Vida e morte do menino da mamã

A direita de Jack Johnson atingiu Ketchell com tanta violência que voaram dentes e ele ficou estendido durante vários segundos.

Quando Walter Dipley disparou um tiro de carabina de calibre 22 no peito de Stanley Ketchell, num rancho de Springfield, Missouri, no dia 15 de outubro de 1910, foi apenas como se o livro do Destino virasse mais uma das suas páginas. Ketchell nunca deixou de ser um fanfarrão. A morte saiu-lhe cedo ao caminho, nessa manhã, enquanto mastigava uns ovos fritos com bacon ao pequeno-almoço, e saiu-lhe cedo igualmente na lotaria da existência pois não somava mais de 24 anos. Dipley, por seu lado, era um daqueles pulhas de pai e mãe e restante família até à oitava geração. Gostava mais da sua carabina do que de qualquer mulher com que tivesse estado, incluindo Goldie Smith que, por acaso, era empregada de Ketchell e foi envolvida no crime.

Já muito se escreveu sobre o assassinato de Stanley Ketchell mas não virá mal ao mundo que se escrevam ainda mais umas linhas sobre a sua vida, sobretudo porque tendo sido uma criança superprotegida, um verdadeiro menino da mamã, acabou por se tornar num animal feroz que mereceu esta descrição por Barth Randolph Sugar, um dos pânditas da história do boxe: «Com os dentes cerrados e os olhos raivosos, parte para cima do adversário e não descansa enquanto não der cabo dele. É um daqueles lutadores do tempo dos neandertais que dão um golpe ao opositor no ringue e já estão de regresso ao balneário antes que ele tombe inanimado no chão». Dizem outros que Ketchell, o menino da mamã, tinha um jeito especial para se preparar para os combates: olhava fixamente para a fotografia do adversário e imaginava-o a insultar Julia Olbinska, sua mãe, uma polaca que emigrara para os Estados Unidos vinda da soturna aldeia de Sulmierzyce.

Se foi dessa maneira que se aprontou para o embate com Jack Johnson, campeão de pesos pesados, na Mission Street Arena, em Colma,_Califórnia, no dia 16 de outubro de 1909, nem a mãezinha lhe valeu. Johnson era um daqueles divinos negros que pedem meças a montanhas, um peso-pesado com 1,84m de altura. Um tipo que não conhecia o medo e que viria, mais tarde, a ser preso por violar a Mann Act, uma lei nojenta que impedia que um homem de cor atravessasse as fronteiras dos Estados na companhia de uma mulher branca, considerando de imediato que o fazia com propósitos de lenocínio. Jack, que além de ter casado com uma branca tinha uma branca como amante, foi dar com os costados durante um ano na cadeia de Leavenworth a despeito de ser, então, tido como o homem mais famoso da América.

Stanley Ketchell abalroou Jack Johnson logo nos primeiros segundos. Quem o visse diria que Johnson não apenas insultara Julia como utilizara termos de fazer corar os carroceiros das docas de Hoboken, esse lugar onde viria a nascer, seis anos mais tarde, o grande Blue Eyes. Apesar de ter menos 14 centímetros do que o seu retinto antagonista, Ketchell conseguiu levá-lo ao tapete, no 12º assalto, movido por uma daquelas suas raivas momentâneas que faziam dele o Assassino do Michigan.

Jack ergueu-se, sacudindo a poeira. Era demais até para a sua infinita paciência. Um formidável uppercut de direita desfez Ketchell em farrapos. Estendido no meio do ringue, de costas e braços abertos, o menino da mamã Julia parecia o menino de sua mãe de Fernando Pessoa, fitando com olhar langue e cego os céus perdidos.

O combate entre Ketchell e Johnson ficou para a história, até porque foi um dos últimos de Stanley antes de ser abatido a tiro pelo canalha Dipley. Mas também porque teve um final completamente diferente do que deveria ter tido. Sim, estava um guião escrito para aquilo que os dois boxeurs iriam fazer na Mission Street Arena e, ainda por cima, um guião combinado a meias entre ambos, bons amigos que eram.

Companheiros de farras, de jogo e de mulheres, tinham combinado que o combate duraria 20 assaltos e que terminaria com um empate, obrigando a uma desforra alguns dias mais tarde. Entretanto, tanto Stanley como_Jack iam fazendo as suas apostas de forma a fazer render o peixe. Que não cheirava nada bem, acrescente-se, já que era absolutamente proibido aos lutadores apostarem nos próprios combates. A dupla de intrujões chegou ao ponto de aldrabar os cartazes promocionais da grande luta com uma foto de ambos lado a lado, tendo Ketchell escondidos por debaixo do roupão que chegava aos pés, uns sapatos de alto alto para o apresentar à mesma medida do seu muito maior adversário. Só o feitio insurrecto de Stanley deitou por terra a manigância. A manigância e ele próprio, que ficou desmaiado por vários segundos, com a boca desfeita e diversos cortes profundos na língua e nos lábios. Para Jack, o assunto estava arrumado. Detestava que lhe faltassem à palavra. Sentou-se no seu canto e entreve-se a retirar da luva direita alguns dentes de Ketchell que lá haviam ficado enfiados. A ele não lhe faziam falta…

afonso.melo@newsplex.pt