“Em Portugal, quem é muito rico não paga impostos”

Eduardo Paz Ferreira afasta a ideia de que vamos assistir ‘a um assalto’ aos fundos comunitários e diz que, ‘se existirem problemas’ nessa matéria, a máquina judiciária tem de atuar. Critica também a atuação do Tribunal de Contas, por avançar com parecer sobre propostas que ainda não foram aprovadas no Parlamento.

“Em Portugal, quem é muito rico não paga impostos”

Diz que as finanças públicas não podem ser geridas à luz de um mero taticismo político ou como mero instrumento de ação política de um partido ou de um grupo social. Isso é fácil de gerir?

Por um lado, há que mudar a mente: ao que se tem assistido é a uma tentativa para reduzir as finanças públicas a números. Tudo se reduz ao valor do défice, ao valor do PIB e esquecem-se realidades muito importantes. E, depois, temos a questão do taticismo político. De alguma forma, este Orçamento que está a ser discutido agora, é um exemplo disso mesmo. Não se pode desviar as finanças da política, os políticos têm o direito e o dever de intervir definindo quais as prioridades que acham mais aceitáveis para o país, mas não tornar isso numa pura manobra – temos casos célebres, como a votação do queijo Limiano e provavelmente houve outros semelhantes, mas esse deputado nunca se livrou de ter ‘vendido’ um voto ao PS pelo queijo Limiano.

Muitas vezes, as finanças públicas são usadas como uma arma de arremesso entre os partidos políticos…

As finanças públicas têm de ser a expressão dos desejos dos cidadãos, aquilo que os cidadãos querem. Se querem uma sociedade mais virada para a segurança ou mais para a redistribuição da riqueza. Têm de ser eles a definir os grandes valores que estão em causa e isso não passa necessariamente por esse tipo de discussão partidária muito acirrada, embora ache que os partidos têm todo o direito e o dever de defenderem os seus pontos de vista. Agora, quando as coisas se aproximam, se dá jeito provocar uma crise ou não, já não estamos no domínio das finanças, mas no domínio da política pura.

É o caso deste Orçamento?

Voltamos a 2011, com o Presidente da República a tentar patrocinar uma solução de estabilidade, mas não tem o poder para isso. Tem um poder de influência, ninguém se quer zangar ou ser descomposto por ele, mas não tem mais poderes do que esse. 

Mas, ao apelar para não haver uma crise política, poderá dar algum ‘empurrão’, pelo menos, aos partidos de esquerda para deixarem passar o  documento?

Sim, embora diria que esses partidos são dos menos sensíveis à voz do Presidente da República. Nunca o apoiaram, nunca tiveram relações muito próximas com ele.

Até têm candidatos próprios às eleições presidenciais…

Têm candidatos próprios, não põem a hipótese longínqua de apoiar o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa. Esses não são talvez muito sensíveis. Podem ser no aspeto do desgaste, dada a popularidade enorme que o Presidente tem junto da população. Noutro dia, achei curioso no programa do Ricardo Araújo Pereira a crítica que fez ao Presidente da República por estar a interferir no Orçamento e até o comparava ao Dom Corleone d’ O Padrinho ao dizer que têm aqui uma coisa que não podem dizer que não.

Os partidos de esquerda dizem todos os anos que não passam um cheque em branco mas acabam por aprovar o documento. Acha que este ano vamos assistir ao mesmo?

Não sei. A aposta do primeiro-ministro de governar em minoria pareceu-me sempre uma proposta arriscada, principalmente dada a grande tensão que se vive na sociedade portuguesa. Se olhar para os jornais, vê, em alguns, que há uma hostilidade muito grande ao Governo e isso cria-lhe um ambiente mais difícil. Qualquer passo que dê é imediatamente escrutinado e interpretado no sentido de o desvalorizar ou de o atacar. Para ele, teria sido muito mais seguro ter uma base sólida de apoio. Só que isto é muito complicado. Penso que conseguiria fazer com alguma facilidade o acordo com o Bloco de Esquerda, se não fosse a questão do Novo Banco.

É o ‘calcanhar de Aquiles’…

É verdade. Aparentemente, há uma proposta do Governo mais ou menos conciliatória que é não ficar previsto no Orçamento qualquer verba para o Novo Banco, o que para mim já seria bastante tranquilizante, mas o Bloco, ao que ouço dizer, quer que fique expressamente que ninguém apoiará o Novo Banco. Uma posição ideológica, muito justa, não sei se é muito oportuna e se as consequências não poderiam ser muito complicadas.

A injeção dessas verbas está prevista no acordo de venda…

Essa foi a asneira inicial. Claro que se pode sempre pensar que não se estava à espera que a administração do Novo Banco fizesse o que fez, nomeadamente toda aquela série de vendas com descontos brutais e, ainda por cima, a pessoas com interesses no próprio banco. Num certo sentido, seria possível alegar má-fé na gestão. Uma má administração justificaria que não se cumprisse o acordo na totalidade. Infelizmente, os mercados financeiros mandam no mundo e são implacáveis. É muito difícil fazer qualquer movimento que não crie uma onda de choque muito grande.

Mas já foi conhecida a auditoria…

As auditorias são um problema muito complexo. É muito importante que haja auditorias, algumas têm muita qualidade, mas as auditoras têm muitos interesses, têm muitos clientes e têm muito cuidado em não perderem esses clientes e esses interesses. Portanto, tendem sempre para soluções apaziguadoras. É difícil encontrar, a não ser em casos muito evidentes, uma auditoria muito crítica a uma administração.

Se fosse provado que tivesse existido má gestão, o Novo Banco seria obrigado a devolver os apoios?

Nesse caso, o Estado devia processar o Novo Banco. O problema é que a justiça económica é uma área muito complicada. Não é simples para os magistrados portugueses que, na sua generalidade, não têm preparação económica nem financeira, nem têm assessores que os possam ajudar nisso. E vemos a grande lentidão na decisão de muitos processos na área financeira, que se deve muito à dificuldade de lidarem com este tipo de processos.

O PCP também reivindica medidas e tem apontado críticas à elevada carga fiscal e isso viu-se no estudo agora realizado pela CIP…

O problema essencial é que o sistema fiscal português, como muitos outros sistemas fiscais,  não está preparado para lidar com a perda de receita que resulta da fraude e da evasão fiscal. Em Portugal, quem é muito rico não paga imposto, coloca dinheiro no estrangeiro, arranja offshores, o que é uma coisa extraordinária. Como é que dentro da própria UE há offshores. Por exemplo, como é possível que o Luxemburgo ou a Holanda ou outros países estejam em condições de aceitar dinheiro vindo de outros Estados e tributá-lo a taxas mais baixas? Além das taxas de juro serem muito baixas, depois esses Governos ainda fazem acordos bilaterais com empresas que consideram interessantes que estejam lá sediadas ou que vão lá investir. Não quero ser extremamente pessimista, já que tem havido algum esforço da União Europeia para ir combatendo a fraude e a evasão fiscal, mas é um esforço muito lento e tem a particularidade de todas as decisões que sejam tomadas sobre matéria fiscal serem tomadas por unanimidade e ninguém convencerá esses países que beneficiam destes sistemas a votar nesse sentido.

Portugal não fica alheio a estes problemas de evasão fiscal…

Nenhum país fica alheio, infelizmente. Obviamente, é imoral que quem tem muito dinheiro não pague. Mas, se isto é inequivocamente verdade, a questão que se coloca é  o que se pode realmente fazer para acabar com isto e que vantagens resultariam para a população? Ouço sistematicamente os empresários, os presidentes das associações empresariais a dizerem que os impostos são um grande travão ao desenvolvimento da economia portuguesa. Mas interrogo-me se esse dinheiro que está colocado nas offshores e que representa, segundo algumas estimativas mais moderadas, 12% do PIB mundial, se fosse reintegrado na economia normal, permitiria descer os impostos, e os empresários pagariam menos impostos e o Estado teria mais dinheiro.

 

E aí a guerra  para reduzir o IRC deixaria de fazer tanto sentido?

A guerra para a redução do IRC, sobretudo nos EUA e com Donald Trump, atingiu valores totalmente irrazoáveis. Pessoas muito ricas na América, como Warren Buffet e vários outros grandes empresários, dizem que querem pagar mais impostos. É imoral que proporcionalmente paguem menos impostos do que as suas secretárias. Mas o Presidente Trump e a opinião republicana estão completamente alheios a isto. Para mim, o problema da reforma do IRC é quando se diz que se descermos este imposto vai haver mais investimento nas empresas – não sei se vai haver ou não. A única coisa que sei é que as pessoas que pagam vão reter mais dinheiro, agora que destino é que lhe vão dar não sei. 

Diz no seu livro que as finanças públicas são o resultado da realização de despesas e da obtenção de receitas. De acordo com os últimos dados da DGO, esse equiibirio não está fácil, principalmente e tendo em conta esta fase de pandemia…

O que impressiona muito é que em  Portugal não se esteja a debater esta questão. Em muitos países, há uma grande discussão e há a ideia de que as crises são momentos que servem para alterar aquilo que está mal e para lançar soluções mais favoráveis. Há quem diga que foi uma pena quando, há 12 anos, na crise de 2008, não se resolveram as coisas mais a fundo, porque assim que as coisas melhoraram parou-se. Há a ideia muito generalizada que se não se fizerem agora grandes transformações isto vai ser muito mau. Curiosamente, em Portugal não há debate praticamente sobre isto, mas, se olhar para a imprensa internacional, todos dizem que ‘isto tem de ser alterado’, ‘tem de passar a existir impostos sobre as fortunas’, ‘tem de ser encarado o problema da redistribuição com outros termos’. Em Portugal, dizer isto é a heresia total. É ser condenado ao inferno.

Mas com a pandemia é natural que a despesa tenha disparado…

É normalíssimo e temos um drama que é este: não sabemos o que se vai passar. A pandemia vai ficar ou não? As vacinas vão ser eficazes ou não? Há uma série de dúvidas e,  se a pandemia se prolongar, e isso é uma hipótese que não se pode excluir, e se vier para ficar durante anos, esta situação vai-se  repetir: a atividade económica reduz-se e há uma necessidade de apoios sociais e com isso aumenta a despesa. Isto é mau. O lado positivo foi a posição da União Europeia, ao avançar com um pacote de resiliência e recuperação financeira. Mas estas coisas na União Europeia demoram muito tempo. Isso foi decidido em julho, ainda não há nenhum resultado prático e não haverá provavelmente até ao fim do ano e há países em que começa a ser fundamental esse apoio financeiro.

É o caso de Portugal?

É o nosso caso.  

Mas para essa verba vir para Portugal temos de entregar um programa….

Já era assim. A partir do momento da criação da União Económica e Monetária estabeleceram-se uma série de regras que diminuíram extremamente a liberdade de decisão dos Estados e dos orçamentos nacionais. Tudo tem de passar por Bruxelas, tudo tem de ser aprovado pela Comissão antes de ser aprovado pelos representantes dos contribuintes. 

O que acha das linhas gerais do programa de Costa Silva?

Acho extraordinário. Foi uma surpresa total. Não o conhecia e fiquei completamente fascinado pelo programa, acho que revela um conhecimento do país e das nossas potencialidades total. Notei que houve muita gente, claramente por inveja, que se atirou: ‘Imaginem um engenheiro a fazer programas, ainda por cima pro bono e tal’. Devo dizer que foi uma espécie de estrela que caiu do céu. 

O programa é criticado por ser demasiado diversificado e não ter apostas concretas …

Acho que é uma vantagem. O programa é um enquadramento geral que depois terá de ser desenvolvido. Fiquei surpreendido por perceber que continua a trabalhar sozinho naquilo. Para mim, é estranho que não tenham feito uma equipa para, justamente, aprofundar, quantificar, mas hão de fazer.

Estava à espera desta polémica em torno dos fundos europeus?

Confesso que me surpreendeu totalmente. Em vez de as pessoas estarem alegres porque há uma hipótese de receber essa verba, estão a gritar que ‘todos querem roubar’. Por Amor de Deus, tenhamos juízo por uma vez e juntemo-nos para aproveitar uma ocasião que pode ser única. Se partimos para isto já neste espírito de tudo está a ser feito para organizar um assalto aos fundos, não vai funcionar e não está a ser feito um assalto aos fundos. Tudo está a ser feito para que haja uma boa utilização dos fundos, espero. Mas também não sou ingénuo. É evidente que vai haver muitos problemas e para esses a máquina judiciária tem de ser implacável. Não é legítimo utilizar fundos que vieram para fins tão racionais e tão positivos para riqueza própria.

Mas, tendo em conta passados recentes, há sempre esse risco…

Sim, mas não é só um fenómeno português. No país em que isso foi mais escandaloso foi na Itália, em que todos os fundos que iam para o desenvolvimento de Itália – que é uma zona de rendimento muito baixo e de grandes dificuldades – foram todos desviados para o norte e não foram propriamente para o setor público. E há verdadeiros especialistas em buscar dinheiro aos fundos. Por isso é que digo que tem de haver instituições sérias e determinadas para combater isto. A magistratura, o Tribunal de Contas, tem de haver um grande cuidado.

O Tribunal de Contas tem estado envolvido em grande polémica…

Tenho uma grande estima pelo Tribunal de Contas. Tenho colaborado com ele há décadas, tenho feito parte de júris de recrutamento de juízes para o Tribunal de Contas e, num certo sentido, sou tentado a dizer que, se o que eles fizerem não está certo, então tenho uma certa quota de culpa, na medida em que ajudei à escolha deles. O que me parece muito estranho é que um tribunal, mesmo que seja o de Contas, dê um parecer sobre uma proposta que o Governo vai apresentar na Assembleia. Não é essa a função do Tribunal de Contas. O Tribunal de Contas, posteriormente, quando chegarem lá casos que justifiquem dúvidas, deve atuar, deve apurar a responsabilidade financeira e, se for preciso, deve levantar a constitucionalidade das decisões que forem tomadas. Agora, previamente, e num momento em que os deputados ainda vão discutir a tal nova legislação e nem sequer se sabe se vai passar, o Tribunal de Contas sair à praça pública a dizer isto surpreendeu-me muito. 

E foi isso que levou à não recondução do seu presidente?

Não penso que seja por isso. Tenho uma enorme estima por Vítor Caldeira, acho que foi um bom presidente. Vinha como presidente do Tribunal Europeu de Contas que era um modelo muito diferente, portanto teve alguma dificuldade em adaptar-se a este modelo português, em que diria que os magistrados são muito mais agressivos em relação aqueles que ele estava habituado a trabalhar. Por outro lado, o Tribunal de Contas Europeu não faz julgamentos, não tem uma jurisdição, o que faz é uma apreciação das contas, se estão corretas ou não. Mas cumpriu o seu mandato e para mim seria aceitável que fosse reconduzido, mas também posso compreender que não seja. Resta esperar que venha alguém melhor.     

A justificação para a sua não recondução foi razoável?

A justificação que todos os mandatos não devem ser renováveis? É um princípio, não sei se seria preciso ser a Constituição a fixar que os mandatos são únicos. No caso do Tribunal de Contas, talvez o mandato é um pouco pequeno, porque são quatro anos; no caso da procuradora-geral da República se não me engano são seis anos. Já é um período mais alargado. Os quatro anos são relativamente pequenos.

Essa regra deveria ser aplicada no caso dos reguladores?

São entidades diferentes, porque aquelas de que estamos a falar são entidades com uma carga política institucional totalmente diferente. As entidades reguladoras estão muito mais perto do funcionamento da administração pública. O presidente de uma entidade reguladora é muito mais um diretor geral do que um procurador da República. O problema não se põe com a mesma intensidade. Mas estou totalmente de acordo, porque as entidades reguladoras são uma figura extremamente perigosa em que a compra dos reguladores é muito fácil. Quando o Governo escolhe um presidente tem de ser alguém do meio, porque caso contrário não sabe muito bem o que vai lá fazer, mas esse alguém do meio normalmente tem muitas relações e muita vida profissional pela frente. A ideia é que são criados para serem totalmente imparciais, mas tenho muitas dúvidas e poucas certezas. 

Como vê a escolha do novo presidente do Tribunal de Contas?

O conselheiro José Tavares, de quem sou amigo há muitos anos, está lá há décadas. Já fazia quase parte do mobiliário, fez uma carreira interna. Começou por ser funcionário, depois entrou para magistrado, mais tarde foi diretor-geral do Tribunal. Quando passou para magistrado continuou a acumular com diretor-geral até há uns meses. É uma pessoa que sabe muito de finanças públicas, tem muitas coisas publicadas, penso que é um homem competente e com boas características para o lugar. Acredito que a escolha seja difícil. Seguramente foi mais fácil tirar do que pôr um novo presidente. 

Todas essas decisões foram feitas num período muito curto de tempo…

Tinha de ser, do ponto de vista do Governo, para evitar que esse folhetim fosse crescendo. 

Houve algumas auditorias que foram pouco confortáveis para o Governo. É o caso da venda de imóveis…

Posso parecer suspeito quando assumo as dores do Governo, mas algumas dessas auditorias são escandalosamente más. Não têm qualquer justificação razoável, foram feitas com uma grande determinação política e com uma grande determinação de criar problemas. Depois, também houve uma reação muito excessiva do Governo e do presidente da Câmara de Lisboa, que contestaram, foi tudo muito tempestivo. Mas esse caso da habitação entre a Câmara de Lisboa e a Santa Casa da Misericórdia é um caso de insensibilidade social total do Tribunal de Contas, porque é evidente que a Câmara de Lisboa tinha feito muito bem em comprar as casas à Santa Casa da Misericórdia para aumentar  a oferta de habitação a preços acessíveis e o Tribunal de Contas aparece a dizer que não é função da Santa Casa vender casas ao Governo. É o formalismo extremo e o desinteresse total pelos problemas. O Tribunal de Contas tem de ter outro fôlego e outra capacidade de entender as coisas.    

Voltando ao seu livro, diz que as finanças públicas espelham o que é uma nação, as suas prioridades e os seus desafios. É assim tão simples?

Diria que sobretudo a partir da União Económica Monetária e do Tratado Orçamental e dos limites às possibilidades de endividamento e toda uma outra série de fatores, isto tornou-se menos verdade do que era antes. 

Também diz que as finanças públicas são muitas vezes olhadas com desconfiança. É por causa dos tais desequilíbrios que vão sendo divulgados?

Não é um fenómeno só português. As finanças públicas, em todo o lado, são encaradas com alguma desconfiança, com algum mal-estar. E porquê? Tenho uma opinião pessoal muito forte, que é esta: o poder político já não manda nada, quem manda é o poder económico. Basta olhar, por exemplo, para aquele faustoso cerimonial que há todos os anos em Davos, do Fórum Mundial, onde vão todas as grandes fortunas, e vão depois muitos Presidentes da República, primeiro-ministros, banqueiros centrais, para prestar contas do que andam a fazer. E aquilo é uma boa forma de ver a vassalagem do poder político em relação ao poder económico. Com as finanças é um pouco a mesma coisa. Se não houvesse tantas finanças públicas, vivíamos melhor, havia melhores salários, não se tinha de pagar àqueles parasitas dos funcionários públicos –uma grande parte do discurso é a desvalorização selvática da Função Pública – discursos que me causam o maior desgosto.

E isso também cria as tais ondas de populismo que se vê agora? De acharem que a administração pública absorve muitas verbas? 

Precisamente. Mas é impressionante, os funcionários públicos ganham hoje o mesmo que ganhavam em 2000. Ou seja, vinte anos depois, têm o mesmo ordenado. E durante esse período saíram da Função Pública 45 mil funcionários e só entraram, salvo erro, 10  ou 15 mil. Houve uma enorme redução da Função Pública e, sobretudo, essa redução que, normalmente, era feita pela passagem à reforma deixou de o ser. A maior parte dessas pessoas vão para o setor privado, que se tornou muito mais atrativo, paga melhor e é mais interessante. E este é um dos grandes riscos da administração pública: que se torne um resíduo para aqueles que não têm mais nada que fazer. E isso é péssimo, porque não nos assegura uma Função Pública de qualidade, nem motivada.

E depois dizemos que a máquina está pesada, porque não há aquela agilidade…

Exato. Portanto, vai ser preciso fazer a relação com o plano financeiro e vai ser preciso ter uma atuação muito decidida na Função Pública para mudar o estilo, para acabar com aquela burocracia infernal… Algumas vezes estive metido em projetos em que era preciso obter tantos pareceres, de tantas direções gerais, que era uma coisa louca… e arrastava-se, arrastava-se até as pessoas perderem o interesse e dizerem ‘não tenho mais paciência para isto’…

Eram vencidas pelo cansaço, nesses casos…

Exatamente.

Também tem um capítulo sobre os impostos. Em que diz que há muitos cidadãos que vêm isso como uma ameaça e falam mal dos impostos. No entanto, é inevitável existirem impostos. Acha que poderia haver outra distribuição da carga fiscal?

Os impostos foram sempre um tema controverso ao longo da história. A instituição ‘imposto’, tal como o conhecemos, resulta das revoluções liberais do século XIX, designadamente a necessidade da autorização do Parlamento. Podemos dizer que os impostos são um instrumento de democracia e são um fator extremamente positivo. Mas muita gente pensa exatamente o contrário. Há uma história que conto no livro, que é a história de um juiz norte-americano que a certa altura disse: ‘Gosto de pagar impostos, com eles compro civilização’. E isso causou um escândalo. Hoje em dia, essa frase está inscrita na agência de cobrança de impostos nos Estados Unidos, mas o que diz tem toda a razão de ser. Pago impostos, mas em troca tenho escolas, hospitais. Se não houver impostos, vivemos do quê? 

Mas as taxas acabam por ser uma forma indireta de impostos…

São extremamente próximas, mas, mais uma vez, vão favorecer determinadas classes, que não precisam de ter de pagar taxas e taxinhas, enquanto outras vão e, por isso, seria um sistema extremamente injusto. Com os impostos vivo melhor, mas precisam de ser justos. E aí entramos numa discussão infernal: o que é um imposto justo? Para mim, é um imposto aprovado nos termos da Constituição e que trate todos por igual. 

Tendo em conta os últimos Orçamentos, há sempre a tentação de aumentar os impostos indiretos, o que é mais injusto…

Isso é verdade. Mas os impostos indiretos são de mais fácil cobrança, de mais fácil cálculo do que vai ser recebido. Agora, um sistema em que predominam os impostos indiretos é sempre um sistema injusto, isso não tenho qualquer dúvida. Se juntarmos um sistema desses, com os impostos sobre o trabalho, então temos um sistema muito mau. Sobre a injustiça do sistema fiscal, uma vez, numa conferência, ouvi um colega meu por quem tenho grande admiração, José Xavier de Basto, dizer uma coisa engraçada: o engenheiro Belmiro de Azevedo estava vivo e para exemplificar que os impostos indiretos não eram totalmente injustos fazia questão de explicar como era o dia dele: saía, ia ao ginásio, tomava café e em todos os casos pagava IVA. José Xavier de Basto respondeu: ‘Pelo menos esses impostos tenho a certeza que paga, agora os outros…? Não o quero incriminar, mas  sobre os outros não disse nada.

No caso de um orçamento, é sempre difícil esta ginástica financeira…

Houve uma grande alteração na administração fiscal portuguesa que foi a passagem de Paulo Macedo como diretor geral dos impostos. Essa passagem deu uma grande discussão porque vinha do setor privado, do setor bancário, e colocou como condição manter o salário que tinha no setor privado – que era uma situação que não existia no setor público. Mas abriram uma exceção para ir para os impostos. E realmente foi um diretor geral extraordinário, que deu um enorme avanço na informatização, na tecnologia, no relacionamento entre os funcionários e os contribuintes. Diria que o que o Estado lhe pagou foi pouquíssimo para aquilo que trouxe. Tenho uma relação de amizade com ele, o que me torna suspeito, mas quando chegamos a uma certa idade somos amigos de toda a gente… ou inimigos (risos).

Tem um capitulo sobre a dívida pública. Os dados não têm sido nada animadores…

A dívida subiu para valores brutais depois da crise de 2008 e, sobretudo, depois da crise das dívidas soberanas quando os Estados meteram imenso dinheiro nos bancos. Portugal fê-lo no BPN, Banif e BES, ou seja, os contribuintes financiaram todos esses bancos. 

E depois temos previsões como, por exemplo, do Banco de Portugal que diz que a economia deverá cair 8,1% este ano… 

A situação agora é absolutamente anormal, mas mesmo em condições normais os economistas fazem previsões e é muito raro essas previsões darem certo. Aliás, se observar as revisões que, ao longo do ano, vão sendo feitas (pelo Banco de Portugal, pelo INE, pela União Europeia) depois não batem certo. Isso lembra-me  Paul Samuelson, grande economista, que uma vez disse aos economistas para não fazerem previsões, ou então se fizessem que fizessem muitas, porque, se fizerem tantas, já ninguém poderá dizer que eles se enganaram…

Mas neste contexto é mas difícil…

Suponha que, de repente, e Deus nos livre disto, mas suponha que a situação do coronavírus se agrava extremamente e é preciso medidas, os 8,1% do Banco de Portugal podem ir aos 10%.

Outro capítulo fala da Segurança Social a dizer que é um pilar base, assim como o Serviço Nacional de Saúde. Neste contexto, ganha ainda mais importância?

Acho que sim. Nunca tinha ouvido tantas adorações ao SNS como ouvi nos últimos meses. E, de facto, o SNS, que estava muito desfalcado, que tinha perdido muito da sua qualidade, conseguiu um trabalho extraordinário em matéria de combate à covid-19. Assim como outros funcionários públicos, bombeiros, transportadores, enfim, houve um grande esforço. Terá havido uns erros pelo meio, às vezes percebe-se umas coisas esquisitas, de lares que não deviam existir, que são clandestinos, agora nada disto é culpa do SNS e acho que fizeram um excelente trabalho e justificaram por que se deve pagar impostos.

No caso da Segurança Social há uma certa responsabilidade sobre os lares ilegais…

É evidente que isso mostra que a fiscalização não era exemplar. Já são muitos casos. 

Também fala da pobreza e de desigualdade. Com esta pandemia vamos assistir ainda a maior agravamento desta situação?

Vamos. Os transportes públicos, por exemplo, são um perigo. Quando houve a mudança da liderança da pandemia, do norte para Lisboa, isso foi muito claro: a utilização dos transportes públicos e os contactos que as pessoas têm piorou muito. Eu tenho um carro, pego na minha máscara e estou mais seguro. Pode acontecer, mas estou mais protegido, o nível de exposição é diferente.

Fala-se muito que é este segmento que está a ser o mais afetado…

É, sem dúvida que é, porque as coisas são assim. 

Não é assustadora a imagem de pessoas que trabalham e mesmo assim estarem no limiar de risco de pobreza?

A questão já vinha de trás. Isso é muito bem observado. Não se pode agora dizer que a culpa é da pandemia. A covid-19 tem as costas largas mas não tanto. 

Falando em pobreza, nasceu nos Açores, onde ainda há zonas com muita pobreza. Como vê isso?

Os Açores eram uma região – antes do 25 de Abril, se quiser – extremamente pobre e que, em grande medida, sobreviveu por causa da emigração basicamente para os Estados Unidos e para o Canadá. Os açorianos, tipicamente, não vinham nem para o continente português nem para países europeus. Há coisas muito interessantes: há muitas palavras que foram importadas dos Estados Unidos. Uma chiclete diz-se uma ‘guma’, que é o chewing gum. O frigorífico diz-se frigideira porque era o fridge. Há muitas coisas dessas. Há uma tradição muito engraçada que é quando os emigrantes chegam, para passar férias, normalmente, vão às festas de Santo Cristo, uma grande realização católica, e a primeira coisa que fazem, na casa deles ou onde estiverem, é porem a bandeira do país onde estão: Canadá, Estados Unidos, para as pessoas saberem que estão lá e os irem visitar.  Essa emigração, de alguma forma, permitiu salvar os Açores de uma miséria muito pior. Havia uma distribuição de riqueza muito perversa, sobretudo em São Miguel, nas outras ilhas era mais atenuada. Em São Miguel havia os donos da terra e os outros. As pessoas, em geral, andavam descalças. O leite era vendido nuns vasos de porta em porta, o peixe também. A seguir ao 25 de abril houve uma enorme revolução política nos Açores. Começou o Movimento separatista, a FLA, que atingiu formas violentíssimas de contestação e defesa da independência dos Açores com vista a juntarem-se aos Estados Unidos. Houve uma luta política muito violenta, as pessoas de esquerda praticamente foram expulsas das ilhas, coisas muito dramáticas. Hoje em dia dão-se bem uns com os outros. Até já estive numa mesa com dois. Um que era da FLA e outro que era do PS e começaram a contar histórias. A Constituição veio criar as regiões autónomas e veio dotá-las de mais meios financeiros que depois seriam aumentados com a lei de finanças das regiões autónomas. Mota Amaral, que foi o primeiro presidente do Governo Regional dos Açores, teve um trabalho notável de recuperação, embora  fosse um muito estimável conservador. Era alguém que amava profundamente a terra, mas ama a terra que conheceu. Só mais tarde, quando o PS ganha as eleições, é que vende, com uma certa ironia, a imagem do Alberto João Jardim e da Madeira. E têm tido bastante sucesso nisso. As coisas melhoraram muito, mas há alguns pontos que continuam a ser muito difíceis. Rabo de Peixe é um ponto célebre mas, mesmo aí, nos últimos anos, tem havido coisas muito positivas.

Foi, por vezes, alvo de críticas por não ter abdicado de trabalhar para o Governo estando casado com a ministra da Justiça. Como vê estas acusações?

Foi uma campanha absolutamente miserável. A legislação da altura não me impedia – é óbvio que me impedia de trabalhar para o Ministério da minha mulher –, mas nunca me passaria pela cabeça trabalhar para esse Ministério. Trabalhei muito esporadicamente para um ou outro Ministério. 

Foi o caso do Ministério do Mar, por causa da concessão do terminal de Sines?

Isso não foi trabalhar para nenhum Ministério. Mal comparado, foi para fazer de uma espécie de António Costa Silva, ou seja, seguir uma negociação entre duas partes para ver se as coisas estavam a correr bem ou mal. Tudo isto pro bono, sem receber um tostão. Mas também isso foi visto como um compadrio. Tratou-se de uma campanha de destruição das pessoas. Tenho 40 e muitos anos de advocacia e a minha especialidade são as finanças públicas, os contratos públicos. Os meus clientes sempre foram da administração pública. A partir dessa campanha, toda a gente começou a ter medo de me procurar e achavam que isso trazia riscos. 

Não o magoa?

Claro que magoa e o objetivo dessas pessoas é magoar. Magoar-me a mim e, obviamente, magoar a minha mulher. E descredibilizar. Mas há uma coisa que lhe digo: comigo não dá. Se não tivesse a consciência tranquila, dizia ‘que maçada, para que é que fui fazer esta aldrabice’. Não fiz absolutamente nada ilegal. Mas sabe melhor que eu que lançar coisas falsas para as redes sociais é o pão nosso de cada dia, mas é grave.

Foi ex-jornalista do República. E foi convidado para diretor de informação da RTP mas não aceitou, em favor da carreira académica. Que memórias guarda dessa época?

De um jornalismo fantástico. Das coisas que mais gostei de fazer na vida foi jornalismo. Suspeito que hoje talvez não gostasse tanto como nessa altura. Essa altura era de grande luta. O República foi um exemplo muito complicado, estive naquele episódio do sequestro do editor e dos jornalistas. Ficámos lá uma noite fechados com os tipógrafos, foi muito emocional, mas muito duro. Mas foi um período do qual, apesar de tudo, guardo as melhores recordações. Não fui para a RTP porque queria fazer  carreira a académica e, por outro lado, tinha a perceção de que ser diretor da RTP era qualquer coisa que podia durar uma semana, uns meses. Uma das pessoas que tinha estado indiretamente por trás deste convite era o general Eanes, que tinha sido presidente da televisão e ainda tinha lá muita força e creio que foi ele que sugeriu essa ideia. Todas as pessoas a quem dizia que tinha optado pela carreira académica diziam que tinha feito muito bem, que ia estragar a minha vida na RTP. Um dia estava a jantar com o general Eanes e com a mulher e estava à espera que  também dissessem ‘muito bem’ e o general Eanes prega-me uma descompostura a dizer que advogados era o que mais havia na cidade e que não sabia como é eu que tinha feito uma coisa daquelas. 

Quantos anos foi jornalista?

Entre três a quatro anos. Também passei pela rádio. A rádio, aliás, foi uma experiência extraordinária. O ambiente geral era ótimo, jogava-se futebol, eram tempos de grande felicidade.

Não se arrepende dessa decisão?

É um tema que me seduz totalmente. ‘E se eu tivesse feito?’, ‘E se… e se… e se…’. É o exercício mais inútil, porque já não há hipótese de voltar atrás, não vale a pena pensar. E se eu tivesse namorado não sei quem? E se eu tivesse ido para engenheiro do Técnico? Se eu tivesse ido para o estrangeiro? Acabou, não adianta. Na altura, foi para o que me deu.