do vinho foi uma coisa muito fascinante para mim porque era no Bairro Alto, foi um sucesso, precisamente em frente à ABola. Na altura havia o Vítor Santos, Aurélio Márcio, Farinha… que eram grande nomes do jornalismo e passavam por lá. Na verdade até aconteceu um fenómeno engraçado, que foi terem feito uma notícia sobre a minha loja de vinho – um jornal desportivo que só dava notícias de desporto! O título era ‘Amigos e vizinhos’, isto em 1984/85. 

Como se chamava a loja?
Bezanas Wine Shop, uma loja pequenina mas com os melhores vinhos. Tinha saído dos seguros, que era um negócio responsável, muito difícil…

Mas saiu porquê?
Não queria estar metido em fusões de pessoas e de companhias. Começaram as grandes fusões nessa altura. Tanto de companhias como depois de bancos, mais tarde. Não quis entrar nesse projeto, mas a loja do vinho era uma coisa fascinante porque vendia muito, fosse em provas, no Natal ou ao Pap’Açorda. Na altura o Bairro Alto era uma fábula, uma coisa extraordinária, havia o Frágil, a loucura dos anos 70, 80… E se alguém no Pap’Açorda pedia um vinho que não estava na carta, perguntavam se eu tinha – por exemplo, o Barca Velha de 64. E eu tinha. Mandavam buscar, pediam o preço, fazíamos contas… Um cliente que pede um Barca Velha não pergunta o preço. Ganhava o Pap’Açorda e ganhava eu.

Uns anos depois fez um leilão de vinhos e alguns atingiram preços exorbitantes.
Uma Magnum de 57 foi vendida por 2000 ou 3000 euros para colecionadores. Voltando às praias, digo que a grande inovação das praias talvez tenha começado um pouco em mim. Antes era sardinha, sol, moscas e sangria tinta com licores. Nas praias do Algarve não havia frapés com gelo. Havia wine cooler em barro, aqueles termos onde se mete a garrafa lá dentro. Havia uma exceção aqui no Algarve que já fechou, infelizmente. Era um restaurante fantástico mas não era bem de praia. Era o Camané, na ilha de Faro. Era um grande restaurante de cozinha algarvia, já inovado, já tinha louças personalizadas. Antes não havia isso, como eu tenho agora. Antes era travessas de inox ou de barro, como também tive ao princípio.

Como caracteriza o seu tipo de clientes na altura?
Eram estrangeiros, residentes e visitantes da Quinta do Lago, onde eu apostei. É dessa altura que vêm os Agnelli e o conde de Lesseps, por exemplo. Sempre tive o apoio tanto do André Jordan – que era o dono da Quinta do Lago, e é como família para mim – como de um André também importantíssimo na minha vida, que era o André Gonçalves Pereira, o professor. O professor deu-me um grande apoio sempre, um apoio embirrento. Tenho saudades das embirrações dele. O professor geria muito bem a coisa e alimentava os dois restaurantes.

Quais?
O Passos e o Gigi. Os portugueses adoram polémicas, por isso é que há aqueles programas de futebol. O português não gosta de dizer que gostou de dois restaurantes. É como o tempo. Ou se queixa de que está frio ou de que está calor, ou que está de chuva…

Que episódios mais estranhos teve nos últimos tempos?
Um grupo de chineses que veio de avião privado de Xangai, para investir na Quinta do Lago. Rigorosamente eles vinham para ver coisas no Algarve. Odiaram a Quinta do Lago porque os chineses têm duas coisas que não gostam. Primeiro é atravessar uma ponte com chapéus de chuva; a outra é medo de tsunamis.

Como assim?
O chinês bronzeado é pobre. Por isso, o chinês milionário tem de ser branquinho, não ter um raio de sol no corpo. A única coisa que salvou aquilo foram os camarões tigres e os carabineiros. Até levaram. Fizeram uma encomenda, levaram para o hotel, estenderam tudo em cima da cama. Os chineses aqui junto à praia têm medo de tsunamis. Cheira-lhes… Aqui nunca tivemos um tsunami mas aquele enquadramento da ria… faz-lhes confusão. Ficaram encantados com a comida, mas não compraram nada na Quinta do Lago porque há outra coisa que os chineses não gostam: de sítios com pouca gente. Foram para Vilamoura, gostaram dos prédios mas ficaram fascinados com uma placa que dizia ‘Casino’….

Já que fala em tsunamis. Lembra-se da célebre nuvem que foi confundida com um tsunami aqui no Algarve?
Houve uma nuvem que surgiu no mar e as pessoas inventaram que era uma onda. Não me lembro há quanto tempo é que isso foi. E as pessoas diziam que estava uma onda gigante a aproximar-se da praia, em quase todo o Algarve. A praia foi evacuada com ordens da Marinha. E depois aconteceu um episódio insólito: estava uma senhora a chorar, à procura do marido que tinha desaparecido. Entre a minha praia e a ilha de Faro existe uma com prostitutos gay. Estava a praia completamente evacuada e às tantas vem o marido, muito satisfeito, a andar para cá e a perguntar o que é que se tinha passado. Acho que a mulher nesse dia descobriu. Ele disse que tinha ido dar uma volta a pé. Tinha desaparecido durante uma hora…

Diz que tem a sensação que o seu mundo está a acabar. Porquê?
O meu mundo está a acabar porque, na verdade, quando cheguei aqui, em 1986 – antes colaborei com o Manecas mas não era sócio – foi o ano da entrada da CEE. Sou europeu, acreditava na esperança europeia, a alegria de entrar na Europa… até me lembro de um episódio que se passou com uma figura que já morreu, Cabrita Neto, que era governador civil. Ele foi entrevistado por uma revista alemã e a alegria dele era tão grande que chegou à praia de fato de governador, cinzento, com meias de algodão pelo joelho, sapatos de atacador… e para a revista europeia – nunca mais me esqueço disso – nesse agosto de 86, estava uma maré baixa, ele tirou a gravata e as meias, arregaçou as calças até ao joelho e pôs-se dentro de água com a bandeira da Comunidade Europeia. Esse sentimento do Cabrita Neto era partilhado por mim e acho que por Portugal inteiro. Neste momento põe-me triste o espírito europeu. O espírito de desilusão da Europa, da saída do Reino Unido. O Reino Unido vem para o Algarve há 100 anos. Os ingleses é que fizeram o Algarve. Albufeira, Alvor, todo o Algarve foi descoberto pelos ingleses e os ingleses já vinham para o Algarve antes de entrarem para a União Europeia. Então porquê esse alarmismo de os ingleses não voltarem ao Algarve? Não voltam como europeus, pertencentes à comunidade, mas voltam como estrangeiros, como se viu. Os ingleses nunca abandonariam o Algarve. Mas a tendência para a notícia dramática… mas eu sou um europeu convicto e gostava de ainda assistir aos Estados Unidos da Europa. E o Algarve ser a Califórnia.

Mas diz que há coisas que acha que são sinais do fim do mundo, como as pessoas não comunicarem entre elas e estarem sempre agarradas ao telemóvel.
É uma tristeza a maneira como as pessoas estão sentadas à mesa. Os miúdos com o seu iPhone e os pais também. As pessoas não comunicam, não há diálogo. Os ingleses continuam a dispensar os telemóveis, os alemães também. A nova geração de pessoas latinas é muito mais agarrada ao telemóvel. 

No seu tempo era diferente.
Eu sou o último dos moicanos.Gosto de falar com os clientes, de ir ao mercado comprar o peixe e de falar com a Beatriz [a peixeira], de ir aos supermercados…Gosto de estar presente.

Mas por que diz isso?
Ainda acho piada conviver com as pessoas, olhá-las de frente… Fui convidado para fazer Gigis um pouco por todo o lado. Lisboa, Porto, Londres, Nova Iorque… O James Sherwood, da Orient Express, convidou-me para abrir na Tailândia, nas Caraíbas, mas eu adoro seguir a máxima que vi num restaurante três estrelas em Paris: ‘Ici le patron mange toujours à la maison’ [aqui o patrão come todos os dias em casa]. Essa treta de ter o nome e não estar nos sítios não dá para mim.

Durante muitos anos viajou. Hoje é um pouco contra as viagens.
Viajei muito. Tive a sorte de viajar tanto em aviões privados como em companhias como a TAP, em sítios onde os aeroportos ainda tinham um bom restaurante. Hoje em dia os aeroportos são feitos de fast food. Cheiram mal, acima de tudo. E tenho um lema: só saio da minha casa para melhor. Para pior, fico em casa. 

Nestes 36 anos conheceu muitas pessoas e dava-lhe gozo ser reconhecido quando ia a Londres visitar o seu filho.
Era reconhecido na rua e reconhecido em bares, já não falando em restaurantes. 60% da minha clientela inglesa pertencia a Londres. Mas da última vez que fui a Londres, assisti a uma nova realidade. Uma vez ia atravessar uma passadeira, com o meu filho, ao pé do Harrods, e estava numa rua e fui parar a outra. Fui levado numa leva de chineses por aí fora. Fui sair 20 metros à frente.

Já tem aqui muitas gerações de clientes.
Sim, já vamos na terceira geração. Conheci os pais, os filhos e já vou nos netos. As primeiras famílias grandes que estiveram na Quinta do Lago, continuam a vir. Vêm os netos do conde Lesseps, os netos dos Agnelli, dos belgas que foram a primeira grande colónia que veio para aqui.

Falando em celebridades…
Tive a honra e orgulho de partilhar momentos com muitas celebridades, mas para falar de todos não chegava este jornal. Hoje em dia praticamente não vejo televisão por uma razão muito simples: há uma coisa que me irrita, entre aspas, os famosos. Criou-se aqui os famosos. Os verdadeiros famosos são uma data de portugueses que andam no estrangeiro, cientistas, banqueiros como o Horta Osório, jogadores de futebol como o Cristiano Ronaldo. Hoje em dia vê-se numa banca de jornais os famosos e são figuras que não fizeram nada de meritório. Esses famosos chegam ali a Badajoz e ninguém os conhece.

Estamos em sua casa. Já esteve aqui a jantar a Carolina do Mónaco…
Esteve, com o príncipe Hanôver, que era o seu marido. Ele hoje em dia está a passar um período difícil. Conheci também a primeira mulher dele e depois a Carolina. Ele seguiu outros caminhos mas o príncipe era das pessoas mais simples que passou por aqui, uma simplicidade extrema. Não gostava de ser incomodado por paparazzis.

Foi o Gigi que cozinhou?
Cozinhei uma dourada no forno. As lulas recheadas foram feitas pela mãe da Beatriz, a minha peixeira fornecedora de peixe de Quarteira, que era uma figura única. Fazia as lulas à moda do Algarve, Algarve puro. Traçadas com os paus dos oregãos e só com lula. Lula, tomate e batata doce, que agora está na moda. Foi um show.

Durante muitos anos bebeu muito.
No meu restaurante sempre bebi duas garrafas de vinho por dia.

Mas bebia garrafas de whisky.
Cá fora. Hoje estou diferente. Já não há quórum de amigos à mesa. Alguns não estão cá. Hoje em dia estou mais ligado aos fermentados. Só bebo vinho, raramente cerveja, e tequila por piada. A minha garrafa de mesa é vinho. O meu restaurante sempre vendeu muito vinho porque eu bebia. Era uma espécie de bom exemplo. Agora bebo normalmente uma por dia. Tenho evitado o champanhe. Bebia por causa da piada de abrir ao sabre.
Em determinada altura, recordo-me, os pescadores da família da Beatriz ligavam-lhe a dizer que tinham um barco cheio de lagostas. Quando chegava ao restaurante colocava-se logo na sua mesa a comer as lagostas. Para quê?
Para vender. E não deixava que levantassem as cascas. Curiosamente, o ser humano – o português não tem muito esse hábito mas vamos tendo – gosta de ver, come com os olhos. E os clientes quando passavam viam o que eu estava a almoçar e automaticamente pediam.

Ainda faz isso?
Faço, faço sempre. Faz parte. Há uma coisa aqui que as pessoas não perceberam. Fiz várias viagens graças a um amigo meu brasileiro, Luís António Almeida Braga, que levou o Ferran Adrià [chef do El Bulli] ao Brasil. Cheguei a ‘papar’ 24 estrelas Michelin numa viagem em Espanha. Tem duas características interessantes: só tem turistas, não tem naturais da terra. O restaurante, para mim, em Portugal, tem de ter portugueses. Se só tiver chineses, japoneses e até brasileiros, é um restaurante de cozinha internacional. A nossa característica – há males que vêm por bem – foi sempre a mesma: não entrámos neste deslumbramento de novo-riquismo que é a atração pelas estrelas e pela cozinha que antigamente se chamava cozinha de hotel. Que não fumega. A cozinha de apresentação minimalista. A quantidade de restaurantes que abriram tanto na Catalunha como no País Basco com nomes estranhíssimos e que fecharam. Cheguei a ir a San Sebastian a uma concentração de cozinheiros e os chefs faziam a demonstração dos vapores e das espumas e depois iam enfardar tapas e pinchos para uma tasca.

Mas teve um certo deslumbramento quando ia a esses sítios. Diz que papou 24 estrelas Michelin…
Não tinha um deslumbramento, era convidado e gostava. É cozinha de um dia só mas é uma cozinha cansativa. Come-se 35 ou 40 pratos minimalistas. No dia seguinte já não se pode lá ir. Mas o meu preferido foi o Robuchon.

As pessoas perguntam onde aprendeu aquilo que sai do seu restaurante… Onde se inspirou?
Talvez com o meu irmão Miguel, que é um belíssimo cozinheiro. Comecei a cozinhar por prazer para receber os meus amigos. Depois a parte técnica talvez com o meu irmão, que trabalhou comigo. Na parte técnica o meu irmão tem uma mão natural. Ele está a sofrer mais que eu com a covid-19 mas tem fanáticos da cozinha dele. Tem um jeito natural para a cozinha e fez sucesso tanto aqui como no Brasil. No Brasil ele trabalhou com o Gaston Lenôtre. O Brasil é um bom exemplo para o que eu estou a dizer: todos os grandes cozinheiros chegaram ao Brasil e já voaram, como aqui. Houve grandes cozinheiros que trabalharam na Quinta do Lago mas que foram para Lisboa quando houve o deslumbramento das estrelas Michelin. Onde é que eles estão? E porque é que o Claude Troisgros, grande amigo do Avillez, é uma grande estrela no Brasil, até apareceu em programas com o Avillez antes da pandemia. Porque é uma estrela de televisão, mas teve de se adaptar à cozinha brasileira, ao feijão com arroz, ao abacaxi… Os próprios restaurantes em França tiveram uma crise… Esse deslumbramento dos cozinheiros pelos flashs e pelas televisões… Há uma frase no último livro do Paul Bocuse, que se chama Le Feu Sacré, que dá para pensar: «Aconselho os senhores cozinheiros a largarem o calor dos flashes e os holofotes da televisão e voltarem ao calor dos fogões». 

Mas quando está em Lisboa de férias também vai ao Avillez ou ao JNcQUOIS…
Vou, por amizade. Sou um homem de hábitos primários. Aqui gosto do Jacinto, em Quarteira, em Lisboa gosto da Mascote do Sacramento, faz uma comida fumegante, beirã, de cabrito de Castro Daire no forno, pescadinhas de rabo na boca com arroz de grelos… E o Aqui Há Peixe… mas seria suspeito eu falar do meu irmão. Qual é a razão de eu gostar do JNcQUOI, tanto o velho como o Asia? Quando vou, vou por tradição com as minhas netas. Gosto do Asia e do JNcQUOI de cima, onde fiz um trabalho, eles convidaram-me, fui lá fazer uns carabineiros. Quando estou lá parece parece que estou no estrangeiro, não preciso de ir para um aeroporto mal cheiroso para ir ao estrangeiro.

O que acha do fenómeno de Ljubomir Stanisic?
Não comento porque não conheço o Ljubomir. Mas acho que as pessoas gostam mais do programa de televisão por causa da porrada do que da cozinha. Apesar de ele ser um bom cozinheiro, as pessoas vão para aqueles programas porque hoje em dia gostam de sangue. Abre-se a televisão e é sangue. Sangue e escândalo. Aliás, seja isso ou seja as redes sociais… Gosto de elogios e gosto de prémios. Não gosto de internet. O esgoto da internet faz-me lembrar as portas das casas de banho das bombas de gasolina. Quem lá escreve não põe o nome e não se identifica. A internet também não se identifica.

Por que acha que há tantas proibições agora?
Agora é tudo proibições e leis e leizinhas, o que faz lembrar uma frase de Tácito, político romano: «Quando a República está corrupta, numerosas são as leis». A frase não é minha, é dele. Claro que a pandemia é uma tragédia mundial. Estive dois meses fechado e o nosso caso nem foi dos piores. Tivemos que nos adaptar e cumprir as regras, mas uma das coisas que o meu restaurante perdeu foi o riso e a gargalhada e com a máscara não dá para rir nem gargalhar, portanto uma pessoa com a máscara só vê os olhos, não tem a noção se a pessoa está a rir ou de cara séria. É um período excecional de grande stresse. Os estrangeiros, regra geral, cumprem a obrigatoriedade da máscara, mas alguns portugueses, os meninos blasés, gostam de se exibir dizendo que se esqueceram da trazer. Digo-lhes logo que têm de a usar até chegarem à mesa e que eu não sou chinês nem fui eu que criei a lei.

Este ano foi muito difícil para toda a gente. Viveu o confinamento com a sua mulher.

Ainda abri o restaurante, a 11 de março, com italianos, a correr muito bem. Estava aí um membro da família Agnelli e até demos abraços, apesar de ele ser italiano – eu próprio não tinha ainda a noção do que vinha aí. Fechámos depois a 18 março. Já havia umas notícias sobre o problema gravíssimo de Itália, ainda não tinha chegado à França nem a Espanha. Não tinha propriamente a noção, mandei uma mensagem ao pessoal. Na minha vida, isto foi a coisa mais grave que vivi.

Porquê?
Fechou o mundo. Fechámos e fomos para casa. Não podia ir a Lisboa, fiquei afastado da família e ficámos aí. Tinha o restaurante cheio de produtos, os meus filhos ofereceram-me um telefone moderno e transformei aquilo numa câmara de filmar. Pus a Leonor como ‘camaramen’ [faz questão de dizer camaramen] e dei largas à imaginação. Como não tínhamos nada para fazer, não podia ir a restaurantes e tinha de cozinhar, transformámos aquilo numa diversão de confinamento. Ela a filmar e depois, eu como sou um bocadinho trapalhão, comecei a ver que me enrolo muito nas palavras e digo muitas coisas ao mesmo tempo. Aquilo serviu para me começar a centrar num tema só. Nunca repetimos. Vá, para não ser mentiroso, repetimos três vezes. Era tudo à primeira e eu, justamente, tinha uma ideia, via o que tinha no frigorífico ou na praia e transformava isso num ‘Hoje vai ser…’. Começámos a fazer aquilo para mandar à família, depois aos amigos e curiosamente aquilo teve um grande retorno. Começou a aparecer no SOL, pela amizade. Teve um retorno que nem eu imaginava porque no fundo estava tudo confinado e as pessoas na televisão só viam desgraças…

Mas o que era isso?
Era eu a fazer receitas do mais simples que há. Tenho três tomates, faço tomatada com ovos escalfados. Surgia no momento, o que havia no dia. E comecei a ser arrastado para o que havia e para o que tinha. 

Nesse momento teve saudades da família e dos amigos.
Muitas saudades. Se não fosse isto… E do Hotel da Lapa. O Hotel da Lapa é o meu bar lá de casa quando estou em Lisboa. Fica a 500 metros da minha casa é como aqui o Melting Pot. Não bebo em casa. Tenho evitado sair à noite. No caso do confinamento custou-me muito não ir ao Hotel da Lapa, apesar de ter muitos amigos que não gostam de ir lá, mesmo havendo dois barmen do melhor que há, gelo e bebida e um pianista. Eles dizem que aquilo não tem interesse porque não está lá ninguém. Um bar não é para estarem ajuntamentos, é para saborear uma bebida.

Diz que não gosta de filas…
Os portugueses gostam de filas (não se pode dizer bicha). No tempo da ditadura, uma das anedotas que contavam contra o Salazar era essa da bicha. Diziam que um americano tinha vindo a Lisboa e dizia ‘quero beber um copo’ – ‘vá para a bicha’. ‘Quero andar de barco’. ‘Tem de tirar um requerimento, vá para a bicha’. E ele perguntava ‘mas quem foi que inventou a bicha?’. ‘Foi o Salazar’. ‘Então vou matar o Salazar’. ‘Vá para a bicha’ (risos). O português se tiver uma praia deserta não vai para lá. Se tiver uma praia com ajuntamentos ou um restaurante, vai para a fila. É verdade. É aquela coisa da fila que, hoje em dia, para o português, é uma coisa deslumbrante. A fila da discoteca Lux…

Tem uma certa alergia ao anonimato da internet mas continua a ler jornais em papel…
Só leio jornais em papel. Mas de preferência leio livros. Tenho o fascínio do papel. De andar de comboio e ler, dos CTT para mandar cartas com selos e o papel. Sou fascinado em comprar um jornal. Faço minhas as palavras do Carlos Tê. Uma vez vinha num Alfa Pendular para baixo e ele estava a dar uma entrevista no Porto Canal e dizia: ‘Nada me pode tirar o prazer de ir a uma pastelaria – ele disse o nome lá no Porto mas não me lembro – e pedir um café, o cigarro e o jornal’. E o entrevistador disse que agora já não se podia fumar dentro dos sítios. Ele disse que ia para o sítio dos fumadores e o entrevistado pergunta: ‘Então e se tivesse só o jornal e o café?’. E ele diz: ‘Já não é a mesma coisa’. Aquele prazer do cigarro para quem gosta de ler o papel… Também faço minhas as palavras do Pacheco Pereira que no outro dia disse: «Duvido que alguém leia a Guerra e Paz na internet».

Há uma expressão sua sobre lavagem ao cérebro que acontece hoje em dia na comunicação social…
Sim, é uma lavagem ao cérebro. Como é que alguém pode chegar a uma banca e ver 10 revistas com 10 Cristinas Ferreiras? Tem valor de certeza, é da Malveira, uma terra que estimo muito, onde o Chico Carreira comprava os bifes. Como é que alguém pode levar dias e dias com 10 capas iguais? A parte do telemóvel deixa-me a pensar muito. Antigamente quando duas pessoas estavam dentro do carro e tinham os olhos nas pernas, seguramente estavam a fazer charros. Agora estão a mandar mensagens no Facebook. Na estrada então o que acontece muito é se virem alguém a 30 à hora e o carro andar aos ziguezagues, já não é um bêbado, é alguém que vai a olhar para o telemóvel. Cuidado que já não é um bêbado. Irrita-me também esta riqueza – não tenho inveja – milionária das grandes fortunas do Bill Gates, do Zuckerberg. Antigamente os ricos viviam à rica. Desde charutos a choffers, criavam empregos. Só nas casas deles tinham para aí uns 30 empregados. Lavadeiras, engomadeiras… no fundo estavam a criar trabalho. Hoje têm robots e não têm empregados. Hoje em dia quem tem empregados e quem fomenta trabalho e emprego é uma classe média alta.

Nas suas festas de aniversário, em que os convidados não pagam nada, a não ser uma gorjeta simpática para os empregados, sempre contribuiu para…
A Associação Sócio Cultural de Almancil. Têm uma obra criada, foi uma sensação… O presente [um cheque] dos meus amigos há muitos anos que é para essa associação. Agora perdi um grande amigo, que foi um dinamizador, que era o Hermes Alberto, chefe aqui da segurança da Quinta do Lago. Ele uma vez pediu a um residente da Quinta uma verba para cadeiras de rodas. O homem deu uma verba para 50 cadeiras. Gosto de contribuir para coisas que se veem. Eles fizeram mesmo uma associação com ajuda e alimentação ambulatória à casa das pessoas e dos velhotes que não podem e alguns ficaram lá confinados. 

Sobre o confinamento. É um avô e um pai babado, como foi estar tanto tempo afastado?
Foi duro mas aí tenho de reconhecer e agradecer ao WhatsApp. Sem estar a engolir sapos e a meter a internet pela boca dentro, aí o WhatsApp foi uma coisa útil, para falarmos ao vivo. Não há dúvida que ajuda a matar saudades. Às vezes cria mais. Quando acabava a chamada ficava ali um vazio. O contacto humano é a coisa mais importante.

Qual é o seu empregado mais antigo?
A Célia é a pessoa mais antiga. Está há 35 anos. Esteve dois anos na Suíça mas voltou. Mas tenho um orgulho de ter mantido os empregos do pessoal. Já tive mais mulheres do que homens, além de ter tido o mundo português inteiro: moçambicanas, brasileiros, cabo-verdianas, angolanas… Adoro a diversidade do mundo, já passaram por aqui ucranianos, romenos, alentejanos, algarvios! Para mim não há credos, só há duas espécies de pessoas: as boas e as más, e, felizmente, ainda há muito boa gente. Eu olho para eles e já estão ali há uma vida inteira, nem consigo contabilizar os anos.

Tem dois gostos muitos especiais: a coleção de arte e os carros antigos. A coleção de arte foi muito alimentada no Centro Cultural de São Lourenço…
Praticamente. Tenho umas saudades do Centro Cultural como se fosse de um parente. O Centro Cultural para mim foi a coisa mais importante do Algarve, até me emociono um pouco quando falo nisso. Começou exatamente no ano a seguir a eu chegar cá, em 87, era uma mística. Vinham músicos, orquestras filarmónicas de Berlim e tudo. Punham as cadeiras e davam umas tardes de música. Havia uma associação de amigos da música de São Lourenço. O Volker Huber, o dono, trazia grandes artistas, como o Günter Grass, alguns viveram aqui na serra do Algarve. Hoje em dia muitos foram embora e alguns morreram mas o grande fascínio do Volker por mim foi que inclusivamente nós trocámos muitas vezes quadros por eu cozinhar no Centro Cultural ou por refeições noGigi. Quando apareciam artistas novos com talento ele guardava sempre um quadro para mim. 

Qual foi o primeiro carro antigo que comprou?
Um Camaro. Às tantas tive um sócio, o António Ferreira de Almeida, que tinha uma super coleção de carros antigos, 300 carros, como comerciante. Começou com ele essa mania dos carros antigos e os melhores que ainda conservo foi de trocas nos anos 80. Os Jaguares, um de alumínio, como o de corrida.

Tem carros que valem algum dinheiro…
Valem quando vender. Mas não tenciono, vou deixar para os filhos.

Qual é o mais emblemático?
Esse Jaguar xk120. Inaugurou o grande prémio do Porto. Aquiles Brito, o corredor, vendou-o a um amigo chamado Álvaro Portela, que é nem mais nem menos do que o avô e fundador da Bial. Eles não se interessam por carros mas no Porto já houve muitos descendentes dos Portelas que mo quiseram comprar. Mas eu não vendo.

Foi-lhe diagnosticado um cancro na próstata no ano passado…
Na verdade eu já andava com o cancro há quatro anos. Praticamente igual ao Michael Douglas no Kominsky. Teria, como dizia o indivíduo que fazia de médico, um cancro caracol, uma ameaça de cancro, andava a enrolar o cancro. Na verdade o cancro não é uma doença, é um alien dentro da gente, é um animal que anda cá dentro. O ano passado, em agosto, verdadeiramente fui encostado à parede, entre aspas, por dois grandes médicos: o meu urologista, dr. Ferrito, na CUF, e pelo dr. João Cruz. Fazia ressonâncias magnéticas em fevereiro e só as levantava em outubro. E na última, eu andava com o cancro, com esse animal dentro de mim como se fosse um caracol, e ele nesse ano, saltou de caracol para tartaruga. Quando cheguei, em outubro, fui fazer uma consulta de rotina e o médico disse que eu já não saía dali. E eu disse que saía. Só há três coisas que verdadeiramente me incomodam: perder um descendente, ficar numa cadeira de rodas e Parkinson que entorno os copos todos. O médico chamou-me maluco. Tive um choque, tenho sempre. Tenho uma nora que passou por isso, o meu filho vive isso há anos. Não disse nada no restaurante, não alarmei ninguém e fui fazer os exames. Já não dava para fazer a radioterapia das sementes. Aí respeitei os médicos. Tinha realmente um cancro na próstata e nas vesículas seminais. Ele tinha alastrado. Aí assustei-me um bocadinho. Se tinha metástases ou não… Não tinha, foi uma notícia boa. Tive de fazer mais uma biópsia. Continuei a beber as garrafas de vinho e não disse nada ao pessoal. No final disse que estava com cancro como quem diz que tem uma galinha no frigorífico. O pessoal já desconfiava. E disse que ia ser operado, a 13 de janeiro.

Antes da operação deu cabo da cabeça a quem lhe fez os exames.
A biópsia é feita em 12 colheitas e o médico, como temos uma coisa enfiada no corpo, vai conversando, falando do restaurante e assim e ao oitavo perguntei quantas faltavam, ele disse que íamos no oitavo e faltavam quatro, eram 12. Ele perguntou se estava tudo bem e eu disse que estava era a pensar no cabrito assado no forno a que eu ia chegar atrasado. O médico deu uma gargalhada enorme, ficámos os dois descontraídos. Entretanto fiz a preparação para a operação, fui operado por robótica e três dias depois saí mas fiz uma asneira. Dei uma que não se deve dar. Ao fim de quatro dias disse que já estava bom e encomendei um jantar de uma pizzaria do Bairro Alto. Mexi-me e tossi demasiado. Rebentou um pouco e fui operado novamente. Subiram as PSAs e basta uma célula cancerosa para começar o processo todo outra vez. Aconselharam-me a fazer radioterapia e fiz radioterapia enquanto trabalhava. Como levei a coisa para o lado da brincadeira, lembrei-me dos trocadilhos do imortal José Cardoso Pires, que um dia à porta do bar Procópio disse: «Isto é mesmo provocar um bêbado!! Um chafariz de água em frente a um bar de whisky».

Fez durante sete semanas?
37 dias, ia praticamente todos os dias da Quinta do Lago a Lisboa. Aluguei um carro bom para ficar independente.
 

Com tantos carros não tinha um para ir?
Tinha, tinha carros para ir mas eu não quis. Eu que nem ouço música no carro até ouvi. O carro foi, talvez, um bom parceiro de radioterapia.

Como foram essas sete semanas a ir quase todos os dias a Lisboa e voltar?
Depois joguei. Fazia a sessão das segundas-feiras às 19h, das terças às 8h, e depois voltava para baixo. A seguir ir na quarta de manhã e fazia uma. Depois ficava em Lisboa um dia… Fiz 17 mil quilómetros em sete semanas.

Como se sente hoje?
Bem, sinto-me lindamente. A grande lição que se aprende neste animal dentro da gente é… eu fui um privilegiado, para já. Tenho um super seguro de saúde e tinha a opção tanto da Fundação Champalimaud como da CUF e optei pela CUF. Aprendi uma coisa: os hospitais é como quem vai comprar um carro ou uma casa. Os amigos dizem não compres este ou compra aquele. Nos hospitais igual. 90% dos meus amigos disse para não ir à CUF e ir à Fundação. Outros disseram para ir aos Lusíadas, outros disseram para ir aos hospital da Luz… Mas sempre tive um fascínio pela CUF. E aprendi lá uma coisa: saía aqui do restaurante bronzeado, de calções, e chegava à radioterapia da CUF Descobertas, entrava ali e parecia o bêbado que se enganou na porta do bar. Todas as pessoas que estavam lá estavam piores que eu. E a gente aprende uma lição: nunca se queixar porque em matéria de saúde e sofrimento tem sempre gente pior que nós. Impressionou-me particularmente as crianças. Esse número do azar não precisam de o dar a crianças. Deem-no a bêbados como a gente. Dizem que o cancro da próstata marca muito os homens. Para quem teve uma vida sempre com o casamento na corda bamba eu não sofri porra nenhuma. Mas mais do que os homens sofrerem com a próstata sofrem as mulheres com o cancro da mama e eu vi lá casos de grande tristeza.