Biblioteca Pessoal: A volta ao mundo numa pintura

Pela mão de Brook, somos levados a bordo dos navios holandeses da Companhia das Índias Orientais, e não só, para paragens distantes nas Américas, no mar da China, nas Filipinas, em Java ou em Batávia, nome então dado à atual Jacarta.

Olhar para uma pintura e decifrá-la pode ser um jogo com regras complicadas. Uma coisa é descrever os elementos que a compõem – aqui um homem de chapéu, ali um tapete, acolá um edifício em ruínas. Outra coisa é identificar esses elementos, dar-lhes um nome; e outra ainda perceber que papel desempenham na história que se pretende contar.
O historiador e sinólogo canadiano Timothy Brook tentou ir ainda mais longe. No livro O Chapéu de Vermeer (ed. Gradiva) pegou em cinco pinturas do mestre holandês do século XVII (e mais três obras de outros artistas) para tentar explicar como funcionavam as ligações comerciais e culturais naquele tempo.

«Se pensarmos nos objetos em si mesmos não como adereços atrás da janela, mas como portas para nós abrirmos, chegaremos a passagens que nos levam a descobertas sobre o mundo do século XVII», enuncia o autor. Como bom contador de histórias que é, Brooke toma como ponto de partida um pormenor, a tal porta que se abre – um chapéu de feltro de castor, um prato chinês de porcelana, um mapa, uma moeda de prata – para mostrar a importância daquele produto na época e que trajeto poderia ter percorrido até chegar ao estúdio do artista. Como método, temos de reconhecer que é mais do que engenhoso: é brilhante.

Assim, pela mão de Brook, somos levados a bordo dos navios holandeses da Companhia das Índias Orientais, e não só, para paragens distantes nas Américas, no mar da China, nas Filipinas, em Java ou em Batávia, nome então dado à atual Jacarta.

Para o leitor que foi atraído pelo nome de Vermeer – como foi o meu caso –, a inclinação de Brook pelos temas chineses é impossível de disfarçar. Reconheço que gostaria de ter lido mais sobre a Delft onde o pintor viveu e morreu e menos sobre os chineses de Manila do século XVII ou sobre as intrigas entre dois funcionários da corte chinesa, Paulo Xu e Lu Zhaolong.

Mas o livro de Brook não deixa de ser sempre rico e surpreendente, fale ele do aperfeiçoamento dos arcabuzes, da disseminação do tabaco, da circulação da prata ou das qualidades do feltro de castor.
Mais elástico, mais denso e menos permeável do que o feltro de lã, o feltro feito a partir de pêlos de castor era ideal para fazer chapéus. Porém a extinção deste animal na Escandinávia secou a fonte de abastecimento. Até que no final do século XVIse abriram dois novos locais de exploração – a Sibéria e o Canadá. Os chapéus de feltro de castor voltaram a estar na moda, e tornaram-se um sinal de estatuto. É nessa condição que esta peça de vestuário chega à cabeça da personagem de costas na pintura Militar com rapariga rindo, de cerca de 1658. Ainda assim, o verdadeiro chapéu de Vermeer era outro. O pintor preferia uma boina mole e achatada, como representou n’A Alegoria da Pintura. Não teria as qualidades do feltro de castor, mas também não era preciso, até porque só muito mais tarde os pintores começariam a trabalhar ao ar livre. Para o artista no seu ateliê, a boina servia perfeitamente.