Conan Doyle e o drama de Dorando

O criador de Sherlock Holmes cobriu a maratona olímpica de Londres de 1908 para o Daily Mail  – e não ficou indiferente

Diz-se, em jeito de piada de caserna, que os italianos não são muito bons em maratonas porque é uma prova que os obriga a ficar demasiado tempo longe das mães. Que os italianos são os maiores especialistas do mundo em mães, é opinião que ninguém contraria, Mamma Mia!!! A mãe de Dorando era uma senhora muito estimável, natural de Mandri, uma aldeola perto de Corregio, na Reggia-Emilia, que o trouxe ao mundo no dia 16 de outubro de 1885. Quanto a Dorando Pietri, o Destino marcou-lhe a hora de ser o primeiro italiano a vencer uma maratona olímpica, mas ínvio como costuma ser, tal e qual os caminhos do Senhor, roubou-lhe essa honra ainda antes de ele ter tido noção da sua façanha.

Em 1908, em Londres, Dorando apresentou-se como sendo o indiscutível melhor corredor de fundo italiano do seu tempo. Dos 5000 metros à maratona não havia, em Itália, quem o batesse. Ou melhor, havia. Não só em Itália como dentro dele próprio: era atreito a dores intestinais e já fora obrigado a abandonar uma ou duas provas importantes por via dos divertículos. À partida para a maratona olímpica estavam presentes 56 atletas e Arthur Conan Doyle, o inimitável autor de Sherlock Holmes. «Nunca fui muito dado ao trabalho jornalístico», escreveu nesse dia, «mas deixei-me tentar pela excelente oferta do Daily Mail e não me arrependo porque fui bafejado pela extraordinária experiência de escrever sobre a corrida de Dorando e sobre a sua chegada ao estádio pejado de mais de 75 mil espetadores».

Pietri era italiano, mas não era nenhum espalha-brasas. Entregou-se nas mãos de uma das infinitas Madonnas que bafejam os italianos com o seu sopro de mães preocupadas, e manteve um ritmo lento até metade da corrida. À medida que se aproximava da chegada tornava-se evidente que o único homem que o precedia, o sul-africano Charles Hefferon, não estava em condições de suportar o seu ataque final. Dorando passou por ele ao quilómetro 39. Quando entrou no White City Stadium, cambaleava de forma definitiva e tomou a direção contrária à da meta. Os fiscais tiveram de o reencaminhar. Pietri caiu redondo, arfando aflitivamente.

Suddenly the whole group stopped. There were wild gesticulations. Men stooped and rose again. Good heavens! he has fainted; is it possible that even at this last moment the prize may slip through his fingers?», escreveu Conan Doyle. O drama desenrolava-se à sua frente e, desta vez, não precisava de se esconder por detrás da prosa do dr. Watson.

«Thank God, he is on his feet again!», avançava Doyle. E avançava também Dorando_Pietri. Magro, quase raquítico, agarrava-se ao que lhe restava de forças. «Ah! Como é horrível e ao mesmo tempo fascinante a sua luta entre a vontade e a exaustão».

Dorando Pietri caiu e voltou a cair. Levantou-se por duas vezes e, por outras duas vezes, voltou a afocinhar na pista de terra batida. Do tempo total que demorou a percorrer o percurso, 2 horas, 54 minutos e 46 segundos, dez foram gastos no brutal sofrimento de percorrer os últimos 350 metros. Os delegados precisaram de lhe agarrar os braços para que pudesse cruzar a meta como vencedor e campeão olímpico. «Pouco metros à minha frente, pude testemunhar as suas mãos tortas como garras, a sua face amarela, os seu olhar inexpressivo», continuava Arthur Conan Doyle. «Nunca nenhum romano fora tão ao fundo de si mesmo como Dorando nesse dia 24 de julho de 1908».

A equipa dos Estados Unidos, que colocara três corredores nos cinco primeiros lugares, atacou de forma dura. Não desportiva, mas legalmente. Dorando Pietri tinha sido auxiliado pelos juízes e, como tal, devia ser desqualificado. Johnny Hayes, que fora o segundo classificado, seria declarado vencedor. O italiano ergueu os olhos para o céu, mas estava demasiado desidratado para conseguir chorar. Guardou as lágrimas para o ombro de sua mãe.

Arthur Conan Doyle era suficientemente romântico para não ficar indiferente ao drama a que assistira e essencialmente prático para se ficar pela crónica cheia de sentimentos. Iniciou, nas páginas do_Daily Mail, uma subscrição e obteve 350 libras, uma fortuna para a família Pietri lá na sua aldeia de Mandri, e que serviu para que Dorando abrisse uma padaria. Jean Elizabeth Leckie, a segunda mulher de Conan Doyle, que lhe daria três filhos, ofereceu-se para entregar o prémio a Pietri. No dia 31 de de julho, uma semana após a violenta aventura da maratona de Londres, no_Palácio das Carmelitas, Dorando_Pietri recebeu um abraço e uma cigarreira de prata do casal Doyle. «A minha esposa fez um discurso sentido, em inglês, claro. Pietri não percebeu uma única palavra. Depois foi a vez do pequeno italiano falar, em italiano, claro, e a nossa vez de não percebermos nada de nada. Apesar de tudo, tenho a certeza de que nos entendemos muito bem», concluiu Doyle. Tinha sempre um toque de ironia na manga…

afonso.melo@newsplex.pt