Entre a necessidade do jornalismo e o poder da censura. “A RTP transmitia o país idealizado pelo Estado Novo”

Durante 17 anos, a RTP andou de mãos dadas com a censura. No Colégio Almada Negreiros, em Campolide, debateu-se a televisão como forma de cultura antes e após a Revolução dos Cravos.

Um anfiteatro quase vazio. Algumas filas preenchidas por dezenas de cadeiras vazias apelavam a uma assistência presencial que não pode existir em tempos de pandemia. No entanto, através da transmissão online da conferência – realizada via Zoom com livestreaming [transmissão em direto] no YouTube – jornalistas, aspirantes a jornalistas, investigadores e até mesmo curiosos acompanharam a apresentação de uma das comunicações sobre a História do Jornalismo em Portugal. Essa, de acordo com a opinião da comissão científica do projeto, "ainda não está escrita". Todavia, é possível entender os contornos da mesma através do estudo aprofundado de acontecimentos e períodos de transição política que marcaram o país. Recuando até 1956, em pleno Estado Novo, urge entender que a RTP – primeira estação televisiva portuguesa, fundada em 1935 – tinha como princípio basilar de funcionamento as denominadas ordens de serviço. "São decretos de lei. Existem outras maneiras, despachos, muito material de arquivo para estudar até se perceber como foi a vida interna da RTP" começou por esclarecer Jacinto Godinho, jornalista dos quadros do canal anteriormente mencionado desde 1988 que se dedica ao género da Grande Reportagem e não desiste de clarificar a evolução do telejornal desde 1959 – "foi o melhor serviço noticioso que existiu" – até, aproximadamente, ao ano de 1992, quando surgiu a SIC. Para entender o telejornalismo entre a censura e a modernidade, o SOL esteve presente na II Conferência Internacional – História do Jornalismo em Portugal, no Colégio Almada Negreiros, em Lisboa.

A televisão como forma de cultura Antes do aparecimento das televisões de cariz privado, com o estudo dos anos compreendidos entre 1956 e 1975, o professor auxiliar da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Lisboa pretendeu "em vários ângulos", saber como surgiu e funcionou a redação da RTP, que conceito de jornalismo era seguido e servido pelo telejornal de então assim como as mudanças proporcionadas pela queda do regime salazarista. "Existe a ideia de que, durante esses anos, o telejornal foi fortemente controlado pelo Estado" disse o autor de trabalhos como Ei-los Que Partem – A História da Emigração Portuguesa. De facto, já no artigo científico que publicara em dezembro de 2019 na revista Media & Jornalismo, Godinho elucidara que sustenta-se, normalmente, que o mais importante órgão de comunicação da altura, foi controlado de forma sufocante e isso ajudou a prolongar o regime de Salazar e Caetano. Citando Marcello Caetano, deixou claro que a televisão pode ser um instrumento de ação maléfica ou benéfica consoante o propósito que serve, sendo que a visão da estação como órgão panfletário é "estereotipada e um pouco superficial" pois é imperativo, acima de tudo, entender a relação que se estabelece entre os portugueses e a informação televisiva. Neste campo, é possível evocar dados curiosos: em 1957, existiam 0,3 televisores por habitante e, em 1969, 39,1 – um ano antes do término da Primavera Marcelista. Estas são conclusões de José Ricardo Carvalheiro, da Universidade da Beira Interior, expostas no estudo Elementos sobre a ideia de audiência nos inícios da TV portuguesa. Já no ano corrente, no passado mês de março, a Universal McCann (UM), agência de meios do grupo IPG Mediabrands, havia noticiado que o consumo de conteúdos televisivos aumentara 28% devido à pandemia de coronavírus. Em poucas palavras, Jacinto Godinho foi capaz de sintetizar que "a televisão é uma forma de cultura".

Entre 1956 e 1974, o telejornal passou por várias fases. A primeira foi marcada por "um tom radiofónico, noticioso, propagandístico", entre 1956 e 1962, que coincidiu com o início da Guerra Colonial. Curiosamente, longos minutos antes, Maria Inácia Rezola, docente na Escola Superior de Comunicação Social e investigadora do Instituto de História Contemporânea – que se dedica ao estudo dos regimes, das transições, do colonialismo e da memória -, havia debatido a formação das rádios que haviam aparecido nos PALOP, com foco na realidade moçambicana. "O primeiro negro que teve acesso ao microfone, em 1958, terá sido o locutor do programa Hora Nativa. A rádio nasceu por iniciativa comercial e estava muito mais desenvolvida do que em Portugal". Na realidade, a redação inicial da RTP era composta por sete jornalistas oriundos da imprensa que "escreviam textos, não montavam nem realizavam peças" como o jornalista de investigação clarificou. A bem dizer, colaborando nas secções de noticiários e de desporto, "davam uma perninha na televisão e continuavam nos jornais". Numa época em que os jornalistas assumem as mais variadas funções nas redações, a realidade narrada por Godinho pode parecer demasiado distante. Porém, em 1958, a cobertura do encontro entre António de Oliveira Salazar e o General Franco foi realizada por um repórter de imagem. Foi ele o primeiro enviado especial da RTP. Por outro lado, importa referir que "os noticiários eram lidos por locutores que não podiam mexer numa linha do texto e não pertenciam à redação, mas sim aos chamados serviços de regência, como datilógrafos, assistentes de produção, gente muito polivalente". 

O célebre lápis azul A partir de 1961, com a criação do gabinete literário, "um autêntico gabinete de censura dentro da grande estrutura de censura do país", a RTP condicionou as condições laborais dos seus trabalhadores. Exemplos desta prática são ordens de serviço da estação televisiva como: a leitura de publicidade por parte dos jornalistas "algo que hoje não pode acontecer devido ao Estatuto do Jornalista e às incompatibilidades que lhe são inerentes"; a proibição de captação de imagens nos estúdios "exceto quando se estava em direto" ou o facto de os principais patrocinadores da estação, na altura, terem sido duas marcas de tabaco para seguir o modelo norte-americano. Mas a censura não se limitava aos locutores, as funções demoraram vários anos até estabilizar: "a ideia de que as imagens servem o jornalismo só apareceu quando a RTP começou a desenvolver o culto da Grande Reportagem" e, até "tinha de haver uma autorização especial" para que um operador de som desse o seu contributo na concretização de peças noticiosas.

Este contributo não existia porque a RTP tinha poucos recursos para adquirir equipamento de captação e edição de imagem e os cinegrafistas faziam o trabalho dos repórteres e editores de imagem, sendo que se "contava pelos dedos das mãos as reportagens feitas no exterior". Até 1966, "afinou-se o formato de notícias", principalmente por meio da criação do telejornal como hoje o conhecemos, a 18 de outubro de 1959. O esquema seguido foi adotado a partir do acompanhamento dos alinhamentos das televisões estrangeiras porque "Portugal vivia isolado do resto do mundo e encontrou uma via própria para chegar aos telespectadores". Importa também referir que, desde 1959, existiram três tipos de noticiários. O primeiro, segundo o jornalista, diz respeito ao jornal de atualidades que, a determinada altura, integrou as temáticas do Internacional na sua essência. No entanto, os noticiários eram "pura e simplesmente do tipo radiofónico, com tom propagandístico e até pedagógico" não incluindo imagens animadas, mas sim figuras que eram passadas em off tal como hoje.

Que importância era atribuída aos jornalistas? Nos primeiros cinco anos após a criação do telejornal, não se realizaram estágios e o papel do jornalista não tinha destaque: para pagar o serviço noticioso à Emissora Nacional (EN), porque os redatores não tinham a possibilidade de agir de modo ativo e dinâmico, a RTP colocava dois microfones na mesa principal do telejornal: um com o seu logótipo e outro com o da EN. Nem sequer existiam acordos com as grandes agências noticiosas do país: a informação era proveniente da sede da EN e transformada, "mastigada", na redação da RTP. Ainda assim, para o investigador, "as maiores heranças do telejornalismo da RTP" são o modo de transmissão cinematográfico e o tom radiofónico. Este panorama só se alterou, progressivamente, com a intervenção de Manuel Figueira, diretor do jornal O Século e diretor dos serviços de produção da RTP. "Tinha uma espécie de cargo técnico com muito impacto e implantou uma escola e uma ética do jornalismo" expressou o docente universitário, acrescentando que o impulsionador da mudança "era um homem que tinha pouca tradição no jornalismo, percebia pouco de informação".

"A censura mandava na RTP e colocava os deveres de controlo acima do dever informativo" Quando Figueira abandonou a chefia dos serviços de produção, tendo tido a tutela dos noticiários, António Caetano Carvalho assumiu o seu lugar: sublinhe-se que era um dos censores que já trabalhava no gabinete literário, fazendo a revisão de todos os textos, constituindo-se como "um caso invulgar porque a censura tinha um gabinete na redação e, ao mesmo tempo, um dos censores dirigia a linha editorial do canal". Em 1959, com o aumento da capacidade noticiosa em termos da concretização de reportagem própria, a RTP sentiu necessidade de emitir ordens rígidas: surgiram normas anti-jornalísticas como a proibição da emissão de todas as notícias que chegavam à redação a partir das 21h30 ou a datilografia obrigatória de todas as notícias, algo que implicava a assinatura dos redatores, do chefe de serviço, do censor, do regente de emissão e, depois, do locutor, com as horas a que a leitura havia sido terminada especificadas. Afinal, "era tudo muito moroso e rígido" e os locutores eram obrigados a ler, pelo menos, dois jornais, na íntegra, por dia. Mas, na ótica de Godinho, este processo de revisão instaurado foi uma novidade para a censura e provou que o Estado não confiava na RTP, porque "podia haver sabotagem e diluição de poder". Mas estes percalços eram evitados pela "máquina de censura que controlava, até, coisas incontroláveis". Em tom jocoso, o jornalista recordou os entraves colocados à disseminação de imagens relacionadas com indumentárias consideradas impróprias para as mulheres, como aquelas em que era possível ver as saias de Grace Kelly, princesa do Mónaco. No fundo, "a RTP transmitia uma ideologia do regime, do país idealizado pelo Estado Novo": recorde-se que a legislação criada durante a governação de Salazar prendia-se com regras como a atribuição à Polícia e aos Guardas Florestas da "permanente vigilância sobre as pessoas que procurem frondosas vegetações para a prática de atos que atentem contra a moral e os bons costumes" (Portaria 69035 de 1953) ou o estabelecimento da posse obrigatória de uma licença, passada pela Repartição de Finanças, para a utilização de isqueiros "ou outro tipo de acendedores" (Decreto-Lei nº 28219).

"O objetivo era horrorizar as pessoas e isso provocou uma fratura" concluiu Jacinto Godinho, referindo-se ao modo como a RTP cobriu a Guerra Colonial. Apesar disso, a estratégia teve de ser alterada em 1962, quando a transmissão de imagens do cenário bélico começou a ser pensada previamente. Nesse mesmo ano, a RTP instituiu o Gabinete de Exame e Classificação de Programas com um dos censores da equipa dedicado à censura dos programas. Deu-se o silenciamento de notícias e de reportagens mostrados para fins propagandísticos e Ramiro Valadão [antigo presidente do Conselho de Administração da RTP] separou o telejornal de tudo o resto que era a atividade informativa da RTP, criando o Jornal da Tarde. Os primeiros sinais de que existiria uma revolução no país foram "nitidamente sentidos na RTP", pois as mudanças no ecrã "foram tão grandes" que a luta pelo controlo ideológico não cessou, culminando na escalada da quantidade das ordens de serviço, leis que a televisão tinha de cumprir. Não desistindo, personalidades como Alberto Cabral [militante do PCP e diretor de informação do canal durante 17 dias] "insistiram numa grande forma de pensar o jornalismo".

Que papel para as mulheres? Neste novo paradigma, não estava incluída a presença feminina que, para Carla Baptista (professora assistente no departamento de comunicação da FCSH e estudiosa de temas como a objetividade e a ética jornalísticas) , foi "tardia" e notória somente com a presença de nomes como o de Margarida Marante. Em relação ao equilíbrio de género, Godinho concordou com a colega e defendeu que só nasceu uma "política de algum equilíbrio de género na altura em que se viam um apresentador do género masculino e uma do género feminino", nos anos 80 do século XX. Tal havia sido corroborado por Filipa Subtil, docente na Escola Superior de Comunicação Social e socióloga especializada em temas como o relacionamento dos media com as questões de género, no texto As Mulheres Jornalistas de 1995. À época, a investigadora escreveu que "quase sem presença até 1974 (…) as jornalistas ingressam massivamente nas redações (…) no momento em que se dá o boom dos anos 80 no espaço mediático nacional, em condições de profunda precariedade, realizando estágios, muitas das vezes, não remunerados". Como ponto forte da estação pública, o conferencista e a audiência foram ao encontro da mesma conclusão: "Apesar de tudo, a informação era mais rica do que a de hoje".