Entrevista a Filipe Froes. “O grande risco desta pandemia é a rutura do SNS, que será mau para todos”

Pneumologista alerta que o risco de rutura do SNS continua a existir. Defende que o país tem de aumentar a capacidade de testagem e rastreio para evitar uma segunda onda maior e confinamentos. Leia a entrevista completa ao coordenador do gabinete de crise da Ordem dos Médicos.

Nos últimos meses tornou-se uma cara mais conhecida do grande público mas há anos que, por esta altura, alerta que sempre que começa uma época de gripe, “prognósticos só no fim do jogo”. Filipe Froes acredita que com a covid-19 essa ideia de um vírus também benigno para a maioria das pessoas tem mascarado ainda mais o esforço feito para tratar os doentes, que não são só idosos, e que sem medidas seriam muito mais e avisa que mesmo nos casos ligeiros e assintomáticos poderá haver sequelas a longo prazo. Explica por que não tolera a ideia de uma gripezinha e considera errado comparar as mortes da época gripal com esta pandemia. Os assintomáticos são neste momento uma das suas maiores preocupações. Defende que o país tem de aumentar a capacidade de testagem e começar a fazer testes periódicos nos setores mais expostos, como lares e escolas, para evitar um novo confinamento. Na semana em que o país volta a passar a barreira dos mil casos diários, alerta que o risco de rutura do SNS se mantém – e afetaria todos os doentes, covid e não covid – e dá o exemplo de Espanha, onde em pouco tempo a epidemia se tornou explosiva. “Temos pouco tempo para fazer tudo o que é preciso fazer”, apela. Defende que não é agora o tempo de fazer contas ou avaliar o Governo mas de coesão e deixa desde já um repto: no final, deve ser feita uma auditoria internacional à forma como o país e todos os intervenientes geriram esta crise, para tirar lições para o futuro. 

A primeira vez que falámos sobre este vírus em fevereiro dizia que uma pandemia era um jogo de preparação, paciência e conhecimento. Notava-se no entanto uma certa ideia geral de que o problema não chegaria cá com a dimensão que estava a ter na China, na altura com 17 mil casos. Houve uma desvalorização?

Revelámos provavelmente que não estávamos suficientemente preparados e que não tínhamos aprendido as lições das pandemias anteriores. E portanto repetimos os mesmos erros e continuámos a viver naquilo que muitos autores designam por ciclos de pânico e de negligência. Pânico durante a pandemia e indiferença e negligência entre pandemias. Que é um bocado o que começámos já a viver nesta pandemia, à medida que o tempo foi avançado começámos a assistir a ciclos de indiferença e negligência. Friedrich Hegel tem uma citação que diz: o que a história nos ensina é que não aprendemos nada com a história. 

Vê-o em quê neste momento?

Há cem anos, na pandemia de gripe espanhola, tivemos uma primeira onda que, curiosamente, começou também em março/abril. O pico em Portugal foi em junho/julho de 1918. Depois tivemos uma segunda onda que começou em setembro/outubro e o pico foi outubro/novembro. Na segunda onda houve cem vezes mais mortes do que na primeira. A 25 de outubro morreria o pintor modernista Amadeo de Souza-Cardoso. Houve depois uma terceira onda que se iniciou em fevereiro/março, que teve o pico em Portugal entre março/abril. Morrem nessa altura os pastorinhos de Fátima, Jacinta e Francisco Marto, com nove e dez anos. 

Hoje os recursos da medicina e as medidas em vigor são incomparáveis.

Mas o que não aprendemos foi que, da primeira para a segunda onda, houve uma diminuição da adoção das medidas de prevenção e uma maior saturação das pessoas, que fez com que o pico de atividade tivesse sido muito mais elevado, bem como a mortalidade.

Receia que isso aconteça nesta segunda onda?

Passámos esta sexta-feira a barreira dos mil casos diários. Espero que não, mas há sinais preocupantes. Na última semana já tínhamos ultrapassado a taxa de incidência semanal máxima atingida na primeira onda. Acabámos com mais de 55 novos casos por 100 mil habitantes na janela temporal de sete dias. Se havia dúvidas, o exame chegou. Temos de perceber que para comparar a atividade entre países temos de usar métricas semelhantes tendo em conta a população. Mil casos em Portugal, e serão mais, representam mais de 8 mil casos na Alemanha e perto de 5 mil casos em Espanha.

Mil casos em Portugal, e serão mais, representam mais de 8 mil casos na Alemanha e perto de 5 mil casos em Espanha

Tem sido assinalado pela DGS que existe agora um padrão diferente, com menos casos em idosos, mas analisando os dados percebe-se que estão também a aumentar. O padrão pode alterar-se?

Infelizmente vai alterar-se. Neste momento temos de facto mais transmissão através dos grupos nas comunidades mais jovens, que são os mais ativos e mais móveis, mas necessariamente, aumentando a transmissão, vão levar o vírus a todos os grupos etários e progressivamente vamos ter mais doença nos mais vulneráveis. Isto não é estanque. Estamos a comparar o que está a acontecer agora com uma primeira onda em que tínhamos menos capacidade de testagem, isso é verdade, mas tínhamos também um menor envolvimento de pessoas jovens na transmissão porque estávamos em confinamento. Agora as pessoas vieram das férias, a atividade escolar reabriu. As pessoas mais expostas terão mais facilidade em adquirir o vírus. São as primeiras. Mas depois essas pessoas vão criar cadeias de transmissão, que até podem ser assintomáticas, até que vão transmitir a pessoas que acabarão por ter a doença. Neste momento nos hospitais sente-se já um aumento enorme da pressão de internamento, vindo da comunidade e de outros hospitais que começam a entrar em dificuldades, o que justifica uma necessidade imperiosa de maior coordenação a nível regional perante o que temos pela frente.

A Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo já garantiu que isso será feito.

E é positivo, só peca por tardio. O gabinete de crise da Ordem dos Médicos já o recomendou há várias semanas e era algo que já devia estar previsto no plano para o outono/inverno e implementado. Temos ouvido que o SNS funciona em rede, mas até aqui funciona na base da rede telefónica, que é os hospitais ligarem uns aos outros. Coordena o gabinete de crise da Ordem dos Médicos para a covid-19, que tem feito várias propostas ao Governo.

Tem havido abertura da parte das estruturas de decisão ou sentem um progressivo afastamento? Tem havido alguns momentos de tensão com os médicos.

Deste gabinete de crise fazem parte muitas pessoas que também colaboram como peritos em diferentes grupos de trabalho. O nosso único objetivo tem sido contribuir para o melhor para o país e para a população portuguesa. Não temos aqui qualquer ânsia de protagonismos ou de egos. Percebemos que esta pandemia também é uma pandemia de egos, mas o nosso objetivo é salvaguardar o melhor para a população portuguesa. Se temos dado ideias, é com muito gosto que vemos essas ideias serem implementadas. E percebemos que as estruturas oficiais têm uma dinâmica e tempo de resposta diferente. É mais fácil fazer uma proposta num gabinete de crise, reunirmos os nossos membros, que são menos, do que decidir e implementar. Parece-nos muito importante que a sociedade civil, que pessoas mais diferenciadas nesta área, colaborem no combate à pandemia.

Mas esperava maior envolvimento?

Acho que deve haver a preocupação de ouvir as pessoas mais habilitadas em cada área. E que em todos estes momentos tem de haver uma comunicação clara, coerente e transparente que explique tudo o que está a ser feito à população. 

O médico Miguel Oliveira da Silva defendeu no i que a DGS tem tido uma postura excessivamente autoritária na forma como implementa e justifica medidas. Partilha dessa visão?

Não. Acho que todos podemos comunicar melhor. Conheço bem a dra. Graça Freitas e não usaria esse termo para descrever o que ela faz. Tem havido no entanto críticas à gestão da pandemia. Como avalia a atuação da DGS e da Dra. Graça Freitas? À semelhança do SNS, a DGS também partiu para esta pandemia muito fragilizada. Ao contrário do que era desejável após a pandemia de gripe de 2009, a DGS não ganhou robustez e perdeu capacidade, financiamento e, mais importante, recursos humanos e técnicos e, consequentemente, diferenciação. Já antes da pandemia, muitos Programas Nacionais estavam a funcionar a um nível residual. E aqui também seria útil auditar e avaliar quem e como fragilizou a nossa Autoridade Nacional de Saúde. E acrescento, faltou à atual directora-geral Graça Freitas a subdirectora-geral Graça Freitas da pandemia de 2009.

Quando fala em avaliar está a referir-se a alguém em particular?

Sim, sim… e esse alguém sabe a quem eu me estou a referir.

Tem defendido um alargamento da testagem a pessoas assintomáticas, com recurso aos novos testes rápidos. Vemos médicos que não partilham dessa ideia. O que vos divide?

Neste momento precisamos de manter uma forte adesão nas medidas de prevenção e controlo. Manter um nível elevado de resiliência e combate à saturação, indiferença e ignorância, que também consomem muitos recursos. E depois complementar isto com intervenções práticas. A minha proposta é a utilização dos novos testes para o sars-cov-2 de segunda e terceira geração, por dois motivos. Permitiriam por um lado salvaguardar os testes PCR para os doentes mais graves e necessidades imperiosas de teste para diagnóstico. Por outro, teríamos mais testes disponíveis para fazer uma testagem periódica e sistemática de determinados grupos populacionais e, com isso, manter uma maior normalidade no dia-a-dia com menos risco de isso potenciar cada vez mais as infeções. Se quiser, isto não é mais do que alargar o que tem feito o Presidente da República a outros grupos da população.

Soubemos esta semana com o caso de Lobo Xavier que Marcelo se testa duas vezes por semana, na última foram três testes. Muitas das pessoas, inclusive que trabalham nos serviços de saúde ou nos lares, não se testam periodicamente. Seria de avançar por aí?

É algo que começa a ser equacionado noutros países. No fundo estes testes periódicos permitem, nos grupos mais expostos, identificar mais precocemente alguns casos e evitar que essas pessoas, mesmo estando assintomáticas, transmitam a outras e prejudiquem a atividade desses setores.

Saiu um artigo no New England Journal of Medicine há dias em que falava de um novo paradigma, no fundo os testes como uma forma de filtrar assintomáticos, mesmo não sendo os testes mais sensíveis.

É isso. São testes de infecciosidade. É preciso perceber que a força destes testes não é tanto a sua sensibilidade mas a sua realização periódica. No fundo a ideia seria termos funcionários de escolas, de lares, a serem testados regularmente, de cinco em cinco dias, de sete em sete dias. Os falsos negativos têm sido uma das preocupações suscitadas pelo Governo. A periodicidade do teste permitirá que se detetem a maioria dos casos. Se testar uma vez e nunca mais testar, isso pode ser um problema. Mas se estes testes forem feitos de forma periódica e sistemática, a questão dos falsos negativos é ultrapassada porque a pessoa volta a ser testada dentro de dias. Podendo não apanhar todos os casos, pode apanhar muitos.

O Governo tem reiterado que o país não pode voltar a parar. Acredita que essa é uma das medidas necessárias para evitar novos confinamentos?

Junto com as outras medidas, acredito que sim. A adoção dos testes rápidos teria outra vantagem. Tendo mais testes disponíveis, poderíamos testar em tempo útil todos os contactos de um caso confirmado e tentar fazer um rastreio completo, que até aqui não temos feito. Ou seja, irmos como detetives tentar identificar o caso índice da pessoa que aparece infetada mesmo sem aparentemente ter estado com ninguém infetado. Fazia-se o inquérito epidemiológico e testava-se todos os contactos e assim sucessivamente. Neste momento só há indicação em termos de rastreio de contactos para testar as pessoas de alta exposição. Estima-se hoje que 20% dos casos são responsáveis por mais de 80% das transmissões. Se tivermos capacidade de ir atrás das pessoas que contactaram com um caso confirmado, testar contactos de alto e baixo risco, e descobrir quem iniciou aquela cadeia, podemos até eventualmente descobrir um super-disseminador: alguém que até pode estar assintomático mas que, pelas suas características, está a transmitir o vírus a muitas pessoas. Se pudermos fazer isto em tempo útil, teremos uma capacidade de intervir na origem da maioria dos casos e quebrar mais cadeias de transmissão.

Ainda não foi apresentada a estratégia de testagem. Fazendo mais testes, apanha-se mais casos e os números subirão mais. Parece-lhe que a imagem externa do país, depois do custo que teve o verão com muitos casos em Lisboa no turismo, está a pesar nessa decisão?

Penso que não se avançou ainda sobretudo porque até aqui não havia testes para o fazer a esta escala. E com uma agravante: somos dependentes do estrangeiro. Temos de conseguir ter capacidade de produzir estes testes rápidos, que custam menos cinco euros, e temos de o fazer já porque tal como nós, também os outros países estão a aumentar a procura. Se temos mais casos porque fazemos mais testes é porque eles estão lá. A vantagem é sabermos quem são. Na maior parte dos países realmente interessados em combater a pandemia está a haver um aumento da capacidade de testagem.

Os relatórios semanais do Centro Europeu de Controlo e Prevenção de Doenças mostram que somos agora o 12.º país europeu em termos de testes por 100 mil habitantes. Já não estamos entre os que fazem mais testes, como acontecia no verão. 

Não é só o número de testes e aqui já fomos ultrapassados por muitos outros países europeus, o tempo de resposta é crítico. Esses dados do ECDC, que o i foi pioneiro na divulgação e que não constam dos boletins epidemiológicos da DGS, revelam também que o tempo médio entre o início dos sintomas e o diagnóstico é de sete dias. Sete meses depois da declaração de pandemia este valor é difícil de compreender e pode explicar a persistência da transmissão na comunidade. Mais curioso ainda é verificar que o intervalo médio entre o início dos sintomas e o internamento hospitalar é de cinco dias. O que pode significar que há doentes com formas graves de doença e com maior carga viral que só são diagnosticados quando recorrem aos hospitais. Naturalmente que percebo que quem queira decidir precise de um racional cientifico superior ao que é a minha opinião, mas também temos de ter presentes que muitos estudos só surgirão no final da pandemia e os dados disponíveis. Não podemos alargar de repente os testes mais população prejudicando quem realmente precisa deles para diagnóstico e ser tratado, mas temos de acautelar tudo isto. 

Todos os anos o ouvimos dizer no início da época de gripe sazonal que prognósticos só no fim do jogo. Este ano há ainda mais incertezas?

Há boas e más notícias. A boa notícia é que com as medidas de prevenção e controlo da covid-19, a gripe diminuiu significativamente nos países que já viveram a sua época gripal, no hemisfério sul. Por isso falo da necessidade de adoção maciça de medidas preventivas.

Devia avançar-se para o uso obrigatório de máscara ao ar livre como estão a fazer alguns países?

Sem qualquer dúvida, devemos otimizar a utilização da máscara em espaços fechados e abertos, até porque num espaço público aberto não é viável andarmos com uma fita métrica para medir o distanciamento de dois metros. A máscara e as outras medidas de prevenção, vulgo as medidas de intervenção não-farmacológica, provaram a sua eficácia na redução significativa da atividade gripal na época da gripe que agora terminou no Hemisfério Sul.

Como se pode saber ao certo que houve menos casos se não se testa as pessoas à gripe como se tem testado o coronavírus? 

O que notaram no Hemisfério Sul foi uma diminuição dos internamentos por outros vírus respiratórios. Será uma medida que teremos disponível para avaliar. Os casos graves que todos os anos aparecem nos hospitais são testados. Numa época gripal temos 150 a 200 doentes com cuidados intensivos, isto quando se estima que a gripe afete até dois milhões de pessoas por ano, 10% das crianças e 20% a 30% dos adultos.

Tem havido muito essa comparação: se todos os invernos há um excesso de mortalidade de 2000 a 3000 pessoas e nunca se tomaram medidas assim, porque é que se faz isto tudo com a covid-19. Como responde?

As pessoas só podem desvalorizar aquilo que nunca viram ou não conhecem. Não se pode nem subestimar nem a gripe nem esta doença. A gripe é uma doença paradoxal porque embora muitas vezes leve a casos benignos tem uma componente de gravidade que muitas vezes é subestimada – não se veem os casos nos cuidados intensivos, a descompensação de doença crónica e isto tudo tendo uma vacina. Esta pandemia ainda é mais enganadora do que a gripe e não temos vacina. E para mim é algo que caracteriza. É iníqua e enganadora.

Haver pessoas sem sintomas e a maioria dos casos serem casos ligeiros faz crer que as medidas foram desproporcionais?

Temos um vírus que, a muitas pessoas, afeta pouco ou nada, pelo menos no imediato, e a poucas afeta muito ou tudo. O problema é que só sabemos no fim quem são as pessoas a quem afeta muito ou tudo e não vemos os recursos alocados a quem afeta parcialmente mas que não tem maiores consequências pelas medidas todas que foram tomadas. Temos obrigação de comparar o que é comparável. Temos uma infraestrutura dedicada à covid que diminuiu o impacto da doença nas pessoas infetadas e por outro lado assegurou a integridade de um bem maior que foi evitar a rutura do SNS. Se tivéssemos a mesma estrutura da covid-19 aplicada na gripe sazonal a mortalidade da gripe não seriam 2 mil ou 3 mil pessoas, se calhar seriam cinco, dez, zero. Aqui, com isto tudo, ainda assim morreram até aqui 2000 pessoas e evitou-se a rutura do SNS, que teria levado a perdas muito superiores, para todos.

É uma questão que se tem colocado cada vez com maior premência: há um excesso de mortalidade por todas as causas, continua a haver uma limitação de acesso a cuidados de saúde… Há a devida ponderação?

A diminuição da assistência não covid-19 que foi necessária em março travou a transmissão. Não foi uma opção, foi uma inevitabilidade para assegurar um bem maior que foi a não rutura do sistema de saúde. A rutura do sistema de saúde teria impacto nos covid e não covid. Isto não é um trade-off, não se trocou doentes covid por outros.

Isso foi na primeira onda. Neste momento, como se escolherá entre a covid-19 e os doentes que viram limitado o seu acesso à saúde e tempo de espera?

Com certeza que é difícil, todas as pessoas são igualmente vítimas da pandemia e é preciso ter isso presente. Na primeira onda houve uma grande canalização de recursos para a covid. Prejudicámos muito a atividade assistencial. Na altura não sabíamos a dimensão da epidemia e da primeira onda. Agora é fácil dizer que talvez tenha havido excesso de recursos, porque confinámos cedo, porque não se chegou lá. No fim do jogo é mais fácil acertar o resultado. É evidente que temos de tentar equilibrar isto ao máximo, mas à medida que a assistência à covid necessitar de mais meios, seja para tratar doentes, quebrar cadeias de transmissão, só poderão vir de onde existem. 

Se na segunda semana de outubro já há dificuldades nessa gestão em alguns hospitais, como vamos chegar a dezembro?

Não sei responder, mas por isso digo que temos de fazer o máximo possível para diminuir esta onda, não parando o país, mas com mais medidas. A testagem por um lado e por outro essa gestão coordenada de camas covid e não covid para melhor capacidade de alocar meios nos diferentes setores, monitorizar diariamente os recursos humanos disponíveis e necessários e provavelmente ativar estruturas de contingência, os hospitais de retaguarda, de campanha, para libertar os hospitais para atividade programada. Agora é preciso pensar que abrir uma estrutura de contingência vai sempre implicar recursos humanos e isso tem de ser tido em conta. Se pudermos desviar doentes em fases de menor gravidade para libertar recursos hospitalares para a atividade programada será uma forma de preservar a atividade não covid, mas isto tem de ser avaliado diariamente. 

E isso não devia estar já a ser feito?

Espero que esteja e que em função das necessidades sejam ativadas respostas em tempo útil.

Há bocado falava de uma boa e de uma má notícia em relação à gripe. Qual é a preocupação?

A má notícia é aquilo que alguns autores têm descrito como um cavalo de Troia para a tempestade perfeita. Sabe-se que a infeção respiratória gripal diminui as defesas e aumenta a exposição de recetores das células do aparelho respiratório. Pode predispor com duas ou três semanas de antecedência a infeção com o coronavírus e potenciar a resposta inflamatória que o SARS-CoV-2 também desencadeia. E é a esta resposta inflamatória que alguns autores descrevem como a tempestade perfeita. No Hemisfério Sul encontraram 3% de co-infeções de SARS-CoV-2 e influenza e foram geralmente pessoas que tiveram formas mais graves de covid. Felizmente as medidas não farmacológicas tiveram um impacto na redução de casos, mas esta sinergia pode trazer quadros mais graves. E por isso é essencial que consigamos testar mais, idealmente todas as pessoas com sintoma gripal, para perceber inclusive se existe uma co-infeção. Por tudo isto precisamos de uma capacidade de testagem maior.

Espanha, depois da tragédia da primeira onda, volta a viver uma situação de caos nos hospitais em Madrid. Como vê a evolução da epidemia no país? No verão chegaram a reportar menos casos que nós.

O caso espanhol pode ser um bom exemplo para nós. A falta de recursos nas equipas de saúde pública para rastreio de contactos em tempo útil e falta de testagem foram fatores críticos na explosão de casos em Espanha. Ainda vamos a tempo de evitar que a situação em Portugal se aproxime da situação em Espanha.

Acha que o facto de em março o confinamento ter sido precipitado pelo cenário espanhol e italiano que nunca vivemos pode fazer desvalorizar esse cenário?

A Espanha é sempre um exemplo, quer na primeira quer na segunda onda. Na primeira onda não tivemos em Portugal uma situação como a que se viveu em Espanha porque implementámos as medidas mais cedo e colhemos muito mais benefícios do que os espanhóis, que detetaram a epidemia numa fase mais avançada. Tivemos mais tempo e agiu-se rápido. E aqui destaca-se o confinamento, que foi essencial no controlo da primeira onda pandémica.

Olhando para trás, o confinamento na altura não podia ter sido substituído pelas atuais medidas?

Seria impossível, não havia equipamentos de proteção, testes. Na altura tomaram-se as medidas mais adequadas para o conhecimento que havia na altura. Criticar o que se fez há seis meses com base nos conhecimentos atuais é patético. É um falso exercício de inteligência. Certamente aprendemos com a primeira onda, por isso se está a manter a sociedade mais aberta. Agora temos de olhar bem para o exemplo espanhol, não nos pode ser indiferente. Se não percebermos os erros que levaram a esta explosão de casos em Espanha, corremos o risco de o replicar, daí a necessidade de sermos mais ativos na prevenção e organizar melhor a resposta não covid. Temos muito pouco tempo para fazer tudo o que precisamos de fazer.

Devemos estar atrasados em relação a Espanha duas a três semanas, se tanto.

Quanto tempo?

Devemos estar atrasados em relação a Espanha duas a três semanas, se tanto.

Os transportes são ou não um problema? Faz sentido não poderem estar 10 pessoas na rua e aceitar-se 70 numa carruagem? Todos os locais onde há elevada concentração de pessoas e baixo arejamento são favoráveis à transmissão, seja um transporte público ou uma festa numa garagem. Precisamos de aumentar a frequência de transportes, era algo que já devia estar a ser planeado.

Dentro do Governo o risco não tem sido unânime e tem havido uma certa desvalorização.

Os transportes são claramente um problema. Fala-se muitas vezes da Suécia. Temos aqui um colega nosso que tem uma filha a estudar na Suécia. Em Estocolmo, raramente se ultrapassa 20% a 30% de lotação. As pessoas por si próprias não entram para além disso e fazem-no porque passado dois ou três minutos têm um transporte alternativo. Em Portugal isso não existe. Tivemos tempo para identificar problemas e não foi encontrada uma solução. Agora iremos sofrer a consequência disso.

Falando do chamado milagre sueco: não confinaram e mantiveram a epidemia relativamente controlada, com mais mortes do que em Portugal mas menos excesso de mortalidade. Que ilações tirar?

É impossível compararmo-nos com a Suécia. Não temos o mesmo nível de desenvolvimento, organização social e cultura que os suecos. Posto de outra forma, para termos os mesmos resultados que os suecos tínhamos de ser suecos. Têm uma organização de trabalho diferente e além disso tem havido uma série de misticismos: quando se diz que a Suécia não teve confinamento, não é bem assim. Interromperam atividades letivas presenciais a partir dos 16 anos. Suspenderam todos os aglomerados superiores a 50 pessoas, limitaram as suas deslocações. Limitaram visitas de pessoas a lares até este mês; 40% das pessoas vivem sozinhas; mais de 90% da população sueca com mais de 65 anos não contacta habitualmente com pessoas com idades inferiores a 40 anos. O modelo de funcionamento da sociedade sueca aproxima-se já mais do que será um confinamento do que nossa vida cá. E depois o sistema de saúde sueco tem três vezes a nossa capacidade, o que lhes permitiu manter a atividade covid sem prejuízo da atividade não covid. A maior capacidade, disponibilidade e flexibilidade do sistema de saúde sueco permitiu isso. Se quisermos comparar o modelo sueco, então é preciso compará-lo com países idênticos, Finlândia e Noruega fizeram muitíssimo melhor. Tiveram confinamento, tiveram menor mortalidade, tiveram o mesmo ou melhor impacto económico e estão a ter menos novos casos que a Suécia, que já pondera apertar restrições. 

Para termos os mesmos resultados que os suecos tínhamos de ser suecos

Mesmo entre médicos continuamos no entanto a ouvir opiniões muito divergentes sobre a resposta que tem sido dada à epidemia. 

As contas fazem-se no final. Temos excesso de mortalidade, é um facto. Evidente que há muitos doentes prejudicados, mas a questão é qual é a alternativa. Nenhum profissional de saúde pretende prejudicar nenhum doente. Estamos a lidar com um vírus desconhecido e com escassos sete meses de pandemia. A dúvida, o debate e o contraditório são normais, necessários e indispensáveis. Mas todos partilhamos o mesmo sentimento: fazer o melhor pelo país e pelos cidadãos. Já não tenho tolerância para os “negacionistas” que com a sua ignorância irresponsável põem em risco a vida de terceiros e contribuem para uma maior degradação social e económica.

Trabalha no Pulido Valente, hospital não covid. Que limitação sente no dia a dia?

Temos uma diminuição grande de exames de função respiratória, estudos de sono, questões que estamos a tentar ultrapassar e é preciso explicar aos doentes. À medida que a atividade covid aumentar, estes recursos poderão diminuir. Mas com toda a frustração que isso traz, não podemos perder de vista que o grande risco desta pandemia é a rutura do SNS, que será mau para todos.

Sete meses depois, o que o que intriga mais nesta doença?

Esse lado de comportamento humano. A maior parte das pessoas não teve a capacidade de perceber que esta pandemia ao afetar muitos, pouco ou nada dava ideia enganadora de benignidade. Esqueceram-se de ver o rosto oculto da pandemia, o esforço que é feito para salvaguardar os milhares de pessoas que precisam de ajuda, que não foram e não são só os idosos. Tivemos pessoas de todos os grupos etários em cuidados intensivos. Esta pandemia é um teste à nossa capacidade de planeamento, organização e resiliência e é um teste à nossa capacidade de cidadania e responsabilidade coletiva. Estamos a ser avaliados por um microorganismo dos mais pequenos com que partilhamos o planeta. A nossa sociedade é cada vez mais individualista e o vírus aproveitou-se disso para ter mais impacto negativo. O vírus só tem uma linguagem e um comportamento, replicar e replicar sempre. Todos os vírus são assim, mas as falsas imagens que se foram criando potenciaram o que neste é especialmente marcado.

Fala de ideias como ser um vírus “bonzinho”?

Isto não é um vírus bonzinho. Não é nem inteligente nem burro, é um vírus com vantagem adaptativa para causar pandemia, causar infeção ligeira e doença assintomática até encontrar pessoas que podem ter doença grave ou morrer. É só isto: sem querer podemos andar a transmitir um vírus que a nós não nos fez nada, nem sequer deu sintomas, mas pode ser fatal para outras pessoas que contagiamos e esse é que deve ser o apelo à nossa responsabilidade.

Isto não é um vírus bonzinho. Não é nem inteligente nem burro, é um vírus com vantagem adaptativa para causar pandemia, causar infeção ligeira e doença assintomática até encontrar pessoas que podem ter doença grave ou morrer

Na doença em si, o que é mais surpreendente? 

Essa transmissão em indivíduos assintomáticos é dos aspetos novos. 

Não existe na gripe?

Existe na gripe antes do desenvolvimento de sintomas, sabemos que 48 a 24 horas antes as pessoas podem ser contagiosas, o que também acontece neste. Agora pessoas totalmente assintomáticas a transmitir a doença não existe. Na sida, uma pessoa assintomática pode transmitir, mais tarde irá desenvolver outros sintomas mas mesmo assim há por vezes uma forma inicial na infeção que não é específica. Em termos de vírus respiratório agudo, como é o caso destes, não se conhece outro vírus transmissor em doentes assintomáticos. Outra diferença é o período de aparecimento das formas graves. Enquanto que nos quadros iniciais dos outros vírus respiratórios há uma evolução nos primeiros dias, nesta doença as formas mais graves só vão aparecer passados sete dias. Depois temos tido uma duração de sintomas muito mais persistentes, o caso do “long covid”, pessoas que estão várias semanas a ter queixa de astenia (falta de força), distúrbio de sono, ansiedade.

Não pode ser por causa do stresse da pandemia?

Terá a ver com a própria doença. E por fim não sabemos ainda as sequelas a longo prazo da população infectada, mesmo nas pessoas com formas ligeiras ou assintomaticas. Pode haver sequelas mesmo nas pessoas com quadros ligeiros ou sem sintomas? Há estudos preliminares que apontam para o aumento da incidência de doenças neurológicas e auto-imunes, mas isso só poderá ser validado ao fim de alguns anos e de as pessoas serem seguidas. Saiu esta semana um estudo que diz que um terço das pessoas hospitalizadas apresentaram alteração do estado mental.

Na gripe também estão descritos quadros desses, desde logo o caso sigiloso do Presidente americano Woodrow Wilson, que em 1919 escondeu o facto de ter tido gripe pneumónica, lembrado nos últimos dias com a entrada do vírus na Casa Branca.

A gripe pode estar também associada a manifestações de meningite e encefalite mas que com a terapêutica adequada têm recuperação. Aqui estamos a falar de sequelas a médio-longo prazo e sabemos já que este vírus tem um neurotrofismo maior, uma maior apetência para as células neurológicas. Portanto, e pegando no exemplo de Trump, isto está muito longe de ser uma gripezinha. Trump sai do hospital a desvalorizar a doença e a prometer que existe cura.

Como viu o caso?

Como era expectável, uma das pessoas que mais desvalorizou a pandemia quando adoeceu beneficiou de um hospital só para si e foi submetido a uma terapêutica precoce com os três fármacos que apresentam a melhor evidência de melhoria de prognóstico ou são os mais promissores. Se tivesse adoecido entre março e maio, não teria recebido nenhum destes três fármacos. Com base em modelos preditivos atuais, o risco de mortalidade de Trump de acordo com a idade e as comorbilidades conhecidas rondaria os 20%. Ele não deve ter passado por muitas situações com um risco tão elevado de morte. E quando diz que teve alta do hospital militar de Walter Reed, ele não teve alta, mas foi transferido para o hospital montado na Casa Branca. Acho que fazer as declarações que faz e prometer o que promete é uma coisa horrível, uma promiscuidade da política.

O que se sabe hoje sobre o risco?

Na avaliação de risco sabemos que a idade é crítica e aos 80 anos morre-se 70 vezes mais do que aos 40 anos, o género masculino e a obesidade aumentam em cerca de 50%, cada, o risco em relação às mulheres e aos não obesos. De qualquer modo ele tinha fatores de bom prognóstico, nomeadamente, ser o Presidente dos EUA, o elevado estatuto sócio-económico, a fácil acessibilidade a cuidados de saúde, não ser fumador e não pertencer a grupos étnicos não-brancos. Mas na informação clínica divulgada há alguma incoerência relativamente ao uso da dexametasona. Este potente anti-inflamatório só está indicado numa fase mais tardia da doença, geralmente mais de sete dias após o início dos sintomas, e só tem eficácia em doentes com necessidade de suporte respiratório, por exemplo, oxigenoterapia.

Neste cocktail de três fármacos há algum mais promissor?

Em Portugal a dexametasona e o remdesivir são fármacos já em plena utilização. A precocidade da utilização do remdesivir é um fator determinante e, na minha perspetiva, pode ter utilidade na diminuição da pressão dos internamentos hospitalares. Hoje na Europa só está ainda aprovado para casos de pneumonia acima dos 12 anos com necessidade de oxigénio. Nos EUA já é dado mais cedo. Estou curioso em saber o impacto do remdesivir na diminuição do tempo de recuperação da “Long Covid” e das sequelas a médio-longo prazo.

Há medo da doença entre os médicos? Isso tem limitado de alguma forma os cuidados?

Há muitos médicos com medo, com certeza. Agora acho que devemos ter em relação a todas as pessoas em maior risco, seja de que grupo forem, a atitude de as proteger. Temos o dever ético de proteger os nossos colegas dos diferentes grupos profissionais que têm maior risco e implementar medidas de controlo e prevenção. 

Tornou-se uma cara mais conhecida nos últimos meses. Nos últimos anos foi bastante crítico do estado do SNS e do Governo, com o movimento do SNS lado B e os protestos das “sextas-feiras negras”. Que balanço faz neste momento do Governo e o estado do SNS?

É evidente que esta pandemia pôs a nu algumas fragilidades que já existiam. Vi com muitos bons olhos a subida do secretário de Estado Lacerda Sales a adjunto. É um sinal de esperança. É alguém que procura implementar soluções. 

Que avaliação faz do desempenho da ministra da Saúde?

Estamos no início de uma 2.ª onda pandémica de consequências potencialmente muito gravosas para o nosso país. O momento é de união e coesão nacional. A sra. ministra Marta Temido terá de ser necessária e desejavelmente avaliada, mas ela não é exceção. Todos nós teremos de ser avaliados individual e coletivamente.

Vemos o fascínio do coração, do cérebro. Agora nunca se falou tanto de pulmões e ventilação. Com é que se vai parar a pneumologia? 

O pulmão é um órgão fascinante. É o órgão mais continuamente exposto à envolvente. Se imaginarmos que respiramos 500 ml de ar 16 vezes por minuto, 24 horas por dia, 365 dias por ano, no nosso pulmão entram anualmente 5 milhões de litros de ar. Esses 5 milhões de litros de ar contactam através de uma membrana alvelo-capital de 0,5 micras com o nosso elemento mais precioso para levar todos os nutrientes ao corpo que é o sangue. É impressionante como é que o pulmão realiza esta função, garante a oxigenação do sangue ao mesmo tempo que nesta fina barreira nos protege de tudo o que vem no ar.

Sempre quis ser médico?

Sim. Acho que veio um pouco do fascínio que sempre tive pelo corpo, por perceber a vida e a morte. Como é que funcionamos em vida e como é que isto termina sempre me fascinou e a medicina acabou por ser a disciplina que me deu mais respostas e também perguntas. O que muda na perspetiva de um médico numa crise destas? Há uma fase do Stephen Hawking que gosto de usar: o maior inimigo do conhecimento não é a ignorância, é a ilusão do conhecimento. Veio mostrar-nos que havia muita ilusão de conhecimento e défice de humildade.

Perguntava-lhe ao início sobre o maior otimismo no início. Também o senti na altura nas suas palavras.

É a segunda pandemia com que lido. A primeira foi a gripe A. Ter sido mais branda tem levado muitos a questionar se foi de facto uma pandemia. Foi uma pandemia com menos impacto que esta mas ensinou-nos muitas coisas que não tivemos capacidade de absorver. Tínhamos medicamentos específicos para profilaxia e tratamento de infeção pelo vírus influenza e em seis meses, em outubro, havia uma vacina. Mas é verdade: a pandemia de gripe A acabou por enfraquecer o modo como visualizámos esta pandemia. Deu-nos a ideia que tínhamos capacidade tecnológica e cientíifica para lidar com qualquer ameaça. Esta pandemia mostrou as nossas insuficiências e a nossa falta de conhecimento. Mas faço também esse mea culpa. Reconheço que no ínicio, em janeiro, não tive a noção da verdadeira ameaça deste vírus. Um grande momento de aprendizagem foi quando tive a noção do papel dos assintomáticos: provavelmente são eles que explicaram a nossa incapacidade de esmagar a curva na primeira onda. E é evidente que a pandemia veio confirmar muitas insuficiências que já tínhamos antes no SNS e isso afetou ainda mais a população.

O que lhe custou mais nos últimos anos?

Uma das maiores machadadas que se deu no SNS foi a criação de grandes centros hospitalares sem análise, monitorização e avaliação. Ainda hoje é um assunto tabu de que ninguém gosta de falar, quanto mais de avaliar de uma forma pedagógica e responsável. O resultado em muitas situações foi simples: os Golias engoliram os Davides. Veja-se o exemplo do Hospital dos Covões, do Barlavamento Algarvio e, mesmo do meu hospital. Perdeu-se capacidade, diferenciação, diversidade e proximidade. No meu hospital, perdeu-se a escola, a maior escola de pneumologia do país, perdeu-se futuro. E o que se perdeu com a fusão, perdeu-se para o SNS, perdeu-se para todos. O sector privado beneficiou dessa perda e soube aproveitar desse vazio. Simples!

Em quê?

Fazíamos aqui três mil colonoscopias. Onde é que elas estão? Estão no privado. Salvo erro em 2017 foi anunciada aqui a abertura de um centro integrado de diagnóstico e terapêutico. É a rouparia, está tal e qual como estava quando foi anunciado em 2017. Mas fechou-se na altura a imagiologia do hospital a partir das 14h, porque ia abrir esse centro integrado com modelos inovadores de gestão que vão ao encontro da necessidade da população de Lisboa, canalizando para aqui aquilo que era feito no privado. Aumentámos em dois milhões de euros a nossa despesa com o setor privado. Todo o discurso continua a ser hoje a rouparia. Precisamos de uma estratégia a longo prazo para o SNS. 

Depois do debate no ano passado em torno da lei de bases da saúde, há agora de novo estudos, propostas. No meio disto parece que a discussão nunca avança para a prática.

Se há muitas estratégias, facilita a escolha para o SNS. O que é preciso é escolher uma com critérios de transparência e implementá-la. Um dos aspetos críticos de qualquer estratégia é a gestão de recursos humanos. E não existe gestão de recursos humanos no SNS. Os hospitais não escolhem os especialistas que precisam para áreas específicas mais carenciadas, recebem aleatoriamente os internos que concluem o exame de saída de especialidade de acordo com o escalonamento a nível nacional de uma classificação atribuída em diferentes júris. É como se a TAP não pudesse selecionar os pilotos que precisa de contratar. As carreiras médicas desapareceram, não há perspetivas de progressão. O meu serviço não abre carreira para chefe de serviço há mais de dez anos. Tive colegas meus que tiveram uma carreira brilhante no SNS e não chegaram ao topo da carreira porque não abriram vagas. Quem faz a gestão de recursos humanos no SNS é o setor privado, que vai pescar à linha os elementos que mais precisa para a sua atividade. O setor público não tem capacidade concorrencial.

Entrou em que ano no SNS?

Sou do curso de 79/85, comecei em 86, nos Hospitais Civis. 

De que tem mais saudades desses tempos?

Da partilha de conhecimento com os outros médicos, das sessões clínicas. Perdemos isso. Hoje temos uma visão da medicina numerizada. Andamos a correr de um lado para o outro a ver doentes, a fazer consultas e a dar altas. Antigamente havia tempo para discutir doentes e aprendermos todos uns com os outros. 

Já sente o peso de idade?

Vou fazer 60. Mas ainda faz bancos. Já me custa, mas se deixar de fazer bancos o meu serviço fecha. Estou de banco por respeito para com os meus colegas e doentes, é um sinal indireto da falta de recursos diferenciados. 

No início de fevereiro chegavam a este hospital os repatriados de Wuhan. Que imagens guarda?

Na altura nenhum de nos tinha a noção do impacto que a pandemia iria ter na nossa vida. Fomos sempre atuando, pelo menos nessa primeira fase, com o máximo de precaução. Vinham do epicentro. À distancia a gente percebe que, na dúvida e por precaução, o que se fez foi evitar a importação do epicentro para cá. É uma boa máxima. Se voltássemos atrás, provavelmente faríamos a mesma coisa.

Saltando para a frente, quando é que vê a pandemia a ficar controlada? O diretor da OMS admitiu esta semana que poderá haver vacina no final do ano.

Prognósticos só no fim do jogo. A minha perspetiva é que provavelmente no final do primeiro semestre a situação tenda a aproximar-se mais da normalidade. Espero que na altura já haja a vacina, o problema vai ser a distribuição. 

É consultor da Liga Portuguesa de Futebol. Depois de não ter havido público nos estádios quando houve menos casos, faz sentido o regresso nesta fase ou ter eventos com milhares de pessoas como o 13 de outubro em Fátima? 

Envolvi-me no futebol como adepto e numa perspetiva de desafio de prova de conceito. O futebol provou que era possível voltar à atividade, adaptada às novas exigências e dando um exemplo de segurança e responsabilidade. O plano da retoma da época anterior começou a ser delineado em março-abril, numa altura que era considerado “doido” pensar-se nessa possibilidade. Estamos agora a colaborar num plano da retoma dos adeptos nos estádios de acordo com todas as normas da DGS, a avaliação do risco e o nível de atividade epidémica. É mais um desafio que mesmo que tenha de ser interrompido, poderá ter utilidade numa fase posterior. Em relação a outros eventos de massas, mantemos a necessidade de legislação específica e normativos de saúde pública coerentes e uniformes que balizem a sua realização de acordo com critérios de risco, mobilidade dos intervenientes e de atividade epidémica.

A próxima pandemia já o preocupa?

A única incerteza é quando vai acontecer. Não sabemos se será um coronavírus, um vírus da gripe ou qualquer outro. O que me preocupa mais é não termos capacidade de implementar até à próxima pandemia o que vamos aprender nesta. Provavelmente no inicio a informação da China não era completa e temos de conseguir tornar-nos mais fortes na vigilância.

Nisso dá razão a Trump? 

O Trump não tem razão. O que nós precisamos é de mecanismos de vigilância europeus que nos tornem menos dependentes quer dos EUA quer da China e outras potências que utilizam muitas vezes estas questões para benefício próprio. Precisamos de um centro europeu de controlo de doenças mais forte e de uma politica de saúde a nível europeu ainda mais forte. Cá, precisamos no final da pandemia uma auditoria independente para percebermos onde falhámos, onde acertámos. Provavelmente uma auditoria internacional. Para a próxima pandemia, que será a sexta depois de 1900, temos de aprender alguma coisa. Não tenho dúvidas de que ficar mais fortes é aumentar a robustez do SNS.