Steve Mcqueen e a sua incontrolável paixão pelas quatro rodas

Faria no próximo dia 7 de novembro 90 anos aquele que os americanos consideraram o King of Cool, Steve McQueen, um ator de estilo único, fleumático, que nasceu na indigência e chegou a ser a estrela de cinema mais bem paga do mundo. Gostava de gastar bom dinheiro em carros de todas as marcas e…

Nunca foi capaz de responder com sinceridade se preferia um bom par de pernas ou quatro rodas: mulheres ou automóveis. Apesar de também ser um grande entusiasta das duas rodas, ou das motos, quero eu dizer. No ano de 1978 desenvolveu uma espécie de tosse convulsa bastante incomodativa. Para ele próprio, certamente, mas também para todos os que pretendiam ter uma conversa com ele sem serem constantemente interrompidos pela expetoração continuada. O médico foi direto e incisivo: nem mais um cigarro! Algo terrível para quem fumava de forma compulsiva e chegou a ser o emblema de certas marcas que lhe pagavam fortunas para surgir em cartazes publicitários. Steve sentia-se fraco. Logo ele que, a despeito do seu estilo «cool», como os americanos gostavam de dizer – era mesmo a representação impecável do «cool» a ponto de ganhar a alcunha de King of Cool – tinha uma energia inesgotável. Ou pelo menos estava convencido disso porque os dois anos que se seguiram foram devastadores. À tosse seguiu-se um silvo persistente. Os pulmões de Steve estavam a degradar-se de uma forma incontrolável e, no dia 22 de dezembro de 1979, logo depois de ter acabado de filmar The Hunter, foi-lhe diagnosticado um cancro. O diagnóstico condenou-o à morte. Não havia tratamento possível. Alguns dos especialistas que consultou não mostraram dúvidas: McQueen tinha-se exposto demasiado tempo e com frequência excessiva a um uma variedade fibrosa de sais minerais metamorfósicos conhecida por asbesto ou, mais vulgarmente, por amianto. Ironicamente, a expressão amianto vem do grego com o significado de puro, sem mácula. Muito pouco ironicamente, por ser um material flexível e de enorme resistência química, térmica e elétrica, é utilizado na fabricação de motores de automóveis e faz pairar na atmosfera fibras extremamente finas e longas que os pulmões humanos acumulam com facilidade. Terrence Stephen McQueen não durou muito mais por entre o mundo dos vivos. As tarefas a que o obrigaram durante a II Grande Guerra, removendo amianto de pipelines durante a sua permanência nos Marines, e o seu vício de enfiar a cabeça em todos os motores de automóveis que lhe provocassem o mais ligeiro interesse mataram-no de forma dolorosa em Ciudad Juárez, Chihuaha, México, numa clínica onde se internara sob o falso nome de Samuel Sheppard. De pouco lhe serviu esconder a identidade: estava irreconhecível._As metástases haviam-se espalhado um pouco por todo o lado, fizeram-lhe um transplante de fígado, que pesava cerca de dois quilos e meio por via do tumor acoplado, e retiraram-lhe uma série de outros edemas do pescoço e do abdómen. Às 3h45 minutos, o óbito foi assinado. O seu coração de corredor de automóveis não aguentara a velocidade com que os apostemas o atacaram por todo o lado. Leonard DeWitt, o pároco da Igreja Missionária de Ventura presidiu à sua cremação e as suas cinzas foram lançadas sobre as ondas do Pacífico. Capítulo final de uma vida vivida a mais de 200 quilómetros por hora.

Em outubro de 2011, mais de vinte anos após a morte de Steve McQueen, Frédéric Brun, um escritor francês que conquistara o_Prémio Goncourt com o romance Perla, dedicou-se a estudar a paixão incontrolável de Steve por automóveis. O material foi tão vasto que garantiu um livro chamado Steve McQueen – A Passion for Speed. Nele se recorda como McQueen não era capaz de resistir a um papel em que se visse metido em altas velocidades, tal como sucedeu, por exemplo, na sua fuga espetacular por entre as tropas nazis no_The_Great Escape, de 1963, pilotando uma BMW 650cc, ou um Gulf Porsche 917 em Le Mans, de 1971, altura em que fez uma birra mais própria de criança mimada, exigindo participar de facto na prova em vez de filmar apenas cenas no decorrer da mesma, algo que os seus produtores, ligeiramente mais sensatos do que ele, recusaram de forma absoluta.

 

Teimosia sem remédio

A forma inacreditavelmente fanática como Steve McQueen se deixou apaixonar pela velocidade fez dele uma figura à parte no meio snobe de Hollywood e acabaria por colá-lo, de certa forma, à imagem de rebelde sem causa personificada por James Dean que viria a morrer aos 24 anos, no dia 30 de setembro de 1955, em Cholame, Califórnia, ao volante de um Porsche 550 Spyder que ele apelidava carinhosamente de Little Bastard. Dean, cuja imagem ainda hoje faz suspirar algumas senhoras mais românticas, era outro louco por máquinas praticamente voadoras e chegou a participar em provas profissionais em Palm Springs, Califórnia, Bakersfield, também na Califórnia, e só por impedimento de agenda, ao filmar Rebel Without a Cause, nesse ano fatídico de 1955, não entrou nas 500 milhas de Indianápolis.

É fácil encontrar similaridades entre os dois atores, como se vê. Steve McQueen também não falhou a presença em provas para profissionais como a Baja 1000, a Mint 400 ou o Elsinore Grand Prix. A sua determinação ia ao ponto do exagero de se exercitar até aos limites em halterofilismo, corrida de longas distâncias e artes marciais. Só não não partiu para o outro mundo como queria, isto é, ao volante de uma carroçaria que albergasse umas centenas de cavalos.

 

Ali mesmo ao lado

Parece de propósito: Terrence Stephen McQueen nasceu o dia 24 de março de 1930 no St. Francis Hospital, em Beach Grove, Indiana, no subúrbio de Indianápolis onde se realiza uma das provas automobilistas mais famosas do mundo. Julia Ann, sua mãe, tinha uma tendência muito acentuada para exagerar nas quantidades de álcool que ingeria e o pai, William McQueen tinha a invulgar profissão de ser piloto de espetáculos num circo aéreo, gastando as suas horas de trabalho a fazer loopings por cima de multidões embasbacadas. Disléxico e parcialmente surdo devido a um problema no parto, Steve encantou-se com um triciclo que lhe foi oferecido, quando fez quatro anos, pelo seu tio Claude que o tratou como pai depois da separação de William e Julian_Ann e rapidamente estava a organizar corridas com qualquer vizinho que conseguisse desarrancar um veículo nas ruas do bairro pobre onde nasceu. Com a morte de Claude, passou a ter mais do que fazer. Abandonado à sua sorte, passou a homem sem-abrigo, dedicando-se a crimes de meia-tijela e fugindo a sete pés do novo marido da mãe, um desgraçado que parecia ter um prazer mórbido em chegar-lhe a roupa ao pêlo e que ele tratava por «a prime son of a bitch». Mal teve altura para se medir com a besta, Steve ameaçou-o de morte se voltasse a tocar nele ou na mãe e partiu para uma existência de ferrabrás incorrigível até ser engajado em 1947 pelos Marines com a orgulhosa honra posterior de vir a ser dispensado por total indisciplina.

Ninguém poderia imaginar que o rapaz tomasse um caminho decente, mas a verdade é que, em 1950, resolveu estudar teatro com o dinheiro que ganhava nas participações em corridas de motos na Long_Island City Raceway, uma espécie de poço-da-morte disputado por malta que tivesse estômago para correr perigo de vida todos os fins de semana. Comprou uma Harley-Davidson e tornou-se tão francamente bom nas provas em que competia que não tardou a começar a levar para casa uns bons 100 dólares por semana, uma verba muitíssimo razoável para a época.

Como se percebe, foram as motos que empurraram Steve McQueen para os filmes. Aos 25 anos mudou-se para a Califórnia e instalou-se em Vestal Avenue, junto a Echo_Park, e passou a bater de porta em porta em busca de um trabalho como ator. Um produtor e realizador chamado Ellien Helkins simpatizou com o moço e com o seu descaramento. Meteu-o debaixo da sua asa protetora e deu-lhe papéis menores em filmes igualmente menores como Somebody Up There Likes Me, dirigido por Robert Wise e que tinha como protagonista Paul Newman, outro louco por velocidade com o qual criaria não apenas uma forte amizade como uma fascinante rivalidade.

Com a vida no cinema encarreirada, ainda por cima depois de ter passado a ser igualmente uma espécie de protegido do grande Frank Sinatra, McQueen não conseguia não dar nas vistas. Nem deles nem delas. Em 1960 entrou definitivamente para a história da sétima arte ao representar o papel de Vin Tanner em Os Sete Magníficos, contracenando com Yul Brynner, Eli Wallach, Robert Vaughn, Charles Bronson e James Coburn. E não desperdiçou a oportunidade de ser o novo «cool» de Hollywood, adotando igualmente o estatuto de galã. Getaway, de Sam Peckinpah, em cujas gravações conheceu uma das suas mulheres, Ali McGraw, Papillon, contracenando com Dustin Hoffman, The Towering Inferno, de novo com Paul Newman, fizeram de Steve o ator mais bem pago do cinema. Os Rolling Stones dedicaram-lhe uma música chamada Star Star, mas a letra exigiu-lhes uma autorização especial de McQueen que não só a deu como pareceu ficar contente com o resultado: «Yeah, you’re a star fucker, star fucker, star fucker, star fucker, star/Yeah, a star fucker, star fucker, star fucker, star fucker, star/Yeah, Ali MacGraw got mad with you/For givin’ head to Steve McQueen».

Nessa fase já Steve perdia mais tempo a comprar carros e motos do que a estudar o papel para filmes. Tinha dinheiro que chegava e sobrava para ir adquirindo os seus brinquedos: os Porsche 917 e Porsche 908 e o Ferrari 512 que fizeram parte do filme Le Mans; um Ferrari 250 GT Berlinetta Lusso; um Jaguar XKSS; um Mini Cooper-S fabricado de propósito para ele com tablier em madeira e pintado de um tom dourado; um Porsche 356 Speedster 1600 Super todo negro, por dentro e por fora, também saído de fábrica a seu gosto; um Chrysler Airflow Imperial Sedan de 1935; um Hudson Commodore Convertible; um Hudson Wasp 2-door sedan de 1969 e um Hudson Hornet 4-door Sedan de 1953, e por aí fora até ao exagero. Confessou um dia, meses antes da sua morte, que ficara com a frustração entalada na garganta por nunca ter conseguido comprar o Ford Mustang GT 390 que conduziu durante o filme Bullitt e que tinha sido alterado especialmente para ser adaptado à sua forma de guiar.

A morte apanhou Steve McQueen aos 50 anos._Uma idade em que muitos recomeçam a vida. Tinha fama, tinha dinheiro, tinha mulheres – os amigos garantiam que Ali McGraw fora a paixão da sua vida, até maior do que a dos automóveis -, mas o cancro colheu-o numa curva da existência com a brutalidade de um bólide a 200 km por hora. A velocidade, afinal, a que gostava de dominar as suas máquinas…