Hercule Poirot e o estranho desaparecimento de Mrs. Christie

Poirot, o famoso detective de cabeça de ovo, surgiu há precisamente 100 anos num livro intitulado O Misterioso Caso de Styles. A sua autora, Agatha Christie criou-o com base de variadas personalidades e personagens em voga na altura mas seis anos mais tarde, no dia 3 de Dezembro, tornou-se num caso digno da perspicácia da…

Em 1920, no rescaldo da I Grande Guerra, Hercule Poirot, um refugiado belga, passava uns agradáveis momentos de vilegiatura numa vivenda vizinha da da sua amiga Emily Inglethorp. Foi aí que tomou conhecimento com um convidado de Emily, Arthur Hastings, um jovem na ordem dos seus 30 anos, que estivera nos campos de combate, dos quais saíra como coronel com honra e mérito, e pleno daquela educação requintada que lhe fora inculcada no exigente colégio da Eton durante a adolescência. O súbito e estranho assassínio de Mrs. Inglethorp desencadeou um fenómeno literário que ainda hoje, passado um século, não deixa de fascinar os seguidores da obra de uma senhora chamada Agatha Mary Clarissa Christie, Lady Mallowan de casada, nascida com o apelido de Miller em Torquay, no Devon, Inglaterra, no dia 15 de Setembro de 1890, ou seja, também ela a comemorar, no seu caso, 130 anos de existência não se tivesse dado o facto absolutamente natural de ter morrido entretanto, aos 85 anos, na sua casa de Winterbrook, Wallingford, Oxfordshire, e se encontrar neste momento, no estado em que se pode calcular, uns sete palmos abaixo de terra que rodeia a igreja de St. Mary, em Cholsey.

The Mysterious Affair at Styles, publicado no Reino Unido pela editora The Bodley Heat, e quase simultaneamente nos Estados Unidos pela John Lane, foi um sucesso imediato. Verdade se diga, e quem se mete com Hercule arrisca-se a ver as suas mentiras expostas de forma bastante desagrável numa derradeira cena colectiva na qual participam, geralmente, todos os personagens sobrevivos das suas aventuras, é que The Mysterious Affair at Styles começou por brotar nas páginas do The Times através de episódios semanais que iam deixando os leitores de água na boca com os racicínios acurados do detective belga de cabeça de ovo e sempre delicadamente vestido que punha os bigodes revirados para o céu à custa de cera derretida. Os acontecimentos iam sendo descritos ao pormenor e o jornal dava-se ao luxo de publicar igualmente mapas do interior e do exterior da casa para que nada escapasse à intuição policial do leitor, rapidamente também transformado num investigador, decidido a deslindar os motivos do crime e a identidade do assaassino.

Hercule Poirot tornou-se um monstro até para a própria Agatha, algo que sucedera anteriormente com_Arthur Conan Doyle e o seu Sherlock Holmes. Aliás, Mrs. Christie não escondeu a influência de Doyle: não foi por simples acaso que ofereceu ao belga um parceiro como Hastings, versão quase mutatis mutandis de Dr. Watson, até pela forma como se torna o repositório fiel das façanhas do seu companheiro, mantendo-se convenientemente à sombra da sua incomensurável inteligência e dispondo-se, mesmo, a fazer-se de parvo para que essa inteligência brilhe com maior intensidade na mecânica rotativa das célebres celulazinhas cinzentas. Ou seja, Watson e Hastings estão bem um para o outro, embora o primeiro tenha surgido mais de trinta anos antes do segundo.

BElga, por favor!

Agatha Christie dedicou ao seu detective belga que costumava ficar à beira de perder as estribeiras quando o confundiam com um francês, praticamente o resto da sua existência, embora tenha sido suficientemente profíqua para ir arejando o espírito pelo caminho com a serenidade contemplaativa da arguta Miss Marple, ou com os menos elaborados mistérios que entretinham Parker Pyne, Harley Quin ou Tommy e Tuppence Beresford. Poirot cometeu, portanto, a proeza de surgir em 33 livros, duas peças de teatro (Black Coffee e Alibi) e em mais de 50 contos ou novelas, entre o ano da sua chegada ao mundo, 1920, e 1975, ano anterior ao da morte de Agatha. O nome foi construído com base em três outras personagens de ficção que estavam então na moda, Hercule Popeau, de Marie Belloc Lowndes, e Monsieur Poiret – um polícia belga retirado que vivia em Londres, de Frank Howell Evans. A autora não tivera grande pejo em jogar mão da imaginação alheia e nunca escondeu que a sua técnica foi absorvida com base na criatividade de Conan Doyle: «Basicamente, comecei a escrever em cima do estilo tradicional de Sherlock Holmes, um detective excêntrico, com o seu assistente discreto e o sempre prestimoso funcionário da Scotland Yard, inspector Lestrade, transformado no paciente inpector Japp. Mas, também Conan Doyle não escapou à tentação de seguir o caminho anteriormente traçado por Edgar Allen Poe e pelo seu investigador Auguste Dupin». Enfim, se o modelo tinha êxito, para quê alterá-lo em demasia? Se Dupin, ainda assim, é hoje considerado como o primeiro detective de livros policiais, Hercule Poirot ultrapassou asua popularidade de forma inequívoca e ganhou aos pontos aa Sherlock Holmes nas adaptações cinematográficas, tendo sido interpretado por mais de vinte actores diferentes, desde os incontornáveis Peter Ustinov e David Suchett, até Orson Welles, Albert Finney, Kenneth Branagh, John Moffatt, Jonh Malkovich e um rol de tantos outros que seria enfastiante desfiar aqui.

Em 1926, Hercule Poirot ainda não tinha uma carreira autenticamente definida. Depois do The Mysterious Affair at Styles, ficara três anos sem exercitar o seu raciocínio metódico. Depois pôs a celulazinhas cinzentas a trabalhar de novo em 1923 com The Murder on the Links. Mais três anos se passaram até surgir nas bancas The Murder of Roger Ackroyd. Agatha Christie tinha demasiados problemas na sua vida pessoal para poder entrar no ritimo produtivo que entrou a partir de 1932, quando passou a publicar uma aventura de Poirot por ano, em média. O seu casamento com Archibald Christie, mais conhecido por Archie, o filho preferido de um advogado de renome, antigo piloto da Royal Flying Corps durante a Grande Guerra, que lhe deu a única filha, Rosalind Margaret Clarissa, estava nas vascas da agonia, e o seu duríssimo trabalho como enfermeira voluntária na  Town Hall Red Cross, desgastara-a física e psicologicamente até à beira da depressão. Foi aí que o tal Hercule, com os seus magnificent moustaches e com a sua cabeça exactly the shape of an egg poderia ter resolvido o maior dos mistérios da sua carreira formidável: o do desaparecimento da sua própria autora.

Onde está Agatha!?

Parecia que estávamos perante o guião de um dos seus livros. Na noite de 4 de Dezembro de 1926, Agatha Christie foi ao quarto da filha Rosalind dar-lhe os habituais beijos de boa noite. A menina tinha apenas sete anos. A mãe de Agatha, Clarissa Margaret Bohemer, uma senhora da classe alta, nascida em Dublin e filha de um oficial do exército britânico, morrera pouco tempo antes. Na véspera, Archie tinha-lhe pedido o divórcio, declarando estar apaixonado por outra mulher, uma tal de Theresa Neele, escandalosamente mais nova, e pusera-se ao fresco na companhia de uns companheiros de farra para ir passar  o fim-de-semana na casa de campo de um deles. O que se passou em seguida poderia ser descrito pela suavidade de uma das mais belas baladas dos Beatles: «She goes downstairs to the kitchen/Clutching her handkerchief/Quietly turning the backdoor key/Stepping outside, she is free…»

Agatha Christie deixara a sua casa de Berkshire e, pura e simplesmente, desapareceu na noite fria e escura de um Inverno particularmente rigoroso ao volante do seu automóvel, um Morris Crowley. Na manhã seguinte, o veículo foi encontrado ao abandono em Newlands Corner, no Surrey. O mistério não tardou a adensar-se.

Aos 36 anos, Agatha já era suficientemente famosa para que o seu desaparecimento desse direito a escândalo e enchesse páginas de jornais. No dia 6 de Dezembro, o The Times fez do assunto manchete de primeira página: «Mrs. Agatha Christie, Novelist, Desappears In Stange Way From Her Home In England!» No interior, acrescentava-se que o automóvel deixava sinais claros de ter sido vítima de um despiste e que nada continha senão alguns papéis. As buscas acentuaram-se. As horas iam passando.

Mais de mil elementos da Scotland Yard foram postos a trabalhar no caso, uma enormidade, como está bem de ver. Milhares de civis surgiram dispostos a colaborar, e até aviões foram pela primeira vez utilizados numa caça ao homem, ou à mulher, se preferirem, o que passou a ser motivo de conversas infinitas. Nem os políticos foram capazes de se manterem à margem das investigações. O Secretário de Estado para os Assuntos Internos, William Joynson-Hicks, veio a público alertar para a urgência da resolução do caso. Dois dos mais famosos escritores britânicos de livros policiais, o autêntico Sir Conan Doyle e Dorothy L. Sayers, a criadora da personagem da série Lord Peter Wimsey, foram chamados para dar opiniões, como se Sherlock Holmes pudesse ficar à disposição das autoridades. Hercule Poirot estava inacessível: tinha fugido na cabeça da sua autora, pelo que era uma carta fora do baralho.

Ninguém tinha dúvidas que Agatha estava em fase de esgotamento e esse era um dos motivos para a sua estranha fuga. Mas à medida que os dias decorriam e nem um único pormenor da sua sobrevivência vinha a lume, uma espécie de histerismo percorreu a comunicação social e espalhou-se pelas pessoas em geral. Qualquer pé-rapado desenvolvia as mais cretinas das teorias, a especulação atingiu picos dignos das mais altas montanhas da estupidez humana, o simples facto de o Morris ter sido encontrado a poucas milhas de um local chamado Silent Pool, onde duas crianças foram encontradas afogadas um ano antes, levantou a suspeita que Mrs. Christie decidira pôr termo à vida também por afogamento.

Entretanto, a vida ia decorrendo. E o Assassinato de Roger Ackroyd, terceiro tomo das refinadas circunvoluções cerebrais de Hercule Poirot, rebentava os recordes de vendas. Nem a América ficou descansada e o The New York Times apresentou a história na sua página de abertura, afirmando que Conan Doyle estava a fazer um esforço sobrenatural para entrar em contacto com Agatha através de sessões mediúnicas em redor de uma luva da desaparecida. Finalmente, o irmão de Archie, veio a público afirmar que recebera um telegrama da cunhada. Limitava-se a dizer que precisava de se afastar do mundo em geral para colocar a cabeça em ordem. A Scotland Yard, do topo da sua sabedoria, não aceitou o telegrama como verdadeiro e recorreu, em desespero, ao cão de Agatha para que este farejasse o traço da dona, mas o bicho não se mostrou coperante. Ondas de linhas macabras invadiam as publicações inglesas, testemunhas surgiam de vá lá saber-se onde para lançarem boatos tão imbecis como o de que ela fora engolida pela própria casa, tendo dito um dia a alguém que estava assombrada e  lhe seria fatal: «If I do not leave Sunningdale soon, Sunningdale will be the end of me!» Ao fim de  uma semana, o assunto baixou de intensidade e a polícia resolveu, igualmente, baixar o número de efectivos a ele dedicados pois mais crimes não deixavam de acontecer só porque a mulher que mais se dedicava a inventá-los não dava sinais de vida.

Uma nova teoria surgiu à medida que O Assassinato de Roger Ackroyd atingia vendas absolutamente impressionantes: tudo não passaria de um truque publicitário encenado por Agatha Christie para aumentar os seus rendimentos à custa dos direitos de autor. Teoria essa que enfureceu a família da escritora a ponto de a sua secretária ter de fazer o anúncio público de que Agatha era uma senhora de formação e incapaz de entrar num esquema tão mesquinho de acesso ao dinheiro.

A 14 de Dezembro, onze dias após o seu desaparecimento, Agatha Christie foi encontrada. Ou deixou-se encontrar. Instalada num hotel de Harrogate, de boa saúde, recusou-se a dar quaisquer explicações para o sucedido, argumentando que a sua memória não retivera os acontecimento vividos durante aquele período. A polícia concluiu que Agatha saíra de casa com destino a Londres e sofrera, pelo caminho, o acidente de viação que a obrigara a recorrer ao comboio que a deixou em Harrogate onde se instalou no hotel Swan Hydro, utilizando o nome de Theresa Neele, a amante do marido, e dando como referência de habitação a Cidade do Cabo, na África do Sul. Archie, por seu lado, defendeu a partir daí a ideia de que a mulher entrara em amnésia depois de bater com o carro e desenvolvera uma dupla personalidade justificada pelo desgosto da separação. Foi buscá-la a Abney Hall, casa da sua irmã, onde esteve mantida durante uns dias completamente incontactável, e trouxe-a para Londres de comboio, insistindo que estava em estado praticamente catatónico e que não iria prestar mais declarações sobre o mistério que inquietara toda a Inglaterra. Na estação de King’s Cross, centenas e centenas de pessoas esperavam o casal. Todos queria ver de novo Agatha Christie sã e salva e confirmar com os seus próprios olhos que não se esvaíra para sempre por obra e graça de algum sinistro espírito maligno.

Cerca de um ano mais tarde, Agatha e Archie divorciaram-se. Apesar de continuar a assinar as suas obras como Mrs. Christie, voltou a casar com um historiador e arqueólogo de categoria: Sir Max Mallowan. Laura Thompson, sua biógrafa, escreveu que tudo sucedera por causa de um esgotamento nervoso, mas Jared Cade, outro autor que se dedicou à vida da escritora, avançou com a certeza de que ela desaparecera de livre vontade para, através do escândalo, criar embaraços a Archie e à sua namorada, envolvendo-os num inacreditável melodrama. 

Agatha calou-se. Nunca se lhe ouviu qualquer referência ao episódio do desaparecimento e ele também não consta de Agatha Christie – An Autobiography, a autobiografia que foi publicada em 1977, já após a sua morte. Senhora dos mistérios, foi o centro de um que ficou por resolver. Claro que Hercule Poirot soube de tudo o que se passou. O ptroblema do belga da cabeça de ovo e dos bigodes magníficos é que só podia contar aquilo que ela escrevia por ele. E dela, nem uma palavra…