‘A habilidade política não chega…’

Incumbido de apresentar o último livro de Cavaco Silva, o homem que esteve nos seus Governos do início ao fim do cavaquismo deixou largo elogio ao ex-PR e recados para a atualidade. As palavras de Luís Marques Mendes, que deu laivos de domingo à terça-feira, aparentavam um destinatário claro: o Governo. «O dinheiro ajuda mas…

O fim de tarde nos jardins do Museu Nacional de Arte Antiga, na passada terça-feira, foi de verão. A data era simbólica para o autor da obra apresentada e, coincidentemente, para alguns dos presentes.

Para Aníbal Cavaco Silva, que lançou aquele que será «provavelmente» o seu último livro, 6 de outubro será sempre o dia em que foi eleito, pela primeira vez, primeiro-ministro de Portugal. Em Uma Experiência de Social-Democracia Moderna, a que o SOL já dedicou um ensaio e sobre o qual reflete em entrevista nesta edição, o ex-Presidente da República percorre os vários feitos infraestruturais dos seus Governos e também o legado de Francisco Sá Carneiro, do seu tempo aos dias de hoje. 

A Luís Marques Mendes, que apresentou a obra, o autor e o tempo dizem também muito. Atualmente advogado e comentador político, foi com o cavaquismo que despontou para a sua vida política como executivo. Durante os dez anos de Cavaco em São Bento, Mendes esteve sempre a seu lado.

Como testemunha privilegiada, deixou aos presentes no museu de Arte Antiga uma ampla e panorâmica perspetiva dos três Governos de Aníbal Cavaco Silva, tendo integrado todos. Não fosse a natural vocação de Mendes para a tribuna, a sua intervenção quase deixaria suspeitas de teleponto. Mas não. Na semana que agora termina, o comentador de domingo à noite emprestou a sua eloquência a uma terça-feira. Eis o que disse.

Para Mendes, o novo livro de Cavaco Silva reflete a «imagem de uma personalidade que abomina a ideia de ficar parado, resignado ou imobilizado» – algo que não só os seus Governos comprovam, como a sua bibliografia já vasta demonstra.

Depois de enumerar os resultados eleitorais sem precedente ou repetição do seu antigo chefe de Governo – «a face mais visível de um inegável sucesso político e eleitoral» –, Mendes aponta um dado, a seu ver, mais curioso: a personalidade.

«Uma personalidade que foi sempre desvalorizada pela sociedade política portuguesa, que nunca caiu nas graças da intelectualidade nacional, que suscitou sempre algum preconceito social, que fez um percurso político ao arrepio dos padrões dominantes e tradicionais, que se afirmou sempre em modo de contra-corrente. Ou seja, nunca foi favorecido pela atmosfera política vigente. Pelo contrário, teve sempre que criar o seu espaço, o seu mundo, as suas condições, o seu ambiente, a envolvente mais adequada para fazer afirmar as suas ideias e o seu projecto», considerou o amigo e apoiante.

Por outro lado, Marques Mendes reflecte que a social-democracia de Cavaco instalou um quarto pilar ideológico além dos tradicionais liberdade, igualdade  e solidariedade.

«Juntou ao tripé ideológico tradicional um quarto princípio, então já radicado nos partidos verdes europeus mas muito raro e incipiente nas formações sociais-democratas: o princípio da sustentabilidade ambiental. Um Governo dito tecnocrata e de direita, a meio da década de 80, ousava colocar como preocupação do seu Governo a sustentabilidade do planeta, o combate à poluição, a defesa da qualidade de vida. Foi com Cavaco Silva que pela primeira vez em Portugal o ambiente teve a dignidade de ministério – o Ministério do Ambiente e dos Recursos Naturais», relembra.
Sobre a importância dos fundos europeus para o sucesso político de Cavaco Silva, Mendes descomplica e esclarece, com um toque à tangente na atualidade, hoje igualmente imersa nesse debate. «Talvez a explicação mais rigorosa para o sucesso seja outra: o dinheiro ajuda mas não resolve os problemas. A estabilidade favorece o desenvolvimento mas não o promove. A União Europeia incentiva a mudança mas quem a concretiza é o poder político nacional. O que faz realmente a diferença é a visão, a capacidade e a autoridade. A visão estratégica do exercício do poder e não apenas o tacticismo político; a capacidade reformista de governar porque uma coisa é exercer o poder e outra é reformar; a autoridade de agir e não apenas a capacidade de reagir, porque a primeira nos coloca no pelotão da frente da iniciativa e da ousadia, enquanto a segunda nos despromove de divisão e de estatuto», atirou para quem de direito.
«Afinal, a habilidade política não chega. Ajuda mas não faz a diferença», acrescentaria, deixando bem evidente o contraste entre as lideranças políticas de Cavaco Silva e as da contemporaneidade.

Os sempre presentes
O autor do livro tomaria a palavra, agradecendo calorosamente a Mendes, sintetizando o conteúdo da obra [aprofundada na entrevista, nesta edição] e deixando um apelo a que fossem cumpridas as regras de distanciamento da DGS devido à pandemia. Cavaco, nesse sentido, não assinaria livros na cerimónia.

Além de um cumprimento geral a todos os convidados, evocou inicialmente dois nomes de entre os presentes: o general Ramalho Eanes, ex-Presidente da República, e Pedro Passos Coelho, ex-primeiro-ministro. Ambos seus contemporâneos quando em funções, ainda que distintas, e também relacionados com o seu legado político. Eanes, cujo partido (o PRD) mandaria abaixo o Governo minoritário de Cavaco Silva, causando as eleições em que o PSD conseguiria a sua primeira maioria absoluta, em ‘87. Passos, por ter enfrentado a crise financeira e a intervenção externa como chefe de Governo no segundo mandato presidencial de Cavaco, e por ser o último líder dos sociais-democratas a vencer uma eleição nacional.

A antiga líder do CDS, Assunção Cristas, também marcou presença, naquele que foi o primeiro aniversário da sua saída da política nacional, ainda que demonstrando a habitual boa-disposição.

Dos antigos membros de executivos cavaquistas, estiveram Manuela Ferreira Leite, Isabel Mota e Alexandre Relvas.
Da sua casa civil no Palácio de Belém, estiveram Nunes Liberato, João Taborda da Gama, Gonçalo Saraiva Matias, Nuno Sampaio e Joaquim Sarmento (hoje membro da direção de Rui Rio e presidente do seu conselho estratégico).
O ex-secretário-geral do PSD de Passos Coelho, José Matos Rosa, e o vice-presidente da Câmara de Cascais, Miguel Pinto Luz, também estiveram, assim como Manuel Castro Almeida e Carlos Moedas.

Marcelo Rebelo de Sousa e Rui Rio, à semelhança do último lançamento pós-presidencial de Cavaco Silva, não estiveram.