“O cinema não é uma arte, é um pecado original”

Lisboa, 1936. Ano de temporais, de chuva contínua, de mortes. Palavras de João Botelho que para este seu mais recente filme se apropriou agora das de Saramago na primeira adaptação que faz do Nobel da Literatura português. E de Saramago, garante, andou mais próximo em O Ano da Morte de Ricardo Reis, que acaba de…

“O cinema não é uma arte, é um pecado original”

Lisboa, 1936. Ano de temporais, de chuva contínua, de mortes. Palavras de João Botelho que para este seu mais recente filme se apropriou agora das de Saramago na primeira adaptação que faz do Nobel da Literatura português. E de Saramago, garante, andou mais próximo em O Ano da Morte de Ricardo Reis, que acaba de chegar às salas, do que do próprio — Ricardo Reis, que é como quem diz Pessoa, de quem tinha já adaptado ao cinema O Livro do Desassossego. «Criador e criatura», como os trata, ou a criatura e o fantasma neste reencontro que Saramago imaginou para a Ricardo Reis dar o fim que Pessoa deixou por contar. «Não tinha ainda ajustado contas com o Pessoa, ajustou ali». Fazendo o heterónimo regressar do Brasil, onde Pessoa o deixara, e a Pessoa do mundo dos mortos. «São perigosos, os escritores», diz-nos Botelho. Que não parece de qualquer modo disposto a largá-los. Mas que nos quer também fazer olhar para esse ano. «Havia um mal, que foi o que me interessou mais no romance, que é muito parecido com o mal de hoje; o mal dos populismos, dos fascismos a nascerem».

Há na filmografia do João um regresso cíclico a Pessoa. Passam-se agora exatamente dez anos da estreia do Filme do Desassossego e…

… e 40 do Conversa Acabada. Veio cá para fora em 1981 mas eu fi-lo em 1980.

Não foram no mesmo ano, mas quase, a estreia desse filme e a escrita d’ O Ano da Morte de Ricardo Reis [1984], por José Saramago. Hão de ter andado às voltas com Pessoa mais ou menos pela mesma altura.

Talvez o tenha pensado antes, mas o Saramago tem uma agenda maravilhosa, em que fez um trabalho incrível, uma agenda de 1983 que está cortada, ele muda os dias, para passar de 83 para 1936. Nessa agenda fez um inventário, dia a dia, de tudo o que se passou em Portugal e no mundo nesse ano.

A partir dos jornais da época.

Sim, foi às hemerotecas. Tem até anúncios, o programa de variedades do Coliseu… brincadeiras dessas. Tem também a recolha de todos os temporais que há em Lisboa, porque foi um ano de temporais, de mortes, de chuva contínua.

Daí a chuva que não pára de cair — demasiada chuva para Lisboa.

Tive azar porque [na rodagem] estava sol. Gastei muita água dos bombeiros. Mas essa ideia da chuva, das inundações, da censura — as mortes dessa altura. E depois, pronto, não havia este mal invisível, mas havia um mal, que foi o que me interessou mais no romance, que é muito parecido com o mal de hoje: os populismos, os fascismos a nascerem, a consolidação do fascismo italiano, a invasão da Etiópia, Adis Abeba a arder, as primeiras invasões do Hitler, a guerra civil de Espanha e o fascismo português, com a consolidação do Salazar, da Polícia [de Vigilância e Defesa] do Estado, da Legião, da Mocidade, o primeiro comício anti-comunista numa tensão enorme. Este mal é muito parecido com o de hoje do Bolsonaro e do Trump e do Orbán e do Erdogan e o gémeo sobrevivente da Polónia e o Putin e o chinês… é tudo muito parecido. Mais a pandemia, o vírus, esta uma coisa invisível que nos está…

Como se já não estivéssemos mal o suficiente antes dele.

Corresponde aos temporais e às chuvas da altura. Aqui há uns tempos li um artigo notável de um cientista de inteligência artificial. Uma coisa incrível, e as pessoas não deram muito conta disso. Foi convidado para dar uma conferência a ricos e julgava que ia ter uma plateia de magnatas a ouvi-lo falar sobre o futuro. Chegou lá e eram cinco. Cinco numa mesa e pagaram-lhe mais nessa conferência do que ele ganhava num ano, uma coisa inacreditável. Eram cinco manipuladores do dinheiro e o problema deles era, chamavam-lhe, «a grande catástrofe»: um evento que o menos provável era ser um desastre nuclear, bastante provável vir das alterações climáticas, ou então outra hipótese, que era a de uma pandemia. Muito antes de aparecer a covid. E a ideia era saber como é que sobrevivemos: «Onde é que faço o meu bunker? No Alasca ou na Nova Zelândia? Se o dinheiro desaparece, como é que pago a segurança? Como é que sobrevivo? Como é que posso transferir o meu cérebro para uma máquina e manter o meu cérebro?» Esta ideia da sobrevivência do rico assustou-me profundamente. Juro. São coisas que nem imaginamos. Achava-se que a humanidade ia tornar-se mais correta, que ia haver mais solidariedade entre as pessoas. Não. Vão morrer se calhar um milhão ou dois do vírus, mas vão morrer 50 ou 100 milhões de fome. E é isto o mundo hoje. O que me parece, sobretudo, é que não aprendemos nada. Passados quase 100 anos, de 1936 para 2020, voltamos a um ciclo parecido, com o discurso da infantilização e da ignorância. As pessoas dizem que estão mais preparadas, e estão, têm mais acesso à informação, mas há um controlo imenso sobre a cabeça das pessoas. Mais este discurso do outro — o outro que é sempre o culpado, que pode ser um negro, um chinês, um homossexual — começa a ser um problema para mim. E depois este culto do individualismo terrível. As pessoas deixaram de ser solidárias. E nesta coisa do acesso à informação 90% é lixo e controlo. Controlo e uma ideia de um desprezo absoluto pela condição humana.

E vamos de volta a 1936 — e ao filme.

Estamos a voltar a 1936. Gosto muito dos personagens que ele [Saramago] inventou,  mas para mim o personagem principal é um ano: 36. É um bom romance para os tempos que correm. E tem invenções que adoro. O cinema em Portugal é precário. Eu já fui bissexto, agora sou menos: sou bianual. Faço filmes de dois em dois anos. O que aconteceu foi que, a dada altura, pensei que tinha de devolver uma espécie de serviço público. Somos [os portugueses] os cineastas
do tempo, não do movimento: somos da contemplação, estamos mais perto da poesia do que da prosa, apesar de isto ser um romance. E há uma altura a partir da qual acho que tenho de devolver… é lutar contra o esquecimento, contra o esquecimento da literatura portuguesa.

Não acredita que qualquer forma de cinema, de produção artística, possa ser serviço público?

Não sei. Há um jogo entre o pequeno negócio e a arte. O cinema, ao contrário do que as pessoas pensam, não é uma arte. O cinema é um pecado original. Para ver as primeiras imagens que houve, metia-se uma moedinha. É um negócio e é uma coisa de vampiros: eu vou roubar à poesia, à literatura, à pintura, coisas mais puras. O cinema não consegue ser abstrato, é preciso contar-se qualquer coisa. Luto um bocado contra a ideia do cinema da transparência. Ninguém morre no cinema. Já matei não sei quantos personagens e depois tomo café com eles. Há uns filmes que não me interessam nada que são os filmes que acham que aquilo está a acontecer ou que aconteceu. O Griffith, um dos maiores criadores desta espécie de linguagem, disse em 1914 uma coisa que me marcou toda a vida: «O que falta ao cinema contemporâneo (dele) é filmar o vento nas árvores». É esta ideia de que é preciso ver e ouvir. Não é saltar lá para dentro, não é identificar-se com os personagens. Posso chorar com as riscas do Rothko, o problema do cinema é que não é capaz de chegar à abstração, de chegar às emoções sem ser pelo voyeurismo. Gosto desta distância, e não é uma coisa brechtiana, é dizer: isto é um espetáculo. É por isso que gosto mais de teatro: no teatro, sempre em plano geral, você decide; no cinema escolho eu. E é preciso dizer que estou a escolher. No cinema é tudo uma aldrabice. Digo isto francamente. É uma representação, uma coisa a duas dimensões, até a profundidade é uma ilusão. O que é que é verdade no cinema? O que as pessoas sentem quando veem. Isso é verdade. O riso, o choro, as lágrimas, o aborrecimento. O que está no ecrã não.

Mas então o que lhe interessa no cinema?

Interessa-me criar inquietações, não consolações. Pôr questões, não respostas. Pôr a hipótese de as pessoas serem livres a ver, poderem escolher e emocionarem-se com uma música, com um olhar, com uma sombra. É isso que me interessa, essa ideia que não é de educação, porque o cinema não dá lições de nada, só de cinema. O que me preocupa é quando vejo que os miúdos acham que o cinema começou com o Tarantino. E há uns que já nem sabem quem é o Tarantino. Mas isto já tem mais de 100 anos para trás. Hoje a cultura já é a normalização da arte. Onde é que começa a cultura? No rancho folclórico, no Tony Carreira, no [Álvaro] Covões? Está em todo o lado. A sério. A arte é outra coisa. O problema do cinema é que não é bem uma arte. Mas tem de ser corrompido por ela. O que me interessa no cinema não é o consumo imediato, é que ele resista. Como a literatura. É o tempo que decide se as coisas são boas ou são más e a velocidade é um bocado inimiga do tempo. É fast food. O cinema do entretenimento destruiu o cinema do tempo e do pensamento. Quando comecei no cinema, nos anos 60, o cinema que dominava era um cinema europeu: o cinema italiano, a nouvelle vague francesa… Depois houve uns putos bem espertos, cinéfilos e cultos, que mudaram o modo de filmar. Digo sempre: o Tubarão [1975] não é um mau filme, mas engoliu-nos a todos.

Já não é a primeira vez que mo diz, não.

Sou do tempo da aprendizagem coletiva. Tive sorte na minha vida porque sou do fascismo, vim do Salazar e da Mocidade Portuguesa, mas tive a crise de 69 que foi uma crise maravilhosa para mim — atrasada em Portugal, começou em 68 em França e chegou aqui em 69, mas uma dádiva da vida. E depois tive o 25 de Abril, que me mudou a vida. E a queda do Muro de Berlim. Hoje os miúdos não têm alternativas, é tudo igual: o capitalismo de Estado da China é tão horrível como o capitalismo imbecil do Trump. É tudo horrível. E os miúdos não vivem, os miúdos tentam sobreviver.

No início da pandemia houve uma esperança de que este tempo pudesse ao menos trazer uma transformação qualquer. Que daqui pudéssemos ir para um lugar melhor. Já pouca gente continua agarrada a essa ilusão inicial. O João está em qual dos grupos?

Houve uma coisa que me encantou no princípio que foi a luminosidade, o desaparecimento da poluição. Disse: «Uau, a covid ganhou à Greta». Via Almada como nunca vi [de Lisboa]: tudo recortado, não havia aquele amarelo ou cinzento dos fins de dia, era tudo de uma clareza enorme. Pensei: «Isto pode ser bom, esta paragem. As pessoas vão ser solidárias, vão ter tempo para pensar». Mas de repente foi tempo demais e a poluição já aumentou, ainda não para os níveis anteriores mas quase, e houve muitos ensandecimentos. Ainda no outro dia soube que há um mês e tal, quando reabriram os notários, 90% dos processos que lá estavam eram de divórcio. Conheço pessoas que estão mesmo diferentes. Diferentes de loucura, de afastamento, de isolamento. Aquele tempo para pensar… não serviu. Era preciso outra coisa. As pessoas estão muito inquietas, perturbadas, têm medo. Há um medo que se instalou, que é razoável, porque as pessoas podem ser infetadas, podem morrer. E uma data de miúdos que conheço foram todos despedidos. Não tinham contratos, ganhavam 4 euros à hora, não têm nada. Não sei como é que isto vai correr.

Está a falar da área cultural? Da noite?

Ficou tudo vazio. Os sítios a que as pessoas deixaram de ir, os jovens cheios de testosterona que não se abraçam, não se beijam. Está a criar-se uma coisa de clandestinidade que é uma chatice. [Risos]
A sério. Clandestinidade. Brincadeiras clandestinas.

Está a falar de festas para suprir a falta que fazem as discotecas e os clubes?

Sim. Faz-se em casa que ninguém vê. Mas há outra coisa pior, uma coisa perigosa. No meu tempo do fascismo não havia muitos agentes da PIDE. Havia, sei lá, cinco mil agentes, mas havia um milhão de informadores. Ou seja, o Salazar criou na cabeça dos portugueses a obsessão com a denúncia do vizinho: «Ah, está a ouvir a BBC». Neste momento também temos a denúncia do vizinho: «Está aqui uma festa ao lado». E vem a polícia. A sério.

Já teve uma denúncia.

Já, mas não vou contar. Já, sim senhora [risos]. Temos de continuar a viver. Temos de ter respeito, distância, usar máscara, lavar as mãos, acho tudo bem, mas não podemos deixar de viver. Este filme, por exemplo, está pronto há seis meses. Estava para estrear no princípio da covid e foi adiado para agora. Não aguento mais. Quero continuar a trabalhar, tenho outro filme para fazer a seguir. Vocês ainda têm muito tempo, eu já tenho uma certa idade. Portanto tenho de viver na mesma. Tenho de dançar e de estar e ser amável. Mas vamos agora ao filme.

Vamos, sim. Falávamos há pouco na história do cinema e neste filme toma opções estéticas que vão à procura do cinema da década de 1930, 40: o preto e branco, o film noir.

É o que gosto da história do cinema. E as elipses, gosto da elipses. Quando se faz aquelas passagens de abrir a íris e fechar a íris, as pessoas dão conta de que passou o tempo, de que mudámos para outra zona. É uma linguagem do cinema que está a ser abandonada. O cinema hoje tem um problema grave que é: as histórias são fantásticas, os filmes são maravilhosos, mas são filmados quase todos da mesma maneira. Há mais ideias de cinema nas séries televisivas americanas. Aqui não podia filmar 1936 a cores. Não posso filmar 36 em Lisboa com uma ideia de verosimilhança a cores, com sinais de trânsito, táxis pretos e verdes a passar, pessoas vestidas a hoje.

Poder, podia, mas…

… tinha de ir para estúdio. Aqui fiz Fátima no campo de tiro de Alcochete. O Hotel Bragança [originalmente na Rua do Alecrim, em Lisboa] fi-lo em Coimbra, com fotografias do Cais do Sodré nas janelas. Parece Lisboa mas não é. É o que é. É evidente que há truques, mas não são efeitos especiais de computador. Nas cenas de exterior, usei projetores monumentais sobre os atores para escurecer tudo à volta e as pessoas [que estavam na rua] parecem figurantes da época. O desaparecimento do Pessoa, por exemplo, é feito com pasta nacional Couto. Faz-se com um vidro, foi um assistente que inventou. E as luzes e as sombras… Tenho duas ideias que adoro para cinema: a primeira é luzes e sombras e seres humanos aflitos lá no meio; os otimistas vão para a luz, os pessimistas para a sombra. E a outra: o cinema não é o que se passa nem como se passa, é como se filma, é o ponto de vista. Não posso aspirar a fazer Hollywood, não há dinheiro para isso. Gastam mais num cartaz do que eu num filme inteiro. Mas não é mau isto, isto é uma felicidade.

Pode haver um lado libertador na falta de dinheiro.

Não há o peso da rentabilidade. Nunca acusei um produtor de ter destruído as minhas ideias. Nunca fiz nada para ninguém. Fiz o melhor que sabia. Há uma lição de moral do cinema do Oliveira que nunca me abandonou: «Não há dinheiro para filmar a carruagem, filma-se a roda. Mas tem de filmar bem a roda». E outra que era: «Prostitua-se para arranjar dinheiro para filmar, prostitua-se para vender o filme. Quando filma, nunca. Faça as suas convicções». Isto é um luxo. Porque isto é muito caro: o cinema não é uma coisa individual, é uma coisa com muita gente à volta. Tenho quase 5 mil figurantes neste filme. Muito mal pagos, ganham 25 euros mais um almoço, já ganharam muito mais, é terrível o que se está a passar. Os atores ganham metade do que ganhavam há dez anos. Mas se os convences a ter amor ao que estão a fazer, paixão, fazem muito bem. Tenho uma liberdade que não há em lado nenhum.

Este filme tem como protagonista…

… um fantasma.

Um fantasma ao lado de uma pessoa que nunca existiu.

O criador e a criatura. Uma pessoa morta e outra que nunca existiu. O Pessoa esqueceu-se de dar uma data de morte a este heterónimo. Deu ao Álvaro de Campos, deu ao Ricardo Reis, até a ele próprio — fez um horóscopo que anuncia quase a data da morte dele —, mas esqueceu-se da data da morte do Ricardo Reis. E o Saramago, muito esperto, traz o Ricardo Reis do Brasil depois da morte do Pessoa e faz com que se encontrem. Isto é Saramago, não é Pessoa. O Saramago inventou muitas coisas: a ideia de um Ricardo Reis quase de carne e osso, com desejos carnais, é Saramago, não é Pessoa. Mas respeita o Pessoa: o que o Pessoa diz tem muito a ver com o Pessoa, o Ricardo Reis também. Inventou aquela coisa maravilhosa de uma pessoa depois de morta ainda andar nove meses cá fora, o tempo equivalente àqueles nove meses que se perde dentro da barriga da mãe. Uau. E inventar uma criada chamada Lídia [Catarina Wallenstein]. Lídia, uma deusa do Olimpo, de repente é uma criada. E uma Marcenda [Victoria Guerra], com um nome no gerúndio, que tem um braço parado.

Sentiu-se ao fazer este filme mais próximo de Pessoa (e de Ricardo Reis) ou de Saramago?

Saramago. Do Saramago porque há muito Saramago lá dentro [do romance]. Eu não reescrevo grandes escritores, nunca reescrevi. Corto e colo. Monto. Mas o Saramago tem grandes períodos de prosa que são opiniões dele, discursos interiores, pensamentos, que consegui transformar em diálogos. Foi uma trabalheira. Às vezes há monólogos, monólogos em voz alta, que vêm daí. Não me apetecia ter [no filme] voz fora de campo, queria matéria, trabalhar a matéria do texto, a oralidade do Saramago. Agora, há coisas que ele fez de que gosto que deixei de fora: muitos trocadilhos, muitas brincadeiras, muitas coisas à portuguesa.

São mais de 500 páginas de romance.

Tenho o dobro disto para televisão, numa série de quatro horas e meia, com mais acontecimentos que no filme tive de deixar de fora. Digo sempre que o cinema não é literatura, é outra coisa. Mas tem de estar lá o livro, tem de estar lá o texto.

De tudo o que Saramago escreveu, escolheu O Ano da Morte de Ricardo Reis porquê? Há de estar entre as primeiras escolhas de muitos leitores, mas não é a mais óbvia.

Não sei se é o melhor ou se é o pior. É o mais filmável, o mais cinematográfico. Gosto do Levantado do Chão, gosto do Memorial do Convento, mas este eu posso filmar. Os outros tenho dificuldade. Não só por ser caro: este ainda consegue transformar-se em diálogos; os outros não sei. Não gosto nada da adaptação do Ensaio Sobre a Cegueira do [Fernando] Meirelles. Alguma vez entrou na cabeça de alguém? Alguma vez?

Tenho estado aqui a tentar entrar na sua.

Não consegue! As pessoas dizem o que querem. Sabe como é que acabam as relações?

Como é que acabam as relações?

As relações entre um homem e uma mulher, entre dois homens, duas mulheres, acabam quando um pergunta ao outro «em que estás a pensar?». Não há direito [risos]. Acabou. Estas coisas são importantes: não querer entrar no interior das pessoas. Nunca vi o interior de ninguém — nem me interessa. Na ópera, uma senhora de 100 quilos, 60 anos, a representar uma adolescente: se canta bem, representa bem, vou às lágrimas. O artifício interessa-me mais do que a vida. Filmei há um ano, o filme veio agora para sala e veja as coisas que já se passaram. O cinema tem de resistir ao tempo.

Por falar em ópera, a Pilar del Río tem um cameo neste filme.

É a presença do Saramago no filme.

O João conheceu-o?

Falei duas ou três vezes com ele, nunca fui íntimo. Fiz uma ópera no São Carlos e eles, muito simpáticos, deram-me durante um ano um camarote para ir ver outras coisas e o Saramago tinha um camarote ao lado. Estava sempre lá com a Pilar. A Pilar conheci muito vagamente, conheci-a agora quando falei com ela agora por causa do filme.

Já que voltou a falar no tempo, provavelmente estamos mais próximos de 1936 hoje do que se estava na década de 1980, quando Saramago regressou a ele.

É. Mas há um discurso de esquerda do Saramago, político. Ele ainda não tinha ajustado contas com o Pessoa. São perigosos, os escritores. O Pessoa tinha textos a dizer horrores do Camões, fez aquela coisa extraordinária dos heterónimos porque não tinha interlocutores. O Sá Carneiro era um grande poeta e suicidou-se aos 24. A criação e o pensamento criam muitos problemas. O Saramago não tinha ainda ajustado contas com o Pessoa e ajustou ali. E O Ano da Morte de Ricardo Reis tem coisas do Pessoa, mas é muito mais Saramago. Muito mais. Se reparar o Pessoa, o criador, é muito cínico em relação à criatura. Esse humor é do Saramago. Deixe-me ir fumar um cigarro. Isto já chega para a entrevista, não já?