Foi bonita a festa, pá, fiquei contente

Há um razoável consenso entre a elite portuguesa e a generalidade da população mais informada e consciente, acerca da gravidade da situação sanitária, económica e social do país. Também se reconhece que, como consequência das decisões históricas e inovadoras da União Europeia, Portugal viu abrir-se uma excelente janela para a recuperação da economia que, no…

Há um razoável consenso entre a elite portuguesa e a generalidade da população mais informada e consciente, acerca da gravidade da situação sanitária, económica e social do país.

Também se reconhece que, como consequência das decisões históricas e inovadoras da União Europeia, Portugal viu abrir-se uma excelente janela para a recuperação da economia que, no entanto, pode ser uma última boa oportunidade.

É verdade que a crise afetou praticamente todos os países da União Europeia (o que viabilizou a tomada de decisões inovadoras) mas é sabido que o nível de deterioração variou de país para país e penalizou e continuará a penalizar as economias mais fracas.

Portugal, tendo em conta as suas fragilidades estruturais e os erros cometidos na política económica, de rendimentos e orçamental, após 2015, é um dos estados membros pior preparadas para reagir, com sucesso, às políticas de apoio europeu.

Os números fundamentais da economia e os indicadores da situação social, mesmo quando são habilmente ‘torturados’, comprovam esta triste realidade diga o que disser a propaganda oficial interna e alguns ‘belos’ gestos de relações públicas do exterior.

É assim muito estranho que a palavra ‘crise’ (política) tenha sido introduzida nas várias negociações em curso, condicionando-as fortemente, e criando um espaço de ausência de liberdade na escolha de prioridades e ações para o futuro.

É óbvio que, no curto prazo, esta autêntica ‘chantagem’ terá êxito, até porque os jornais, ditos de referência, todos os dias ‘demonstram’ que, talvez com a exceção da extrema-direita, ninguém ganharia, neste momento, com a abertura de uma crise, e, ainda mais importante, o estabilizador político para a ultrapassar (eleições) só volta a estar disponível daqui a quase um ano, o que torna evidente que (quase) todos vão ter que se entender.

Este karma começou com o PM e rapidamente tomou a mente de outros agentes, como acaba de suceder com o presidente da CM de Lisboa, que usou a cerimónia do 5 de Outubro para teorizar sobre o tema mas não explicou se o fez na qualidade de autarca ou de putativo candidato à liderança do PS.

Parece, aliás, que, voluntária ou involuntariamente, se está a criar um ambiente de crise política permanente o que acabará por condicionar, no mau sentido, o consenso necessário para ultrapassar as presentes e as futuras dificuldades.

Ora, uma crise política, ainda que disfarçada e amenizada pelas habituais declarações do sr. Presidente da República, é a última coisa de que o país precisa e que o eleitorado estará disponível a suportar.

Numa democracia forte, há regras essenciais que tem de ser respeitadas e a primeira delas é a defesa intransigente do estado de direito, cuja violação, mais ou menos subtil, nenhuma crise pandémica justifica. Por isso é indispensável que termine, porque já foi longe de mais, a política de controlo das instituições de regulação política, numa verdadeira deriva de natureza ‘orbânica’ que começa a tornar-se intolerável.

Não é possível aceitar, seja qual for a justificação, a alteração de regras e procedimentos de controlo da contratação pública que abrirá o caminho a irregularidades e mesmo ao aumento da corrupção, quando está a chegar o momento decisivo de utilização dos apoios comunitários. É criminosa, a não ser por vontade do próprio, a substituição do atual presidente do Tribunal de Contas, um dos mais prestigiados, competentes e honestos técnicos, nesta área, a nível nacional e europeu.

Esta é, por isso, uma opção de regime que deve ser discutida agora e também durante a campanha para as eleições presidenciais, até porque é, de igual modo, uma condição estruturante para minimizar todas as crises anunciadas.

Os apoios europeus do Fundo de Recuperação e Resiliência, não estarão disponíveis, na melhor das hipóteses, antes do segundo semestre do próximo ano, pois as ratificações parlamentares do acordo vão demorar mais de um ano.

Entretanto teremos, felizmente, ao nosso dispor outros fundos (o SURE é um bom exemplo) e, por enquanto, a política amiga do BCE que mantém os mercados relativamente tranquilos.

Só que isto não dura para sempre: há poucos dias o PM anunciou que Portugal não irá, em princípio, acionar a componente dos empréstimos do FERR e, embora não tenha totalmente explicado porquê, é evidente que esta opção resulta do elevado e insustentável peso da dívida pública na economia portuguesa. Somos, assim, forçados a renunciar (transitoriamente?) a uma parte do investimento público de que necessitamos, mas o Governo continua a dizer que não vivemos em austeridade, nem vamos estar sujeitos a qualquer condicionalidade.

Restam as subvenções ou fundos perdidos (?), como alguns gostam de dizer, ignorando que as contas só se fazem no fim e no momento do pagamento das amortizações do empréstimo da Comissão Europeia.

A comissária Elisa Ferreira disse um dia que «mais importante do que discutir verbas (e a sua origem) é discutir a sua utilização (a eficiência e a transparência da sua aplicação)».

Não parece que esta seja a atitude dominante, hoje, entre os principais executores da política em Portugal.

Após 2015 e, como benefício do extraordinário esforço de estabilização suportado pelo povo português, foi possível iniciar uma ‘festa’ de conquista e partilha de poder e uma ficção (em que muitos acreditaram ) de que o pior já tinha passado.

É o momento de voltar ao realismo e reconhecer que afinal o pior pode estar para vir e nem tudo é resultado da pandemia.

Não é tempo de jogos políticos, bluffs ou chantagens. Terminada a festa, é o momento para regressarmos ao mundo da responsabilidade.