Estados Unidos. A infeção que mudou a campanha

O mundo aguarda para saber se Trump será prejudicado pela suspensão da campanha ou sairá vitorioso, certo de que a covid-19 não era nada de mais.

Estados Unidos. A infeção que mudou a campanha

Numas presidenciais marcadas pela pandemia, uma profunda crise económica, protestos massivos, ciclones e incêndios de dimensões sem precedentes, o anúncio de que Donald e Melania Trump estão infetados com covid-19 pode ser a derradeira ‘surpresa de outubro’. Ou seja, um evento inesperado que muda o rumo das eleições, no jargão político norte-americano.

Por um lado, já foram cancelados todos os eventos da campanha do Presidente, que entretanto foi hospitalizado e cujo estado de saúde é alvo de contradições. O seu médico disse, em comunicado, que Trump estava “muito bem”, mas pouco depois uma fonte próxima da Casa Branca deu indicação contrária, chegando a afirmar que os sinais vitais foram alvo de preocupação e que as próximas 48 horas seriam críticas.

Por outro lado, se a informação do médico se vier a confirmar, poderá servir para justificar a sua posição de que as medidas contra a covid-19 foram exageradas, como fez anteriormente o Presidente brasileiro, Jair Bolsonaro.

«Um vírus não quer saber quem és ou onde estás, simplesmente quer saltar de hospedeiro em hospedeiro», salientou Sanjay Gupta, o especialista em saúde da CNN. «E ainda é espantoso para mim que no mais alto posto, na Ala Ocidental, na Sala Oval, não houvesse algumas das precauções básicas», acrescentou. «Havia uma atitude muito relaxada quanto a este vírus, em espaços fechados, com pessoas muito próximas, reuniões prolongadas».

Entretanto, por entre a maré de desejos de melhoras que recebeu o Presidente, vindos de todos os lados do espetro político, nota-se um certo escárnio entre os seus críticos. «Quem poderia ter adivinhado que um Presidente que repetidamente espalhou desinformação sobre o coronavírus, fez comícios em zonas de alto risco de infeção e raramente usou máscara em público acabaria por apanhar covid-19?», lê-se no Guardian. «Qualquer pessoa que estivesse a prestar atenção».

 

‘Irresponsável’

O surto no círculo próximo do Presidente tem tudo para ser um pesadelo no que toca a rastreio de contactos. Uma das suas funcionárias mais próximas, Hope Hicks, de 31 anos, antiga modelo e assessora da Fox News, que viria a dar positivo à covid-19, teve sintomas na quarta-feira, um dia após viajar a bordo do Air Force One com Trump. Iam rumo a Cleveland para o debate presidencial.

De um lado do auditório, onde o uso de máscara era obrigatório, sentaram-se os apoiantes do candidato democrata, Joe Biden que seguiram as regras. Do outro, a vasta maioria dos apoiantes de Presidente, salvo raras exceções, recusaram-se a fazê-lo. Os filhos do Trump chegaram a ignorar os avisos de um dos médicos da Cleveland Clinic que lhes levou máscaras, avançou a NBC.

Durante o debate, com Hope Hicks na audiência ao pé da sua família, Trump até gozou com Biden por usar máscara. «Cada vez que o vês ele tem uma máscara. Ele podia estar a falar a 200 pés de distância [cerca de 61 metros]… E ele aparece com a maior máscara que já vi», troçou o Presidente. «Eu ponho uma máscara quando penso que é preciso. Hoje, por exemplo, toda a gente fez um teste, houve distanciamento social».

Já Biden retorquiu: «Ele foi totalmente irresponsável pela maneira como lidou com o distanciamento social e desencorajou pessoas a usar máscaras». Apesar de estarem de lados opostos do palco, a mais de três metros, cada um no seu pódio, o candidato democrata, de 77 anos, também teve de ser testado, após debater 90 minutos com Trump, que frequentemente falou num volume elevado na sua direção. Para já, Biden deu negativo.

No dia seguinte, um pequeno grupo de funcionários já sabia que Hope Hicks dera positivo à covid-19, ficando de quarentena dentro do Air Force One, avançou o New York Times. Mesmo assim, a Casa Branca não alterou o calendário do Presidente, que foi a uma angariação de fundos num dos seus clubes de golfe, em Nova Jersey, na quinta-feira, onde praticamente ninguém usou máscara.

«Só quero dizer-vos que o fim da pandemia está à vista. E que o próximo ano será um dos maiores anos na história do nosso país», declarou Trump.

Antes disso, o Presidente tinha tido uma semana particularmente atarefada, interagindo com personagens-chave da Administração, apoiantes e até com a sua candidata ao Supremo Tribunal, a juíza Amy Coney Barrett. Agora, dentro da Casa Branca vive-se o caos, com os funcionários a tentar perceber que outros altos dirigentes poderão estar infetados, contaram fontes da CNN.

Além disso, é de estranhar que Hicks tenha tido sintomas antes de dar positivo, dado serem obrigatórios testes diários a quem contacta com o Presidente – a assessora viajou com ele a semana toda e normalmente, os sintomas só aparecem dias depois da infeção. Contudo a Casa Branca usa os testes Abbott ID Now, que se sabe darem uma percentagem significativa de falsos negativos.

 

Impacto na campanha

Donald Trump não é o primeiro chefe de Executivo que contraiu coronavírus. Talvez o que tenha passado pior tenha sido o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, quase vinte anos mais novo que Trump. Foi infetado no final de março, acabou a passar uma semana no hospital, mais três dias nos cuidados intensivos, em risco de vida – foi salvo por uma equipa que incluía um enfermeiro português. A seguir,  ainda passou uns tempos na sua casa de campo, a recuperar.

Antes do primeiro-ministro britânico adoecer, o seu Governo tinha defendido a imunidade de grupo como uma solução para a pandemia. Depois, com o público chocado pela provação de Johnson, subitamente começaram a tomar medidas mais vigorosas contra a pandemia.

A um mês das eleições, mesmo que fique gravemente doente, seria quase impossível que Trump desse uma tal reviravolta. Ao mesmo tempo, os seus apoiantes poderiam aperceber-se de que a pandemia afinal é algo sério.  Talvez recordem que durante o mandato do Presidente mais de 7,5 milhões de pessoas foram infetadas nos EUA e 212 mil morreram, o pior balanço a nível global, enquanto este minimizava a doença de agora sofre.

Não é por acaso que o Presidente foge ao tema da covid-19 desde de o início da campanha, focando-se na «lei e ordem» contra os protestos ou na nomeação de uma juíza conservadora para o Supremo Tribunal. Só um terço dos norte-americanos aprovam a sua gestão da pandemia, segundo sondagens da Ipsos. E estando Trump doente, dificilmente conseguirá mudar de assunto. 

Além disso, o Presidente não tem semanas para recuperar. Para já, perderá pelo menos 14 dias de quarentena, garantiu a Casa Branca. Entretanto, ficam cancelados os seus comícios, conhecidos pela energia da multidão, onde bonés vermelhos a dizer «Make America Great Again» são omnipresentes.

Certamente que outros personagens da Administração Trump poderão tentar substituí-lo, mas não seria a mesma coisa. «Nos últimos cinco anos, estes comícios foram onde Trump demonstrou a sua mítica conexão com a sua base», recordou a New Yorker. E o Presidente está bem consciente disso, de tal forma que já ignorou as normas sanitárias de vários estados para realizar comícios, por vezes em espaços fechados, com os seus apoiantes aos gritos, sem distanciamento social ou máscaras à vista. «Será que vimos o último?», questionou a revista nova-iorquina.

Contudo, se Trump tiver mais sorte que Johnson, talvez o seu caso seja semelhante ao de Bolsonaro, que aos 65 anos teve sintomas ligeiros. De facto, o que o Presidente brasileiro sofreu, no final de junho, mais parecia uma «gripezinha», como este chamara à covid-19 anteriormente, com alguma febre, cansaço e dores musculares. Desde então, seis milhões de brasileiros foram infetados e 100 mil morreram. Ainda assim, após a recuperação, Bolsonaro viu um pico na sua popularidade, passando de 32% para 37 %, a mais alta taxa de aprovação que teve, segundo o Datafolha.

«Creio que importa quão doente Trump ficar», notou o analista Rob Stutzman, em declarações ao LA Times. «Porque se ele nunca desenvolver muitos sintomas, se ele passar por isto e estiver ótimo, imagino que o encoraje e à sua base».

Hoje, a doença de Trump é vista pelos seus críticos quase como karma, resultado de meses a ignorar uma tragédia em curso. Mas importa pensar no impacto que poderia ter um Trump recuperado, vitorioso, a regressar aos comícios a uns dias das eleições de 3 de novembro.

Ou então, talvez mude pouca coisa, num país onde tanta gente já decidiu à partida em quem vai votar. «Há definitivamente a possibilidade de que possamos ter algum voto por empatia a chegar a Trump», considerou a analista Cailin Birch,  da Economist Intelligence Unit, à CNBC. «Mas não tenho a certeza, dada a sua abordagem ao vírus. Além do facto de que o espetro político dos EUA está tão polarizado e entrincheirado que poderia não ter qualquer impacto real».

 

Terreno pantanoso

Então e se acontecer o pior, e o Presidente ficar incapacitado? Nesse caso, nos próximos tempos, tomaria as rédeas o vice-presidente Mike Pence, que deu negativo à covid-19.

Contudo, chegando às eleições de 3 de novembro, o terreno torna-se mais pantanoso, um caso sem precedentes. Muitos norte-americanos já começaram a enviar os seus votos por correspondência, como o nome de Trump impresso, e a Constituição norte-americana proíbe o adiamento das eleições.

 «Se tivermos a infelicidade de ter um candidato presidencial a morrer ou ficar incapacitado tão próximo das eleições, o que acontece a seguir é incerto e confuso», notou Rick Hasen, professor de direito eleitoral na Universidade da Califórnia, ao LA Times. «Deixa espaço para jogos políticos, bem como para as regras arcanas do colégio eleitoral».