“Não podemos estar à espera de conferências de imprensa para saber o que fazer”

O presidente da Associação de Administradores Hospitalares, Alexandre Lourenço, defende que é preciso mais coordenação no terreno e o plano para o outono/inverno, agora conhecido, não resolve por si só esse problema. Acredita que o SNS será capaz de responder à covid-19, mas de novo à custa da resposta aos outros doentes.

Os hospitais estão preparados para os próximos meses?

Estão a fazer o seu melhor dentro dos recursos que têm. Hospitais e centros de saúde têm planos de contingência feitos. Aquilo para que alertámos foi que não basta que os hospitais individualmente tenham planos. E, apesar de agora ter sido enunciado um plano nacional, ainda existe muito caminho de coordenação de meios, articulação entre hospitais e cuidados primários e muitas indefinições que a esta altura já poderiam estar ultrapassadas. Temos um plano enquadrador, que acaba por surgir depois de os planos das instituições estarem feitos, quando devia ser o inverso. Como está redigido, podia ter sido publicado em junho.

Quais são os pontos mais críticos?

Há esse problema grave, que já existia antes da covid-19, que é a fragilidade das estruturas de coordenação dentro do SNS. As estruturas regionais estão descapitalizadas em termos de recursos humanos. Depois, na forma como o dispositivo está montado, parece certo que saberemos dar resposta à covid-19 mas vai ser sempre à custa da não prestação de cuidados a doentes não covid.

É isso que vai voltar a acontecer?

A senhora ministra deu uma entrevista em que disse que em Lisboa há 500 camas para doentes covid-19 e estão 300 ocupadas. Qualquer pessoa consegue perceber que 500 camas vão ser ocupadas e, a partir do momento em que passarmos esta lotação, vamos ter de passar para uma redução da atividade programada. O problema disto é que os dados até 31 de julho mostram-nos que só nos cuidados primários houve menos sete milhões de contactos presenciais, mais de um milhão de consultas hospitalares que não foram realizadas. Mesmo tendo havido alguma recuperação, está muito abaixo do que foi feito em 2019. Continuamos a aumentar as necessidades não cobertas de saúde. 

Devia ser claro a esta altura que atividade será suspensa e quando?

Sim. Mesmo na atividade gripal sazonal normal, muitos hospitais já eram obrigados a interromper ou diminuir a atividade cirúrgica porque são necessárias camas para internar doentes. Se somarmos a isto a covid-19, o efeito vai ser maior. Recordo que em março e abril tivemos de usar blocos operatórios para internar doentes com covid-19. Mesmo o dispositivo de cuidados intensivos ainda é pouco conhecido. Mesmo que tenhamos agora mais ventiladores, não contratámos nem tratámos de recursos humanos para os operar.

Há o risco de não haver cuidados intensivos suficientes?

Cuidados intensivos vamos ter, o problema é que vai ser da mesma forma que tivemos em março e abril, que foi ir identificar todos os enfermeiros que poderiam ir para os intensivos e retirá-los dos serviços onde estão e introduzir médicos nas equipas tutelados por intensivistas porque não temos intensivistas para tudo. Não foram os administradores hospitalares que disseram que era possível duplicar a capacidade, foi o Ministério que se comprometeu, porventura sem fazer um diagnóstico real da situação. A duplicação de camas implica mais recursos humanos e seria impossível formar intensivistas em seis meses. Portanto, sabendo que é preciso ir buscar pessoal a outros serviços, para evitar um impacto maior na restante atividade, seria preciso ter contratado profissionais para os substituir nos serviços de origem e estamos muito longe de ter conseguido fazer isto.

Tem traçado um cenário bastante diferente do que é feito pelo Ministério, que garante que o SNS está melhor preparado.

Admito que possa haver entendimentos da realidade diferentes. Quando sai um plano esta semana que, por exemplo, diz que é preciso planear a vacinação contra a gripe… o início da vacinação da gripe está anunciado para começar na próxima semana.

Já foi dito que terão prioridade idosos nos lares, profissionais de saúde.

O problema não é enunciar. Quem sabe as quantidades necessárias e os lares onde se vai e quando? Que profissionais é que vão dar as vacinas? Enunciar é diferente de operacionalizar. Podemos ter as melhores ideias e os melhores conhecimentos científicos, se não houver uma operacionalização não funciona. E o que nos parece  é que continua a haver uma dissociação entre ideias, anúncios e o terreno. Podemos anunciar em julho que há incentivos para recuperar a atividade ou que se vai duplicar a capacidade de cuidados intensivos. No caso dos incentivos, só passado um mês é que saiu a portaria. Para alargar os cuidados intensivos são precisas obras, as obras têm de obedecer a concursos públicos…Dou outro exemplo, as áreas dedicadas à covid-19 que passam a ser para infeções respiratórias. Os hospitais estão preparados para isto, mas o ponto chave será a resposta na comunidade, que permite retirar pressão dos hospitais. Já devíamos saber onde vão ser instaladas as áreas nos centros de saúde, se são mais, se são menos, que recursos vão ser mobilizados para reforçar estas estruturas que previsivelmente vão ter maior procura do que em março e abril, porque há mais infeções respiratórias no inverno.

Os horários dos centros de saúde deviam ser alargados mais cedo?

É algo que geralmente acontece quando as urgências já estão sobrecarregadas. Hoje temos de facto instrumentos muito mais poderosos do que em março, é preciso colocá-los à disposição das instituições. É possível prever a atividade de covid-19 para a próxima semana, por que razão essa informação não é facultada aos hospitais? É informação que, existindo, não é transformada em algo útil. Veja-se o exemplo do que fez o Reino Unido: tem um sistema de ativação por números, com base na atividade epidemiológica, à semelhança do que temos no verão com os alertas da proteção civil.

O Governo já anunciou que estão a ser preparados mapas de risco.

É importante, mas é sobretudo importante que tenham consequências. Por exemplo, se há uma atividade laranja numa determinada zona, ativam-se mais quatro ou cinco áreas dedicadas a queixas respiratórias e toda a gente sabe o que está previsto em cada circunstância. Não podemos ficar à espera de uma conferência de imprensa para saber o que fazer. Tem de haver estruturas de coordenação que acompanhem diariamente as instituições, uma articulação porventura distrital, regional e por fim nacional.

Foi anunciada uma task-force para a resposta de saúde não covid. Continua a ver sinais de desvalorização do problema por parte do Ministério?

Mais vale tarde do que nunca, mas surge naturalmente com atraso. O Ministério sabe que é avaliado pela resposta à covid-19 e a resposta aos casos não covid não tem efeitos momentâneos, mas infelizmente vai ter efeitos a médio/longo prazo. Mas mesmo perante o aumento da mortalidade que tivemos este ano tem havido uma desvalorização que não é compreensível.

O Ministério da Saúde e o Instituto Ricardo Jorge disseram já que a menor utilização de cuidados não será a principal causa.

Eu não sei quais são as causas, ninguém sabe, porque não estão codificadas, não percebo é por que razão, não sabendo, se tem de desvalorizar o impacto da quebra no acesso aos cuidados de saúde. Em maio, a diretora-geral da Saúde disse que a mortalidade em excesso resultava do calor. Sem fazer uma investigação, disse que era essa a explicação. Antes disso, vários estudos académicos deram nota de mortalidade acima do esperado em março e abril. É obrigação da autoridade de Saúde e do Ministério investigar. Se não há meios internos, tem de haver meios subcontratados. Não me parece é que se possa utilizar um instituto público como o Ricardo Jorge para desvalorizar uma matéria que é clara: algum efeito terá de ter a não prestação de cuidados. Não podemos defender o SNS e ao mesmo tempo achar que menos sete milhões de contactos presenciais nos cuidados primários, quase meio milhão de pessoas que não tiveram contacto com os serviços de saúde e menos um milhão de consultas hospitalares, não tem efeito sobre a saúde.

Vai ser necessário mobilizar o setor privado e social?

Neste momento ainda não é claro o que está previsto para os hospitais de retaguarda. Um dos alertas que lançámos foi sobre os internamentos sociais, doentes que não podem ter alta clínica e todos os invernos sobrecarregam as enfermarias. Em maio eram um quinto dos doentes internados com covid-19. Já devíamos saber quais são as estruturas que vão receber estes doentes.

Para evitar que as listas de espera continuem a aumentar faz sentido pensar em novos protocolos?

Tem de haver uma análise da morbilidade e mortalidade não esperada para perceber quais as áreas a priorizar. Há áreas em que uma atraso de um mês, dois meses, três meses, não terá o mesmo impacto que outras. Os hospitais gerem as suas listas, mas não têm informação epidemiológica geral. Muitos casos não estão a chegar sequer aos hospitais. Há uma quebra nas referenciações para as consultas, nos exames de diagnóstico, o número de inscritos para cirurgia é muito inferior ao de anos anteriores. Uma coisa é cada hospital trabalhar sobre as suas listas de espera, outra coisa é perceber-se qual está a ser o impacto e o SNS trabalhar em rede para o tentar diminuir. Consegue-se perceber que há um momento para o Governo trabalhar, um momento para a DGS, mas tem de haver espaço para a gestão operacional.

Já fizeram esse apelo formalmente ao Ministério?

O Secretário de Estado Adjunto e da Saúde pediu-nos uma apreciação do plano e é o que iremos fazer.

O plano não foi discutido com os administradores hospitalares antes de ser apresentado esta semana?

O que posso dizer é que a posteriori foi pedido à associação que se pronunciasse. Evidente que, neste momento, estamos todos juntos neste processo, não há hospitais para um lado e Ministério da Saúde para outro. Quando as coisas começarem a apertar, vamos estar todos a fazer o melhor, simplesmente há a perceção de que podíamos estar melhor organizados.

Na saída do Governo, Jamila Madeira disse que no fim do seu mandato acabou o mito do SNS ser um buraco sem fundo e que os números demonstram a sua sustentabilidade. É possível fazer esta afirmação neste momento?

É uma afirmação precoce. Estamos a falar de um ano completamente atípico. A senhora secretária de Estado esteve menos de um ano no Ministério. Conhecendo a estrutura dentro do Ministério, não sei se existem dados completos sobre a execução do orçamento do SNS, se toda a informação está disponível, se está a ser reportada de forma atempada. Já assistimos no passado a grandes volte-faces com acertos de contas quatro, cinco meses após o fecho do ano. Alguém que tenha a responsabilidade financeira do SNS tem de criar sistemas robustos de reporte e acompanhamento. Parece-me que este tipo de afirmações denotam alguma ingenuidade sobre a realidade.

Os desafios serão de qualquer forma maiores.

Seguramente. O SNS já chegou com fragilidades a este momento. Fiquei surpreendido com o número de doentes sem médico de família conhecido esta semana (953 mil em agosto, quando no ano passado eram cerca de 700 mil). Podemos dizer que este ano houve um atraso nas colocações por causa da pandemia e há muitas aposentações. Mas quando tanto se tem discutido a necessidade de fixar médicos no SNS, é expectável que alguém que se forme esteja à espera seis meses por um resultado de um concurso? Que alguém que fez o internato em Guimarães, que já tem a sua família, aceite ir para Faro? Temos insistido em modelos que não funcionam. Se já se sabe que é assim, porque é que não há por exemplo uma assunção de que o local do internato é o local onde o médico irá ficar? Seria caricato se não fosse trágico, porque estamos a falar de centenas de milhares de pessoas sem médico. Qual é a confiança que os portugueses podem ter num sistema que não garante algo que todos os Governos juram a pé juntos que vai acontecer, que no final da legislatura todos vão ter médico? Ouço isto há 20 anos.