Negociações atípicas e impasse até ao fim para o OE

Bloco diz que não há avanços em áreas determinantes enquanto o PCP diz que ainda não encontrou respostas suficientes nas negociações. O PAN fala em ano mais difícil. Tudo em aberto.

Não será fácil garantir a aprovação do Orçamento do Estado para 2021, ainda que o presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, acredite que seja possível ter um documento aprovado no final de novembro. «Estou convicto de que em novembro tenhamos um Orçamento aprovado», admitiu ontem o chefe de Estado à margem de uma visita ao Hospital de Braga. E aparentemente já esteve mais preocupado. 

«Ao longo do período anterior, houve momentos em que tive preocupado ou até muito preocupado, quanto à aprovação do OE 2021. Espero que estejam reunidas condições para nas várias votações ser possível chegar àquilo que é bom para Portugal e para os portugueses, que é um Orçamento em condições de ser aplicado no início do próximo ano», adiantou Marcelo numa análise às horas decisivas que o Governo tem pela frente para convencer os parceiros da anterior legislatura. O maior problema pode estar onde há semanas se esperava que não estivesse: do lado do Bloco de Esquerda. Que deu esta semana vários sinais de insatisfação e preocupação perante as respostas do executivo à medida que as negociações iam avançando. Mais, a coordenadora do Bloco de Esquerda, Catarina Martins, deu mesmo um prazo de quatro dias na passada quarta-feira (na RTP) para que o executivo desse respostas mais claras ao seu partido, realçando a «intransigência» dos socialistas em algumas matérias. «Estamos a ter uma enorme preocupação», avisou Catarina Martins, dando pistas que o BE procurou trabalhar desde o início de julho com o Governo para uma solução que permitisse a viabilização do Orçamento: a abstenção. Porém, o discurso oficial do BE é o de que nada está garantido, Ontem mesmo Catarina Martins afirmou numa conferência de imprensa que não há avanços em «matérias determinantes», apesar do seu partido ter grande «vontade» em que haja um acordo. E pediu ao PS e ao governo para «dar passos na negociação». Dito de outra forma: o documento de trabalho que o governo enviou aos parceiros de esquerda sobre a proposta de Orçamento do Estado para 2021 é insuficiente para o BE.
E o que está em causa? O Novo Banco é um dos pontos onde se regista um impasse. O Governo assegurou que não seria alocado qualquer valor do orçamento para o Fundo de Resolução , logo para o Novo Banco, mas o BE não quer que a chamada sindicância bancária que o executivo acautelou passe pelo referido fundo de resolução (a deputada Mariana Mortágua do BE disse-o com todas as letras na semana passada em conferência de imprensa). Isto porque implicaria sempre que entrasse no perímetro orçamental, com uma garantia do Estado, logo dos contribuintes. O PS anunciou um pedido de auditoria ao Tribunal de Contas para o Novo Banco ainda na passada quinta-feira. Esta era uma das exigências do BE. Mas não deve chegar. Mais uma vez, até haver a conclusão da referida auditoria , ninguém pode garantir que não seja necessária alguma injeção financeira ao Novo Banco através do fundo de resolução, mesmo que só o sistema bancário o suporte. Ou seja, até ver, mantém-se o impasse. 

Mas há mais. No capítulo da proteção social, o novo apoio para os chamados trabalhadores informais ou precários, sem acesso a prestações sociais também não está fechado. Havia um acordo de princípio que o valor seria equivalente ao limiar da pobreza, ou seja, 502 euros. O Bloco de Esquerda bateu-se para que a regra a aplicar fosse a quebra de atividade, mas o executivo quis introduzir uma fórmula : a condição de recursos. Ora, aqui o BE pediu que na análise dessa condição de recursos se contabilizasse um valor superior na capitação de rendimentos por cada filho para permitir , por exemplo, que um agregado de seis elementos ( dois adultos e quatro crianças) não fosse penalizado nessa avaliação. Catarina Martins lembrou ontem que, nestas situações, as «crianças contam metade dos adultos» na aplicação de uma medida que vem do tempo da troika.

Neste capítulo, as divergências não se esgotam por aqui. Ao ser criado, a título permanente, o valor de 502 euros, é necessário também harmonizar o valor mínimo do subsídio de desemprego correspondente a cerca de 438, 81 euros ( correspondente a um Indexante de Apoios Sociais). E foi isso que o BE colocou em cima da mesa, mas a negociação não está fechada, de acordo com informações recolhidas pelo SOL. Também não há avanços para a garantia de que as empresas com grandes lucros, ou com apoios públicos não possam despedir. Mais, no capitulo das indemnizações por despedimento, o BE queria regressar à legislação pré-troika, em que os valores de indemnização contabilizavam-se com 30 dias por cada ano de trabalho, contra os atuais 12 dias por cada ano de trabalho, mas até agora não houve qualquer dado objetivo sobre este ponto.

Ontem, Catarina Martins criticou ainda o facto de não haver avanços para o aumento líquido de contratualizações de profissionais de saúde para o Serviço Nacional de Saúde em 2021. Na prática, o executivo anunciou reforços, em público, mas que correspondem ao já acordado e aprovado nos orçamentos de 2018, 2019 e 2020. A reforçar a ideia de impasse, o líder parlamentar do BE, Pedro Filipe Soares, descreveu ontem no Público ( num artigo de opinião) o estado de espírito do processo negocial a escassos três dias da entrega da proposta de Orçamento do Estado para 2021: « É o documento orçamental que tirará quaisquer dúvidas sobre as intenções e o alcance das propostas. Não darei grande novidade se mostrar algumas reservas sobre os resultados (até agora) apresentados em mesa negocial».
Onde parece haver algum avanço é no aumento extraordinário para as pensões mais baixas, à semelhança do que foi feito em anos anteriores. Contudo, o aumento de cerca de 10 euros só deve chegar em agosto ( avançou o Público) e os parceiros de esquerda gostariam de ver contemplados esses valores já no início do ano. 

E, se do BE houve ontem claros sinais de insatisfação transmitidos em público pela sua coordenadora, do lado do PCP, o discurso varia entre o do silêncio ou o de não abrir o jogo. Jerónimo de Sousa, o secretário-geral do PCP, disse na RTP que, do lado do governo, continua a verificar-se que há «respostas ausentes». Mas, «não há um processo fechado nessas conversas, nesse relacionamento institucional, bilateral, entre nós e o Governo». As contas fazem-se no final, após o debate na especialidade e em função do que estiver na proposta. Ou seja, os comunistas não se comprometem. Porém, no passado domingo, o comentador Marques Mendes disse na SIC que o PCP se iria abster no Orçamento. «O partido pode não o anunciar já, mas é isso que está combinado», garantiu o também antigo líder do PSD. Ora, neste quadro, mesmo que o Bloco opte pelo voto contra, se PCP, PEV e PAN se abstiverem, o orçamento poderá passar por apenas um voto de diferença (108 a favor contra 107 dos demais partidos) porque só contam os votos expressos ( a favor e contra) para aprovar ou chumbar o documento.

Contudo, o PAN reconhece que as negociações com o governo têm sido atípicas. A líder parlamentar do PAN Inês Sousa Real disse ao SOL que «neste momento ainda está tudo em aberto».Mais, a deputada assegura que « este, de facto, é um ano atípico em todas as suas dimensões», e o próprio « orçamento e as suas negociações estão a demorar mais do que aquilo que aconteceu no Orçamento de 2020 e portanto nós continuamos a trabalhar e a estar em diálogo permanente com o Governo». Para Inês Sousa Real «está a ser um ano mais difícil daquilo que é a capacidade de comprometimento [do governo], sendo que da nossa parte já enviamos as propostas», seja na área social, proteção animal, seja a nível ambiental. De realçar que também o PAN propôs uma prestação social para os trabalhadores informais, tal como o BE.

O orçamento vai a votos, na sua versão final, no próximo dia 27 de novembro. Até lá haverá muito caminho a percorrer.