“Tenho esperança que ainda haja bom senso”

O presidente da Ordem dos Arquitetos, Gonçalo Byrne, tece duras críticas às alterações ao Código dos Contratos Públicos propostas pelo Governo e diz que, em termos arquitetónicos, o resultado poderá ser ‘catastrófico’.

“Tenho esperança que ainda haja bom senso”

 

O Governo quer estabelecer medidas especiais de contratação pública e alterar o Código dos Contratos Públicos (CCP). A Ordem dos Arquitetos já se mostrou contra. O que está em causa?

Esta questão da contratação pública já vai na 12.ª emenda, o que prova, desde logo, que há instabilidade nas próprias definições. Nem tudo está mal, mas há questões que se arrastam. É o caso dos vários modelos de adjudicação:  pelo menos três e estou a falar no que existe atualmente. Há um que tem a ver com a adjudicação ao custo mais baixo que é, desde logo, muito complicado, porque não há praticamente distinção entre adjudicação de bens ou adjudicação de serviços. Adjudicar serviços tão complexos, como é o caso dos projetos de construção que têm cada vez mais especializações, afetam várias engenharias, mas também afetam a arquitetura devido ao preço mais baixo.  Esta modalidade  é  obviamente, na prática, aquela que é seguida pela grande maioria das entidades públicas, das autarquias, Governos, etc.

Por dar preferência ao preço mais baixo?

Não só é mais simples e mais fácil como, ainda por cima, esmaga sempre os preços porque nem sempre há oferta mais baixa. Esta questão da adjudicação do serviço de arquitetura como quem compra batatas é um ponto de discórdia há muito tempo e mantém-se, como é óbvio. Mas há outra que é muito complexa e é aquilo que chamamos de banalização do modelo de conceção, construção para a adjudicação de obras. E porquê? Porque este modelo de adjudicação de conceção e construção é um modelo que funciona e inclusivamente até está regulamentado na Europa, mas é um modelo para aplicar apenas em exceções. E o que está aqui em cima da mesa é que as exceções tornaram-se regra. Neste momento, este modelo está a ser banalizado. Obviamente que este modelo funciona perante obras que exigem, por exemplo, grandes especializações ou com equipamento de grandes obras técnicas – é o caso de centrais de reciclagem de lixo, coisas desse tipo e que são claramente situações de exceção. Mas quando isto é banalizado e depois, ainda por cima, é lançado com base em quase total ausência de projeto – porque este modelo é lançado diretamente pelos empreiteiros com base num documento que são meia três ou quatros folhas A4, numa coisa que se chama programa preliminar e que, ainda por cima, nem sequer é competência do dono de obra. E com base nisso, formulam-se custos e preços. O caminho que está a ser seguido é um caminho de omissão de projeto e isso é extremamente grave.

Porquê?

Quando se omite o projeto – e agora o projeto envolve, pelo menos, as engenharias e as arquiteturas e se for de reabilitação também envolve historiadores – não aparecem as prefigurações. E estamos a responder perante fundos da Europa que são, ainda por cima, enormes e que implicam constrangimentos porque é necessário aplicar regras de sustentabilidade, etc. E estamos a falar de obras, de edifícios que vão ficar na cidade. E quando todo este sistema de controlo – que é o projeto – é marginalizado, o risco é muito grande. Além disso, há uma ausência de controlo e ao não haver uma prefiguração não se sabe o que é que lá vem como obra. Isso vai desencadear discussões de custos a mais, custos a menos, vai criar contenciosas entre o adjudicantes e os próprios empreiteiros. Não é por acaso que a própria AICCOPN também aparentemente é desfavorável. As próprias empresas de construção sabem que estão metidas num poleiro.

E sentem-se marginalizadas por considerarem que as grandes construtoras estrangeiras vão sair beneficiadas…

Mas as empresas estrangeiras também vão ter de embarcar neste modelo. E aqui entra outra questão, que é a da concorrência. O nível de falências das construtoras em Portugal foi enorme depois de 9, 10 anos de crise. Antes disso, Portugal tinha 20 e tal grandes empresas de construção, hoje em dia restam meia dúzia. Há aqui um problema de concorrência mas o problema é o sistema. A questão central aqui é este sistema de adjudicar trabalhos.

No discurso que fez no Parlamento disse que se fecham janelas à transparência e à livre concorrência…

Completamente. Isto vai abrir um caminho que vai ferir, inclusivamente, uma série de pressupostos que até estão subjacentes ao próprio CCP. Sinceramente, não conseguimos perceber como é que esta coisa aparece desta maneira, ainda por cima sem ter havido nenhum diálogo. Só aparece agora no fim da linha e é agora que se estão a ouvir os empreiteiros, os projetistas, os arquitetos e os engenheiros. Há aqui um problema de timming que não conseguimos perceber. 

O projeto, mesmo em termos arquitetónicos, acaba por ser passado para segundo plano em detrimento do preço?

O projeto arquitetónico, tal como está neste momento, é praticamente eliminado. Tudo é desencadeado com um documento que nem sequer é o projeto. É uma coisa que se chama de programa preliminar. O programa preliminar é uma lista do adjudicante que diz ‘eu quero fazer, tem de ter a área X, o local tem que ser aquele’. Tudo isso é, digamos, o início do projeto. O projeto ainda nem sequer entrou. Portanto, esse documento não é nada.

E corre-se o risco de descaracterizar as cidades?

O edifício, antes de ser construído, tem de ser pensado, desenhado, especificado. O projeto é um conjunto de documentação desenhada, escrita, calculada, com especificações, custos, etc., que é fundamental para que o processo tenha rigor até ao final da obra. Assim que a obra fica feita, esta responde perante a cidade. A obra tem uma dimensão pública, uma dimensão política, da polis, da cidadania. E essa parte não pode ser descurada. Quando se avança sem ter nada disso, o resultado pode não ser bom.

Pode ser catastrófico?

Pode ser catastrófico. O que não se compreende depois de anos e anos – até mesmo durante os últimos anos, durante a crise – as cidades, o próprio Estado e as autarquias fizeram esforços muito grandes. Por exemplo, é impressionante o que se tem feito na melhoria do espaço público. Desde a Expo 98 houve um salto qualitativo em tudo o que é espaço público urbano, mas também na qualidade dos edifícios. E isso não quer dizer que sejam mais caros ou que demorem mais tempo. Agora é óbvio que, para isso acontecer, o Estado tem de planear as coisas, tem de se adiantar no tempo em relação às decisões que têm de serem feitas.

Porque perdura no tempo…

Exatamente. A cidade e os espaços públicos têm vindo a melhorar de uma maneira extraordinária neste país, mas de repente retira-se o instrumento principal para que isso aconteça por causa de uma coisa que se chama projeto.

Falou com os deputados em relação a esta proposta de lei e alertou para estas questões. É possível ainda haver alguma alteração?

Não sei. Sinceramente, enquanto presidente da Ordem dos Arquitetos, fizemos tudo o que estava ao nosso alcance para alertar e para explicar estas alterações. E obviamente, nestas questões, há mais responsáveis que têm de ser ouvidos. Um deles diz respeito aos projetistas que são fundamentais serem ouvidos, assim como os engenheiros, os arquitetos, ou seja, todos que intervém no projeto.

Tem esperança que o projeto de lei possa ser alterado?

Tenho esperança que haja bom senso. Obviamente somos uma parte de um puzzle mais largo. Somos uma parte muito importante nos projetistas, mas obviamente que há outras partes que têm de ser ouvidas.