René Lacoste e Fred Perry. Entre o court e a camisa

Muita gente se passeia por aí com o crocodilo ou a coroazinha de louros no peito da camisola e não faz ideia de onde surgiram as duas maiores marcas de pólos desportivos. E que os seus criadores ficaram para a história não apenas por um pedaço de tecido, mas sim por terem sido dois dos maiores…

Uma questão de preferência? De estilo? Usar um pólo ou uma camisa Lacoste ou Fred Perry, quero dizer. Serão assim tantas as diferenças? Inevitavelmente marcam uma certa classe. Nem que seja por serem brinquedos caros. Na minha adolescência eram praticamente inacessíveis. De vez em quando, havia um sortudo que se apresentava ora com o crocodilo ora com a coroa de louros ao peito e fazia inveja aos demais que se iam contentando com um produto mais em conta da Mike Davis. Havia até adeptos: uns a favor da Lacoste; outros clubisticamente Fred Perry.

É provável que nem Jean René Lacoste nem Frederick John Perry alguma vez imaginassem que ficariam para a história mais por via da roupa do que por causa das suas façanhas no ténis.

O primeiro nasceu em Paris, no dia 2 de julho de 1904, o segundo veio ao mundo a 18 maio de 1909, em Portwood, Stockport, Inglaterra, e ambos foram campeões do quilé, como diria o grande Assis Pacheco. Samuel, o pai de Fred, era negociante de algodão, o que poderia fazer soar algumas campainhas quanto ao futuro do rapaz no mundo dos tecidos. Bem perto da casa da família Perry havia um campo de ténis onde a miudagem do bairro se juntava para umas partidas atrapalhadas. Desde cedo que_Fred apanhou o jeito de segurar e fazer vibrar a raquete. Enquanto progredia nos estudos na Ealing Grammar School for Boys, aprimorava as pancadas secas e certeiras que seriam a sua imagem de marca se essa imagem não viesse a ser a das tais folhinhas de louro. Por essa altura, René Lacoste chegava a Inglaterra acompanhado pelo seu pai, Jean-Jules Lacoste, para participar numa série de torneios internacionais. Tinha 15 anos e muitos consideravam-no um prodígio. Cinco anos mais tarde, estava em Wimbledon carregado de expectativas, mas viria a ser afastado logo na primeira ronda pelo australiano Pat O’Hara Wood, 11 anos mais velho do que ele. Se julgam que Lacoste meteu a raquete no saco e foi à procura de uma vida que lhe desse menos chatices, estão bem enganados. No ano seguinte, voltou a apresentar-se no Open de Inglaterra e aguentou-se até à quarta eliminatória, batido então pelo vaidoso tenente-coronel Cecil James Frederick Campbell, um irlandês absolutamente amador mas que levava o ténis muito em conta e gostava que sublinhassem o seu nome com um «honorável» sempre que era grafado nalguma notícia a seu respeito e que nunca iam invariavelmente para além dos rodapés dos periódicos de província.

No entretanto, Fred Perry ganhava pontos graças a um estilo que tinha o apodo de shakehand grip e que consistia, basicamente, no ataque à bola na fase descendente e que devia o nome à forma como agarrava na raquete. Era um tipo destinado a que a fortuna o acompanhasse. A sua figura longilínea era de sobremaneira apreciada pelo sexo feminino e Fred fazia questão de se apresentar sempre impecavelmente vestido, tanto fora como dentro dos courts. Nos anos de 1933 e 1934 reforçou o seu prestígio como jogador vencendo dois Opens dos Estados Unidos, o Open da Austrália e o Torneio de Wimbledon, em cuja final derrotou o australiano Jack Crawford por uns conclusivos 6-3, 6-0 e 7-5. Wimbledon tornou-se um dos seus locais mágicos e venceu a prova nos dois anos que se seguiram, ambas as finais contra o alemão Gottfried von Cramm, um dos meninos bonitos da propaganda nazi, as duas vezes por indiscutíveis 3-0 (6-2, 6-4 e 6-4; 6-1, 6-1 e 6-0).

Sucesso!!!

Fred Perry caiu no goto dos ingleses apaixonados por ténis e passou a ser um daqueles casos de sucesso que provoca transtornos na rua à sua passagem a despeito da tradicional fleuma britânica. René Lacoste conquistara o título em Wimbledon em 1925 e 1928 e convém lembrar que Wimbledon representava, à época, uma espécie de aferição da qualidade superlativa de todo o tenista que se prezasse, quase à moda de um campeonato do mundo, se quiserem. Apesar de tudo, o êxito mais retumbante de René fora a conquista da Taça Davis, fazendo parte de uma famosa equipa francesa que bateu os Estados Unidos na final, formada por ele, por Jean Borotra, Jacques Brugnon e Henri Cochet. O grupo ficou para a eternidade como Os Quatro Mosqueteiros. Lacoste, que fora em tempos La Machine du Tennis, transformara-se no Crocodilo. Há várias versões sobre a maneira como ganhou uma alcunha que hoje em dia se passeia coloridamente pelo guarda-roupa de veraneantes que, provavelmente, nem sabem ao certo quem foi Lacoste. René foi um cientista do ténis: tomava notas de todas as características dos seus possíveis opositores, investigava as suas virtudes e os seus defeitos, chegava ao ponto de se inteirar sobre os problemas pessoais ou psicológicos que pudessem interferir com as suas atuações. Escreveu cadernos e cadernos sobre eles e a sua neta, Beryl Lacoste Hamilton, que vive hoje em dia em Miami, nos Estados Unidos, viria a herdá-los: «O seu sentido analítico era impressionante. Todas as suas anotações revelam uma preocupação pelo pormenor que lhe terão valido, certamente, muitas e muitas vitória», contou ela num documentário sobre o avô realizado pela BBC.

Edward Digby Baltzell, um norte-americano natural de Filadélfia, onde nasceu em novembro de 1915, sociólogo, historiador e professor universitário, escreveu um livro chamado The Finest Year in Tennis History. O ano a que se refere no título é o de 1927. Também Baltzell mergulha na origem de OCrocodilo. E traz a superfície a embirração que René Lacoste tinha para com a farpela que os tenistas eram obrigados a usar de cada vez que entravam num court, uma camisa de manga comprida e um colete, e umas calças longas que embaraçavam os movimentos. Foi essa, na verdade, a grande revolução de Lacoste e que o atirou para o mundo da moda com mais impacto do que entrara no do ténis e fizera dele, precisamente em 1927, o número um do ranking mundial. Certo dia, num joguinho de puro divertimento, René defrontou o marquês de Cholmondeley que o surpreendeu envergando uma simples camisa de gola e sem mangas, com apenas três botões junto ao pescoço. Aquilo a que se convencionou chamar de pólo porque já era utilizada pelos praticantes desse desporto na sua versão equina. Lacoste deixou-se fascinar pela simplicidade do traje e pela liberdade que permitia à sua forma de jogar e tratou de encomendar uma série de pólos a um alfaiate amigo.

Por essa altura,René Lacoste era apelidado pela imprensa de Crocodilo. No livro de Baltzell surge a glosa de que tinham sido os jornais americanos a tratá-lo pela primeira vez dessa forma – The Aligator – por ter desembarcado em Nova Iorque, como capitão da equipa francesa que jogaria a Taça Davis, carregando duas malas de pele de crocodilo. O The New York Times surgiu, muitos anos depois, com outra história:Lacoste e o seu amigo Robert George, jogador de hóquei sobre o gelo, tinham feito uma aposta em cima de um jogo de ténis entre ambos e cujo prémio era um casaco de pele de crocodilo. Lacoste ganhou fácil, ficou com o casaco e passou até a usá-lo com frequência. Seja como for, algo é absolutamente certo: o filho de Jeanne-Marie Magdeleine Larrieu-Let e de Jean-Jules Lacoste sentiu-se bem na pele de crocodilo e não apenas na pele com que o casaco fora confecionado. O amigo Robert George tratou de lhe dar o tal toque de requinte: desenhou o bicho e aplicou o emblema aos casacos desportivos e aos pólos com que René se apresentava em prova. Um ícone acabara de ser criado.

 

Questão de estilo

Fred Perry foi um dos maiores tenistas de todos os tempos. Jack Kramer, promotor de muitas competições e que também foi, in illo tempore, um jogador de classe, escreveu a sua biografia e considerou que devemos incluí-lo entre os maiores seis jogadores de sempre. Apesar de tudo, não foi nem um homem nem um praticante consensual. Bill Tilden, um americano que atingiu o primeiro lugar do ranking mundial entre 1920 e 1925, tratou de o descrever com uma frase assassina: «The world’s worst good player». A questão não era metafísica: era de estilo. Tilden voltou à carga uns anos mais tarde: «Fred deu cabo do ténis em Inglaterra, mas nem foi verdadeiramente por culpa dele». A forma como impunha o vigor da sua potência física e conseguiu, à custa dela, vitórias em todos os torneios do Grand Slam, tornava frustrantes os ensaios técnicos dos adversários que procuravam contrariar o seu jogo. Resumindo: Perry era um bruto e jogava um ténis bruto. As nuances eram-lhe indiferentes. Limitava-se a bater a bola com tanta força que ganhava jogos a fio à conta de ases incontroláveis. Se, antes dele, René Lacoste encantara os espectadores com a precisão extraordinária com que concluía os seus passing-shots e com a certeza fina dos seus movimentos elegantes, Fred usava e abusava da musculatura que desenvolvia à custa de permanente exercício físico. Agora, visto à distância, resta comparar os resultados de um e de outro, que não diferem por aí além. Quanto às característas das marcas que impuseram no mercado, talvez as diferenças sejam mais notórias. 

 

Negócios

Em 1933, em Troyes, René Lacoste e o seu sócio André Gillier fundaram a empresa La Chemise Lacoste. Gillier não era um fulano qualquer: era o dono e presidente da maior companhia francesa de lanifícios. O aparecimento dos pólos Lacoste no marcado foram não apenas algo de revolucionário – André afirmava que a ideia de associar uma marca distintiva e bem visível a uma peça de roupa era absolutamente inédito – como cativou de imediato os clientes. Usar uma camisa Lacoste tornou-se símbolo de uma certa forma desportiva de estar na vida. E os que queriam adotar esse toque de charme trataram de comprar Lacostes como se fossem pãezinhos quentes.

No final do ano de 1940, Fred Perry tornou-se amigo próximo de um tipo chamado Tibby Wegner, um jogador de futebol austríaco que tivera a magnífica ideia de comercializar aqueles punhos de pano que se utilizam para afastar as gotas de suor que caem da testa dos jogadores para os olhos durante as partidas. A cabeça de um e de outro fervilhavam de projectos e a vontade de se lançarem em força no mercado era insopitável, tal e qual como as raquetadas fulminantes de Perry.

Fred mostrou-se feliz por dar o seu nome aos tais punhos inventados por Wegner mas, vendo bem, também era algo de insignificante perante o apelido que espalhara pelo universo do ténis e do desporto em geral. Havia que ambicionar qualquer coisa de mais impactante, que diacho! Tiveram a humildade suficiente para perceberem que os pólos de René Lacoste eram uma fonte de negócio que valia a pena explorar. E, assim sendo, avançaram. Em Wimbledon, no torneio de 1952, os pólos Fred Perry entraram a matar. E agradaram a toda a gente. Tinham chegado para ficar!

Fred Perry teve outra ideia que pegou de estaca: terminar com aquela monotonia enjoativa do branco que era uma espécie de ditadura do ténis. Por isso, ainda antes de René Lacoste, o pioneiro da moda, avançou para pólos de cores, inicialmente claras e discretas para não assustar demasiado os tão conservadores adeptos de um jogo que se queria manter dentro de um determinado espírito de fidalguia, com Wimbledon a ser o exemplo mais significativo daquilo aqui deixo escrito, ainda hoje requintado pelo pormenor dos morangos com chantilly capazes de fazerem esquecer os abusos de gestos e de linguagem de incorrigíveis mamíferos como John McEnroe ou Ilie Nastase. Ah! Um pequeno pormenor no meio de todos estes arrebiques das classes altas britânicas: os pólos coloridos começaram a ser utilizados primeiro em torneios de ping-pong até que o ténis que não de mesa viesse a absorver a moda.

Se o crocodilo de René Lacoste é um emblema absolutamente pessoal, nascido da alcunha que o seu criador carregava sobre os ombros, a coroa de louros de Fred Perry é, mutatis mutandis, o emblema de Wimbledon. Frederick John Perry morreu na Austrália, em Melbourne, no dia 2 de Fevereiro de 1995. Para o fantástico atleta que tinha sido, o motivo da sua partida para essa planície que evoca a eterna saudade foi um bocado estúpido, para não dizer grotesco: escorregou no chão húmido do quarto de banho do hotel onde estava instalado e partiu duas costelas. Uma rasgou-lhe a pleura e acarretou uma série de complicações respiratórias que os cirurgiões do hospital de Epworth não foram capazes de resolver. Felizmente para Fred, não assistiu ao macabro aproveitamento que um grupelho ascoroso de neonazis auto apelidado de Proud Boys e comandado por uma besta canadiana de trinta e seis patas chamado Gavin McInnes fez do seu emblema, usando-o em pólos verdes e amarelos e erguendo-o como um facho pela defesa de uma superioridade racial, pretendendo exibir dessa forma um ideal de classe apostado na exclusão social de emigrantes, sobretudo vindos da Índia, do Paquistão ou do Bangladesh.

René Lacoste tinha mais nove anos do que Fred Perry mas sobreviveu-lhe ainda um ano, entrando na estatística dos óbitos no dia 12 de outubro de 1996, em Saint-Jean-de-Luz, uma agradabilíssima cidadezinha da comunidade dos Pirenéus-Atlânticos onde decidiu viver o que lhe restava de energias lado a lado com uma senhora chamada Simone Thion de la Chaume, pioneira do golfe feminino, vencedora de um enorme número de torneios internacionais e que se apaixonara por ele durante o Torneio de Wimbledon de 1928. A filha de ambos, Catherine, também foi uma golfista de fôlego, embora hoje em dia reformada e dedicada somente a umas tacadas prazerosas nos seus tempos livres.

René não ficou para a história do ténis simplesmente por conta das suas dez vitórias em torneios do Grand Slam ou devido aos crocodilos que se espalharam por todo o planeta, na sua grande maioria vítimas de contrafação. Foi ele que idealizou as raquetes de aço e aquela maquineta que lança bolas de forma frenética para auxiliar o treino dos profissionais. «Quando me perguntam qual a minha profissão, fico com vontade de dizer que sou inventor», confessou Lacoste numa entrevista. «Na verdade passo os meus dias a tentar ter ideias para coisas novas e que possam ser úteis para as pessoas. O facto de ter começado a ser conhecido por OCrocodilo foi uma bênção. Serviu-me para aumentar a autoestima e para me confrontar mais corajosamente com as adversidades. Tenho orgulho na minha alcunha!»

Não admira. Dificilmente se encontra por aí um ser minimamente civilizado – perante os padrões modernos do consumismo, está claro! -, que não saiba o que é uma Lacoste, e nisso René levou a palma a Fred Perry num golpe de malícia que se prende exatamente com o emblema de Perry. Como ainda se aguentam por mais um pouco os dias mornos deste Outono para já suave, calculo que muitos dos que folhearem as páginas que aqui terminam com uma Lacoste ou uma Fred Perry suficientemente frescas e confortáveis – além de elegantes – vestida a preceito. É aproveitarem-nas por inteiro: exigiram muito daqueles que lhes deram os nomes. Ambos tenistas de mão cheia e desportistas irrepreensíveis. O mundo foi deles e vai continuando a ser, mais gin tónico menos gin tónico com o horizonte à vista…