“Um cristão não faz o bem para salvar a sua alma, mas sim para salvar os outros”

Fez o voto de pobreza, mas isso não o impede de discutir as questões económicas com uma desenvoltura surpreendente. A propósito de Deus e os Mercados (ed. D. Quixote), que reúne conversas entre o padre Melícias e o economista João César das Neves, desafiámos o franciscano a falar sobre religião e riqueza, Deus e o…

“Um cristão não faz o bem para salvar a sua alma, mas sim para salvar os outros”

Para alguém que vive num convento do século XV, arredado dos grandes centros urbanos, o Padre Vítor Melícias mostra-se excecionalmente bem informado e atento ao que se passa no mundo. Natural de Torres Vedras, estudou no seminário franciscano e foi ordenado em 1962. Fez os votos de pobreza, obediência e castidade, mas isso não o impede de viver com alegria. Nas funções que foi desempenhando, conheceu os quatro cantos do globo, dos Estados Unidos a Timor, e visitou todos os países de língua portuguesa. Gosta de ter um papel ativo na sociedade – atualmente é presidente da Assembleia Geral do Montepio – e até de contar anedotas. «Santo António também as contava no púlpito», comenta.

Começaria com uma frase do poeta Rainer Maria Rilke, que diz: «Pois a pobreza é um grande clarão que vem do interior». Podemos ver a pobreza como uma bênção?

Essa frase traduz, e muito bem, não o aspeto objetivo da pobreza como limitação de recursos para ter uma vida digna, mas a leitura interior iluminada pelo espírito daquilo que é viver em pobreza. Cristo disse «bem-aventurados os pobres em espírito», ou seja, aqueles que têm espírito de pobre. E ter espírito de pobre é essa iluminação, que é um dom que grandes santos – Francisco de Assis e tantos outros – assumem. Isto é, desligam-se dos bens terrenos para estarem disponíveis para o serviço da comunidade e para o serviço de Deus. Hoje o grande problema da humanidade não é faltar essa espiritualidade, embora ela seja essencial, é que o capitalismo obriga umas pessoas a serem pobres e facilita outras a serem muito ricas. Há aqui um enorme desequilíbrio, uma enorme desigualdade que urge corrigir. Como é que é possível haver acumulações de fortunas sem limite quando cresce o número dos necessitados? Há migrações, há pessoas a morrer a atravessar o Mediterrâneo, há fome, há falta de água a duas horas de avião daqui, enquanto nós deitamos comida fora.

E o que pode a Igreja fazer para corrigir isso?

O Padre Lebret, que era um grande teólogo e economista dominicano, criou o movimento Economia e Humanismo, e esse espírito tem vindo a crescer dentro da formulação moderna da economia social, dentro da doutrina social da Igreja. Esse conceito, mais tarde, foi adotado pela própria União Europeia e hoje é comum a todos os ordenamentos jurídicos. E depois há o chamado destino ou vocação universal de todos os bens, a consciência de que tudo o que existe é para todos. Em situação de necessidade, aquele que necessita deve poder aceder aos bens. Mas o funcionamento da economia está de tal maneira que cada vez vemos mais gente a ser secundarizada. A palavra economia quer dizer bom governo da casa, e a casa não é só a casa da família ou, como diria, o [Adam] Smith, a Casa das Nações. Economia é o governo de tudo aquilo que é comum a todos. E por isso aquilo a que se chama progresso não é progresso nenhum, é um retrocesso em relação à natureza, ao convívio dos seres humanos. Produzem-se mais bens mas agride-se a irmã Terra, a irmã Natureza. Este equilíbrio está a ser completamente violentado, da mesma maneira que crescem as desigualdades da capacidade de acesso aos bens. Os defensores do grande capitalismo dizem que isso é justo porque é a lei da oferta e da procura: o mercado oferece aquilo que o cliente precisa e o cliente paga em função do que recebe. Simplesmente esta lei da oferta e da procura é manipulada pelos detentores do capital. Se ainda fosse o capital no sentido económico…

E não é?

Não, é o capital no sentido da finança. Hoje a finança é que domina a economia. Quando nasceu, a  finança era um instrumento para as economias se desenvolverem e produzirem os bens que eram necessários. Hoje os próprios economistas e empresas procuram ter instrumentos de finança, que não produzem nada, só distribuem: tira o dinheiro daqui para pôr ali. Como dizia o Obama quando era Presidente dos Estados Unidos, já não são os políticos que mandam, quem manda nisto tudo é a finança. Até na religião. Infelizmente vemos este domínio da finança em várias religiões.

Falou nos refugiados, na fome, na falta de água… É pecado ser rico num mundo onde tanto sofrimento é provocado pela pobreza?

Se você usar os recursos que tem à mão – ou por herança, ou porque os produziu, ou porque ganhou a lotaria, seja o que for – apenas em seu próprio benefício e sem condicionamento de limite de quantidade, não pagando tantos impostos quanto devia, escapando à justiça porque tem bons advogados, fazendo aplicações que são prejudiciais à humanidade, favorecendo a destruição da natureza e do planeta, comete um pecado social, como dizia o Papa João Paulo II. Explorar a humanidade em seu próprio favor e para satisfazer a sua própria ganância eticamente é condenável e juridicamente devia também ser condenado.

Cristo tem aquela frase: ‘É mais fácil um camelo passar pelo buraco da agulha do que um rico entrar no reino dos céus’. Os ricos estão condenados?

Há várias interpretações do que era esse camelo, se era uma corda de lã, se era mesmo um camelo. O que que importa é que Cristo queria dizer que é uma coisa muito difícil. Se uma pessoa tem este sentido de ganância e está tão apegada às suas próprias coisas que despreza ou explora os outros, exclui os outros de poderem ter acesso aos bens. Acho que Jesus Cristo tem razão – que eu saiba tem razão em tudo, mas essa é muito feliz.

Uma pessoa rica não pode ser um bom cristão?

Pode, pode, e até há grandes exemplos disso. Exatamente porque não estão apegados à riqueza. Utilizam a riqueza ao serviço deles, da sua família e da comunidade, não são os tais gananciosos, não são os tais avarentos, não são os tais que exploram. São aqueles que utilizam legitimamente os bens e os fazem crescer, e até acumulam, para o benefício de todos. Quando penso na frase de Cristo «Bem-aventurados os pobres…», aqueles ricos que têm espírito de pobres, ou seja, espírito de fraternidade, de disponibilidade, esses seguramente são excelentes cristãos.

A Igreja faz esta apologia da pobreza porque desconfia do dinheiro, acha que o dinheiro é impuro?

Não é o dinheiro em si. É o uso que se faz do dinheiro e este apego ao dinheiro. Já Cristo dizia: «Ninguém pode servir a dois senhores – a Deus e ao dinheiro». E também disse: «Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus». O que acontece, como nos últimos tempos o Papa Francisco tem vindo a denunciar com verdadeira força profética, é que o dinheiro, neste tipo de economia, se tornou um deus. Um deus que escraviza. É preciso mudar isto. Antes de mais, haver mais capital e menos capitalismo, mais economia e menos finança. Haver mais solidariedade e menos egoísmo. Haver mais homem, ou Deus feito homem, Deus que se venera e se ajuda no homem concreto e na natureza concreta, do que dinheiro feito deus, que é o que hoje está a acontecer, que é a idolatria do dinheiro. Porquê? Porque o dinheiro dá poder. Quem tem dinheiro é que manda.

O dinheiro tem a capacidade de transformar-se naquilo que a gente deseja…

O dinheiro é que pode. Há alguns que, por terem dinheiro, têm mais poder e impõem a sua vontade, que nem sempre é – muito pelo contrário – em benefício de toda a comunidade. O mal de o dinheiro ser tornado deus é ter-se dado poder e omnipotência ao dinheiro. Ora, sendo todos irmãos e vivendo todos na casa comum, não pode ser assim. O_dinheiro deve existir, e quanto mais melhor, mas não de acordo com estas regras do capitalismo.

Já citou algumas ideias de Cristo sobre a riqueza. O que é que a Bíblia nos diz sobre o dinheiro?

Na Bíblia as referências ao dinheiro e à riqueza são mais de mil: são 2350. Portanto há as referências mais variadas. Uma delas diz: ‘Mais vale a pobreza do justo do que a riqueza do ímpio’. Uma das ideias principais é esta: não se deixar escravizar, ter espírito de pobre e não ter espírito de rico. É legítimo ter dinheiro, mas utilizá-lo de acordo com o sentido da Criação de Deus, que é a bondade e a fraternidade.

Mas também temos exemplos como o do Rei Salomão, que era riquíssimo, e usou aquele ouro todo para construir o famoso templo para a glória de Deus…

Claro, aliás isso não é só na tradição judaica, é tradição também nas outras religiões. Houve sempre esse cuidado de a Deus dar o melhor que se tinha, por isso se construíram as grandes catedrais, se juntaram tesouros de veneração a Deus, custódias, cálices, por aí adiante. Por isso ainda hoje há muita gente que diz: ‘A Igreja é muito rica, muito luxo. Em vez de ter aquilo por que não vende para os pobres?’. Parece quase o Judas a dizer a Cristo quando Maria Madalena Lhe estava a lavar os pés com perfume: ‘Porque é que está a gastar esse perfume? Em vez disso vendia-se e dava-se aos pobres’. Cristo disse: ‘Tem calma. Os pobres, nós estaremos sempre com eles. Cada coisa tem o seu lugar’. Esses bens que a Igreja tem acumulado através dos tempos hoje são mais uma responsabilidade do que uma possibilidade. Aquilo é do domínio da Humanidade, a Igreja tem a responsabilidade de o conservar, de o enriquecer e de o disponibilizar para os fiéis. Não é nenhuma fonte de receita para o Papa estar a fumar cigarros de ouro, como é evidente. Aliás este Papa tem tido o cuidado de dizer: ‘A Igreja não deve ser rica, é uma Igreja de pobres e para pobres’. Temos já no nosso tempo atitudes lindas. O Cardeal Hélder Câmara, que esteve no Concílio Vaticano II, vendeu a sua cruz de ouro para usar uma cruz de pau, vendeu o paço episcopal e suponho que também um seminário que lá tinha. Ou o Papa João XXIII. Ou este Papa Francisco, que recusou viver no palácio e usa sapatos comuns.

Mas tivemos também Papas riquíssimos, de famílias de banqueiros, nomeadamente no Renascimento…

Como tivemos imperadores e reis e príncipes… isso é próprio da natureza humana. Nas várias religiões, nos vários impérios, nos vários sistemas, houve sempre exageros desses. E ainda há. Por haver exageros desses é que, muito mais rico do que qualquer Papa, é capaz de ser um desses que inventaram o Facebook e têm fortunas enormíssimas – e disponíveis, porque os Papas não podiam dispor daquilo, como é evidente.

Mas esse fausto de alguns Papas não é contrário à doutrina da Igreja?

É por isso mesmo que, dentro da Igreja, grandes santos como São Francisco e Santo António, ou a Reforma Protestante, foram exatamente contra o luxo do clero. E muitíssimo bem. E devemos ser, não no sentido invejoso ou vingativo, mas com consciência de que esses bens que a Igreja acumulou não estão ali para vício dos clérigos, mas sim destinados ao serviço dos mais pobres.

Mencionou São Francisco, que renunciou à riqueza do pai e só usava uma veste muito simples.

Sim, sim. Um burel de lavrador. E pôs como norma dos seus frades: ‘Os irmãos que quiserem vir para junto de mim, para a nossa Ordem, têm de fazer três promessas. Viver sem próprio – não ter nenhuma propriedade –, obedecer e viver em castidade’. A regra básica de São Francisco é não ser dono de nada. É essa a nossa regra, ainda hoje não temos nada, mesmo alguma coisa que receba do trabalho ou de pensões, ou de oferta, vai tudo diretamente para a Ordem, que depois ou consome nos seus próprios usos ou atribui aos pobres.

A biografia e São Francisco de Jacques le Goff conta que ele levava esse burel vestido e o Papa da época o tomou por um porqueiro…

Devia ser o Papa Inocêncio.

E ele foi a umas pocilgas, esfregou-se com estrume e voltou a apresentar-se ao Papa.

Há grandes episódios desses, de demonstração de um homem que teve meios – os grandes comerciantes como o pai dele, que fazia comércio de panos com a França, naquela altura eram a nova classe rica – e renunciou a isso pelo ideal de pobreza. Por exemplo, ele um dia chegou e os frades estavam a comer um bocadinho melhor. Ele agarrou na tijela e foi-se sentar no chão a comer uma papa qualquer, para eles perceberem que eram pobres. Defendia este princípio de que os pobres são os primeiros de todos os irmãos, e chegou a dizer: ‘Eu sou um ladrão se não der a um que precisa mais do que eu a veste que trago, o meu hábito’. Já era uma veste rota e pobre, mas se houvesse um que precisasse mais do que ele, ele tinha a obrigação de o dar. Ele tinha esta visão. Um homem genial, santo.

Mas isso é uma visão muito radical. Eu vou sempre encontrar alguém que seja mais pobre.

Não é mais pobre, é alguém que tenha mais necessidade. Ele chegou a fazer o seguinte. Uma mãe foi ao convento com fome. Mas lá também não havia nada que comer. Então São Francisco foi ao altar, agarrou no missal, e disse: ‘Leva isto, vai vender e come’. Era efetivamente um homem de grande radicalidade, mas no sentido de projeção e de espírito para o futuro. É hoje um dos modelos para a humanidade, é por isso que o Papa João Paulo II o declarou patrono da ecologia e o Papa Francisco tomou o seu nome e faz muita questão de seguir a sua doutrina.

A propósito desse episódio em que os frades estavam a comer melhor: ser franciscano implica castigar o corpo?

Não, não, fazemos uma alimentação normal, mas pela nossa tradição é o normal contido. Embora às vezes também possa haver exageros, num sentido e noutro. Na tradição popular do artesanato os frades são representados com uma grande barriga e com um copinho na mão – são formas críticas de o povo mostrar os seus sentimentos, e até tem piada. Temos aqui uma das maiores coleções de gravurazinhas de frades desse estilo, mais de 1700.

Como funciona a economia do convento?

Vivemos nesta casa, que já está a fazer 550 anos (é de 1470), só oito irmãos, e temos algumas dificuldades no dia-a-dia. Este mês o nosso saldo é de cinco mil a menos… Temos de trabalhar mais, para poder comer, pagar à senhora da limpeza. Mas quem olhar de fora pode dizer: ‘Eh, grande casa, os frades ali vivem à grande’. Se soubessem o que custa viver aqui, ser pobre [risos]. Mas também o fazemos com gosto, alegremente. Mesmo às vezes vejo nalgumas redes sociais: ‘O Padre Melícias, granda pensão!’. Isso é um mito, é ridículo. Não recebo nem metade daquilo que eles dizem. E recebendo não é para mim, vai para uma conta que tenho em meu nome e do ecónomo da província, para a pensãozita poder entrar lá dentro, mas depois automaticamente vai quase toda para a conta geral da Ordem, o que fica é para os medicamentos, para o gasóleo do carro, que também não é meu… Um frade não tem nada de nada.

Mas de onde vêm os rendimentos para fazer a manutenção do convento, etc.?

Isto é propriedade do Estado, que tem a obrigação de fazer as obras de fundo. Muito já nós fazemos. O resto vem das pensõezitas que cada frade tenha, de trabalhos que vai fazendo, e sobretudo de muitos donativos de benfeitores. Por tradição temos aqui grandes benfeitores, agricultores que nos dão as frutas, legumes. Consegue-se equilibrar. Mas neste momento não estamos equilibrados, estamos a arreganhar o dente!

Um leigo como eu questiona-se sempre do que será assumir essa responsabilidade para a vida, tomar a decisão de se tornar franciscano…

É uma questão de vocação. Uns escolhem ser médicos, outros escolhem ser aviadores… No meu caso fui para o seminário franciscano com onze anos, e depois só aos 20 é que fiz a profissão, dá tempo para a gente saber o que está a fazer.

E na noite anterior à ordenação a pessoa não pensa que está a tomar uma decisão muito séria, que vai ter consequências para toda a vida?

Pensa 50 vezes. Designadamente porque há a limitação de celibato, os clérigos não podem ser casados, e outras responsabilidades, mesmo a pobreza aplicada a todos os bens. Não é fácil, designadamente para quem tenha bens antes de vir ou heranças para receber, tem que pensar duas vezes. Mas pensamos e renunciamos ao que temos. Chama-se a isso a vocação.

E também se renuncia ao prazer de viver?

Não. É a alegria de viver com pouco! [risos] Viver sem ter nada. Às vezes até é melhor. Não tenho de viver a pensar como é que vou preservar os meus bens ou a quem vou deixar… A minha família sabe que quando eu morrer não vem cá buscar nada porque não há nada. Pronto! Não há nada para ninguém. [risos]

Além dos três votos há muitas regras para cumprir, muitas proibições?

Há a Regra, que é o grande documento constitucional, e depois há as chamadas leis ordinárias, onde se diz o que o frade deve fazer em matéria de vestir, de viver, de comer, de trabalhar, de estudar, de rezar, tem ali as várias prescrições. São prescrições adequadas a uma vida moderada. Na história, incluindo neste convento do Varatojo, tem havido exageros e excessos de pobreza, de castigo corporal, tanto que no final do século XIX o ministro geral de Roma, que era o principal dos franciscanos no mundo, veio aqui a este convento proibir os frades de serem tão rigorosos.

Exageravam?

Eram excessivos no alimento, no castigo corporal, nos sacrifícios que faziam, nas penitências. Ele veio cá e disse: ‘Para ser frade não é preciso tanto’.

Há irmãos que tendem mais para isso?

Depende das pessoas. Há pessoas mais alegres, outras são mais tristes, uns são mais dedicados à penitência física, outros mais à espiritual, uns mais à pregação, à alegria… Eu não ando a chorar todos os dias. Pelo contrário, posso contar uma anedota e tudo. O São Francisco se calhar também contava. O santo António de certeza que contava [risos] porque há relato histórico de várias que ele contava no púlpito.

Li que os franciscanos também andavam por vezes em grupos muito alegres, até chegavam a causar algum espanto.

O que caracterizava São Francisco e caracteriza a Ordem Franciscana é exatamente a alegria. Até tínhamos uma revista que se chamava Paz e Alegria. O franciscano deve ser um homem que transmite paz, alegria e que transmite esperança, designadamente aos pobres, e prega ao pobre que deve empenhar-se. A religião pensada por São Francisco não diz ao pobre: ‘Tens de te resignar, tens de ter paciência, Deus salvará’. Isso é ser ópio do povo. O frade e o cristão devem pregar: ‘Tu tens a obrigação de não te resignar, tens a obrigação de procurar, tens de lutar, de empenhar-te para saíres dessa situação’.

Os franciscanos sempre tiveram tradição de se misturar com as pessoas, não ficam isolados na vida contemplativa, não é?

O Papa João Paulo II chamou aos franciscanos, e muito bem, frades do povo. Exatamente porque historicamente sempre viveram no meio do povo. Enquanto os mosteiros eram autónomos, isolados e longe das populações, os frades construíam as suas habitações no meio do povo e faziam a sua vida com o povo. Ainda hoje o franciscano é um frade do povo, frade popular.

Não está recolhido.

Não, não. Tem as suas orações, os seus momentos de reflexão, mas muita da sua função é atender os pobres, ir para as causas sociais, etc. Eu mesmo sou frade desde pequenino, passe a expressão, e o que fiz? Andei sempre nos bombeiros, em misericórdias, nas mutualidades, nas coisas de solidariedade e de economia social. A minha presença de franciscano foi ajudar a sociedade civil naquelas causas que julgo que fazem sentido, que são as da solidariedade. Isso é uma vocação franciscana.

Foi assim que chegou ao Montepio?

Exatamente. Os primeiros montepios foram criados no século XIII, século XIV, pelos franciscanos, primeiro em Itália, depois em todo o mundo. Eram organizações para combater o controlo dos ricos sobre os pobres, os chamados usurários. O pobre precisava de dinheiro para fazer a sua sementeira ou para educar os filhos, eles emprestavam mas a juros altíssimos. Então os frades pregavam contra a usura. Mas os franciscanos foram os primeiros que, além de pregarem, criaram organizações para que o povo pudesse recolher um monte de dinheiro ou de bens que emprestava a quem precisasse. E ele, quando pudesse, devolvia. Essa é que é a ideia de ‘monte pio’ – monte de piedade. Como um inglês dizia, é um monte onde a gente põe mais do que pensa ir lá buscar, é um movimento de solidariedade. E foi com esse sentido que aceitei ser candidato e fui eleito, ainda hoje sou presidente da Assembleia Geral e do Conselho Geral.

É que há quem estranhe ver um franciscano associado a uma instituição bancária.

Sim, sim. Mas é uma instituição bancária em que os recursos não são de nenhum dos sócios ou dos membros. Numa sociedade as pessoas entram com um capital e ficam donos desse capital, e votam em função do número de ações que detenham. Numa associação do tipo do Montepio tudo o que entra lá deixa de ser do dono, de modo que a vontade coletiva não depende do número de dinheiro que lá se pôs. É ‘um homem, um voto’, são todos iguais, têm todos o mesmo poder de decisão. Os filhos de um acionista herdam as ações do pai. Os filhos de um membro de uma associação – Montepio ou outra – não levam nada. Antes de mais, o Montepio é uma instituição de economia social. O Montepio não é do Estado nem de nenhum capitalista, não tem donos. O Montepio é dono de si mesmo e tem muitos associados que o mantêm e o fazem progredir para bem da sociedade.

É bem conhecida a sua amizade com António Guterres.

Sim, sim, somos amigos desde que éramos estudantes. Fomos e somos muito amigos. Aliás fizemos parte, durante muitos anos, de um grupo de alunos que se reunia no seminário da Luz. Estavam lá o Marcelo Rebelo de Sousa, o António Guterres, a Helena Roseta, o Pedro Roseta, muitas pessoas. Fazíamos a reflexão sobre o Concílio Vaticano II, sobre documentos da Igreja, sobre o modo de ser cidadão participativo na sociedade, com espírito cristão. Participámos praticamente em todos os movimentos que depois levaram ao 25 de Abril. E no 25 de Abril uns foram para o PSD, outros foram para o PS – julgo que não foi nenhum para o CDS.

Mas um padre não pode ter partido, pois não?

Nunca tive, nem tenho. Os padres não podem ter partido. Mas voto.

Havendo essa amizade, Guterres pedia-lhe conselhos ou apoio? Havia quem achasse que o Padre Melícias, na altura, era o conselheiro do primeiro-ministro.

Quando se é amigo respeita-se o outro, as suas funções e a sua identidade. Quem sou eu para aconselhar António Guterres, que é 50 mil vezes mais inteligente que eu e mais conhecedor que eu? Não tenho nada para lhe ensinar. Quando muito eu é que tenho de aprender com ele.

E depois de ele assumir o cargo de secretário-geral da ONU mantiveram os laços?

Continuamos amigos e contactamos bastante. Sempre na base da solidariedade e da amizade. Como se estivesse lá o meu irmão. Não lhe vou dizer: ‘Ó António, olha que aquele país é melhor que o outro’. Temos uma grande amizade mas não temos a mínima influência um sobre o outro, cada um tem a sua vida. Claro que me alegro com os sucessos dele, e quando está com mais dificuldade também sinto. Estamos em sintonia. Aliás fui à tomada de posse dele em Nova Iorque. Fomos dois convidados: o médico pessoal dele e eu.

Já tinha ido aos Estados Unidos?

Muitas vezes. O tipo de atividade que eu tive – no mutualismo, nas misericórdias, nos bombeiros, depois também fui comissário para Timor – muita dela tinha que ver com relações públicas, tive contacto com todos os países. Não há nenhum país de língua portuguesa a que eu não tenha ido, na Europa se há algum país a que não fui é daqueles mais para o Leste. Mesmo assim fui à Hungria, à Roménia, à Polónia.

Mais atrás falou do Papa Francisco. Se bem me recordo, na cerimónia em que tomou posse o Papa recusou usar um crucifixo de ouro maciço que era tradição os Papas usarem.

E recusou usar os sapatos vermelhos que usavam antes, recusou usar as vestes que não fossem a batina branca, usa só sapatos normais que nem são grande coisa [risos] e tem uma vida perfeitamente normal. Não tem aquelas viaturas espampanosas… Ele já era assim quando era cardeal-arcebispo de Buenos Aires. Andava de transportes públicos, vivia com o povo nos bairros, ele é jesuíta mas tem verdadeiro espírito franciscano. É uma vida exemplar.

Essa atitude não tem uma crítica implícita a hábitos que eram comuns no Vaticano?

Uma pessoa de bem não faz o bem para criticar os outros. Eu nunca o faria. Aliás acho que os cristãos não devem fazer o bem para salvar a sua alma. É para salvar os outros. Não devemos fazer o bem para sermos salvos, mas para sermos salvadores. O Papa Francisco é exatamente isso. Muito menos para estabelecer comparações. Isso redondamente não.

Diz que o cristão deve fazer o bem para salvar os outros. Mas não podemos permitir-nos um pouco de egoísmo?

Julgo que não devemos. Somos nós e os outros que estão em nós, nós e a comunidade toda, humana a e ecológica. A nossa missão é salvarmo-nos salvando os outros. Na medida em que salvamos os outros também nos salvamos. A salvação não é um comércio, não pode ser um expediente mercantil. Eu faço isto, depois Deus paga-me não sei quando. Estamos a brincar.

Mas há católicos que pensam assim…

Infelizmente há. Sublinho a palavra infelizmente. Não tem sentido nenhum. Repito: se nos salvamos não é por nos querermos salvar, mas sim se formos salvadores dos outros.