Uma verdadeira fraternidade humana?

Também uma fraternidade exigirá uma paternidade, isto é, para que haja irmãos é necessário que haja um pai. E qual é o pai desta fraternidade? Será que o mundo quererá uma fraternidade?

Saiu, finalmente, a tão esperada encíclica papal sobre a fraternidade humana – Fratelli tutti. A tradução para português é simples, Irmãos todos. E não, não exclui as irmãs. Segundo as regras atuais o Papa deveria escrever Irmãs e Irmãos todas e todos ou Irmãs todas e Irmãos todos. O Vaticano explicou por que é que foi escolhido um título apenas no masculino: é uma citação direta de São Francisco, imaginem. 
A carta reveste-se de particular importância. O documento original, em português, enviado pelos serviços da Santa Sé, tem quase 120 páginas, 280 notas de rodapé e cinquenta citações bíblicas. 
O documento toca muitos aspetos importantes da vida dos homens de hoje: o fechamento das economias e das culturas, a propriedade privada, a política e o uso da religião para fins alheios à religião e muitos outros assuntos.
No final, o Papa Francisco faz um apelo citando o documento assinado com o Ahmad Al-Tayyeb, documento sobre a fraternidade humana em prol da paz mundial e da convivência comum.
Mais uma vez é reforçado pelo Papa o desejo de que se forme uma fraternidade universal, onde cada um se respeite nas suas diferenças e nas fragilidades pessoais ou culturais. No fundo, algo que se funda no mandato de Jesus de nos amarmos uns aos outros como ele nos amou. 

Podemos ficar um pouco perplexos quanto à fundamentação da encíclica. Poderei estar a errar, mas cerca de setenta por cento das notas de rodapé são autorreferenciais, ou seja, o Papa cita-se a si próprio, no seu ensinamento. 
O suporte bíblico é outros dos pontos fracos na elaboração do documento. Apenas cinquenta citações bíblicas suportam o pensamento das instruções apontadas pelo Papa Francisco, o que é pena, pois o pensamento bíblico é evolutivo, ou seja, ele vai no sentido de uma salvação universal do homem.
Isto significa também que o Papa não quis fazer todo o trabalho neste documento e estimula-nos a procurarmos na teologia e nas muitas iniciativas que se reunirão à volta deste documento um olhar crítico.
Eu por mim estou muito contente, mas com muitas perguntas, porque uma fraternidade universal implicará a alienação dos outros membros da família, ou seja, passamos a ser todos irmãos e não sabemos o que fazer aos primos e aos tios – ou seja, aos outros diferentes de nós. 

Também uma fraternidade exigirá uma paternidade, isto é, para que haja irmãos é necessário que haja um pai. E qual é o pai desta fraternidade? Será que o mundo quererá uma fraternidade?
Isto leva-me ainda a pensar um pouco sobre a situação em que o homem se encontra. Porque nós sabemos que para que haja uma fraternidade é necessário que haja amor, para que haja amor é necessário curar o homem da ferida que está dentro de si, para curar essa ferida é necessário que haja uma salvação.
É nisto que nós acreditamos. Nós sabemos que não nos amamos uns aos outros porque estamos feridos pelo pecado. Esse mesmo pecado que nos atinge no mais profundo do nosso ser incapacita-nos de nos amarmos… Sim, não são as estruturas injustas que nos incapacitam de construir uma fraternidade universal, mas o pecado que habita em nós.
Jesus, no evangelho, garante-nos isso: «Não há nada que esteja fora do homem que entrando nele, o possa contaminar; mas o que sai dele isso é que contamina o homem. Porque do interior do coração dos homens saem os maus pensamentos, os adultérios, as fornicações, os homicídios, os furtos, a avareza, as maldades, o engano, a dissolução, a inveja, a blasfémia, a soberba, a loucura. Todos estes males procedem de dentro e contaminam o homem». (Mc 7, 15-23)