“Quem tinha dinheiro safava-se à tropa”

Carlos Chaves classifica a diretiva que exige aos militares uma linguagem mais inclusiva, entretanto anulada, como ‘verborreia panfletária’ e lamenta que o responsável não tenha sido demitido.

“Quem tinha dinheiro safava-se à tropa”

Carlos Chaves, assessor de Pedro Passos Coelho na área da Defesa e presidente da comissão de acompanhamento da reforma ‘Defesa 2020’, diz que existem «problemas muito graves» nas Forças Armadas e apela a uma reflexão. O_major-general na reforma defende alterações no processo de escolha dos chefes militares e manifesta-se contra o regresso do serviço militar obrigatório.

Os militares criticaram a diretiva Ministério da Defesa Nacional para que usem uma linguagem mais inclusiva. Partilha essa insatisfação?

São 16 páginas de verborreia panfletária desajustada e deslocada. Isto é um não-assunto perante a realidade do país. Se é verdade que aquilo foi feito pelo secretário-geral [da Defesa Nacional] sem conhecimento do ministro e da secretária de Estado posso atribuir isto a excesso de zelo do recém-nomeado secretário-geral para prestar serviço, mas isto não pode acontecer. O que me custa a aceitar, além da vergonha que sinto neste recado mandado às Forças Armadas, é que o senhor ainda continua no cargo. A impunidade é uma das doenças atuais no nosso país.

Há o risco de ridicularizar as Forças Armadas com estas decisões?

Se eu fosse o Ricardo Araújo Pereira dedicava o próximo programa a este assunto. Se pegarmos nas palavras que lá estão e formos ao dicionário de português é risível. O pior ataque que se pode fazer a um povo é atacar a sua idiossincrasia. O mesmo se passa com uma instituição. Hoje em dia ninguém é condenado a ir para as Forças Armadas. As pessoas vão voluntariamente e se não se dão bem podem sair. A instituição tem mecanismos para defender as pessoas. Podiam também fazer uma diretiva para os deputados ou para os juízes. Tenho visto escritos de juízes que me arrepiam. Mas as Forças Armadas têm muito com que se preocupar no atual momento.

Os militares não lidam bem com este tipo de decisões políticas…

Estamos com problemas muito graves nas Forças Armadas. Acredito que quem está no ativo apanha todas as oportunidades para gerar a sua insatisfação num ambiente geral que não é favorável.

Têm razões para estarem insatisfeitos com o poder político?

Acho que devíamos aproveitar o 5 de Outubro para refletiremos sobre o que se passa na Segurança e Defesa. Há assuntos que devem ser debatidos. Se olhar para Assembleia da República vejo apenas uma jovem deputada bem preparada sobre os assuntos ligados à defesa nacional. Nós temos destruído o Estado. O Estado, para mim, sempre foi a nação politicamente organizada. Se a nação não está politicamente organizada é o caos. E, neste momento, não temos um Estado politicamente organizado como deve estar. Interrogo-me quando o maior defensor do Governo é o Presidente da República. É isto a nação politicamente organizada? Acho que não. Se analisarmos os últimos cinco anos de Governo socialista nem tudo foi mau, mas posso apontar muitos erros.

Que tipo de erros…

Uma menos cuidadosa seleção de ministros e outros responsáveis. Uma preponderância dos interesses casuísticos face ao desenvolvimento coerente e progressivo. Uma propaganda exaustiva utilizando despudoradamente as Forças Armadas. A criação de um ambiente de medo e de suspeição.

 

Há um perfil indicado para ocupar o cargo de ministro da Defesa?

Não. Mas considero que para ser ministro da Defesa são condições básicas ter senso político e capacidade de gestão. Não é preciso mais nada. É isto que se exige a um ministro de Defesa Nacional.

Azeredo Lopes, que se demitiu em 2018, e o atual ministro não têm essas características?

O primeiro revelou uma total falta de senso e uma incapacidade de gestão. O ministro [João Gomes ] Cravinho não direi tanto. Ainda não chegou a altura de julgar a sua ação. A reforma ‘Defesa 2020’ continua atual. O que falta é alguma ambição em relação à estrutura de comando e à administração das Forças Armadas.

Em que sentido?

Sou favorável a uma descentralização nos ramos em relação à gestão, mas esta gestão descentralizada tem de ser acompanhada por uma uma coordenação adequada. Não é cada um faz o que quer e governa-se. Sou favorável a um passo que é preciso dar que é o CEMGFA (Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas) ser o único comandante das Forças Armadas para acabar com as quintas e com os donos das quintas. Se estes dois aspetos forem realizados temos uma organização para durar umas décadas. O CEMGFA, teoricamente, já é quase o único comandante. O problema é que não se levaram as coisas até ao fim. Admito que é agradável para o poder político este dividir para reinar, mas a nível de eficácia há toda a vantagem em que a estrutura seja perfeitamente piramidal. É preciso saber quem manda, a quem é que vamos pedir contas, porque depois é o jogo do empurra.

O número de efetivos das Forças Armadas é suficiente?

As Forças Armadas nunca trabalharam muito a necessidade de recrutarem e recrutarem bem. Há uma dimensão interna no interior das Forças Armadas que tem de ser trabalhada e tem de ser atrativa. As Forças Armadas, através dos contratos de longa duração e talvez de uma correção remuneratória, podiam ter sido mais atrativas. Não têm sido atrativas o suficiente para garantirem os efetivos mínimos. O jovem, ao voluntariar-se, tem de sair de lá mais bem preparado para a vida normal. Se for só para marcar passo e pintar paredes não querem ir.

É defensor do regresso do serviço militar obrigatório?

O serviço militar obrigatório está completamente desajustado da sociedade em que vivemos. As pessoas que entendem que o serviço militar obrigatório é uma casa de correção para as insuficiências educacionais dos jovens podem dormir descansadas. Há aqui um papel das escolas e da família que não está a ser cumprido. Não é aos 19 anos que se vão meter os jovens nos quartéis para os corrigir. As Forças Armadas não estão preparadas para isso e não é essa a sua missão. Durante muitos anos os jovens não foram tratados da mesma maneira. Nem todos foram ao serviço militar apesar de ser obrigatório. Quem tinha dinheiro normalmente safava-se. Eram os filhos dos fidalgos. Os licenciados, por exemplo, eram explorados. Eram utilizados dentro da instituição como se fossem um técnico superior com o vencimento de aspirante.

Disse há pouco que o Presidente da República apoia excessivamente o Governo. Isso fragiliza-o?

Diria apenas que o desempenho desta alta função pelo professor Rebelo de Sousa não contraia as minhas expectativas que eram muito baixas. Pela primeira vez em democracia conto ficar em casa e desafio quem pensa como eu a contribuir para que o próximo Presidente seja eleito com o menor número possível de votos expressos. Isso retiraria capacidade de intervenção a um Presidente da República em que não acredito.

Como justifica que este Presidente da República tenha tanta popularidade?

Nunca me esqueço que, em março de 1974, o povo sportinguista apoiou Marcelo Caetano no Estádio de Alvalade. 25 dias depois ele era vaiado no Largo do Carmo. Se calhar pelas mesmas pessoas. A natureza das coisas é assim. Nós somos assim. Temos muitas qualidades, mas também temos alguns defeitos.

O julgamento sobre o furto das armas de Tancos vai começar ainda este ano. Que lições é que devemos retirar deste caso?

Gostaria de começar pelo processo de escolha das chefias militares. Há muitos militares que dizem: isto é uma escolha essencialmente política, os militares não interferem. Interferiram durante quase 30 anos. Havia umas listas e o poder político escolhia com base nessas listas. Isso não tem nenhuma razão de ser. Um Governo legítimo, eleito democraticamente, deve ter toda a capacidade para escolher os chefes militares. Mas há um desfasamento entre a lei e a prática. A lei diz e bem que o Governo escolhe e devia poder escolher entre todos os oficiais generais. Deve existir uma carta de missão clara e objetiva que estabeleça o compromisso que aquele chefe vai ter de cumprir. Esta carta de missão deve ser submetida à apreciação da Assembleia da República. Quando se quebra a confiança que tem de existir entre o chefe e o poder político resta a um dos dois sair.

Isso nem sempre acontece?

Já tivemos provas de que assim tem de ser. Não se pode viver num clima de paz podre e aqui entro no caso de Tancos e no caso dos Comandos. Havia um clima de paz podre entre o ministro e o chefe do ramo que deu origem a uma situação da qual não resultou benefício para ninguém. Até que chegou o momento em que um e outro tiveram de ir embora.

Mas como avalia o caso de Tancos?

É, indiscutivelmente, a pior situação que as Forças Armadas viveram em democracia. O caso dos Comandos, a ser verdade aquilo que está em julgamento, é uma situação inadmissível. Não é a linguagem. Não respeitar a vida humana é que é inqualificável.

As Forças Armadas podem contribuir mais no combate à pandemia?

Foi uma oportunidade perdida. É um exemplo claro de prepotência, autismo e ignorância. O Governo envolveu as Forças Armadas em dois episódios lamentáveis. No chamado caso do hospital militar de Belém o ministro da Defesa impôs uma solução desastrosa e lesiva dos dinheiros públicos. Lamento profundamente que se tenha perdido a oportunidade de fazer ressurgir um moderno hospital de doenças infetocontagiosas, integrado no Serviço Nacional de Saúde, ao invés de dar coberturas às soluções ‘escuras’ com a Câmara Municipal de Lisboa e a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Queria também chamar a atenção para as posições assumidas pela ASMIR (Associação dos Militares na Reserva e Reforma), que todos os militares devem conhecer, pela sua qualidade, rigor e importância.