Alguns leitores desconhecerão a palavra ‘tabelião’. Sobretudo os mais jovens.
Mas há duas ou três gerações era um termo corrente.
É sinónimo de notário, ou seja, um funcionário que certifica ‘oficialmente’ assinaturas, escrituras, contratos, etc.
Ora, Marcelo Rebelo de Sousa transformou-se numa espécie de ‘tabelião do Governo’.
António Costa leva-lhe os papéis prontos – e Marcelo certifica-os.
Aconteceu isso com a não renovação do mandato da ex-procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal, e agora do ex-presidente do Tribunal de Contas, Vítor Caldeira.
Num e noutro caso esperava-se que o Presidente da República tivesse alguma intervenção.
Até porque se tratava de dois órgãos que fiscalizam o Governo: um analisa a aplicação dos dinheiros públicos, o outro a eventual ocorrência de casos de corrupção na máquina do Estado (e noutras áreas da sociedade).
Aliás, tenho defendido que o procurador-geral da República e o presidente do Tribunal de Contas não deveriam ser propostos pelo Governo – devendo antes ser escolhidos diretamente pelo Presidente da República, uma vez ouvido o Conselho de Estado.
Não deveria ser o Governo a escolher quem o vai fiscalizar.
É como pôr a raposa a guardar o galinheiro.
Tendo em conta este vício de base, o Presidente tinha o dever de ser particularmente exigente quanto às mexidas nestes órgãos.
Estranhamente, porém, quando o Governo decidiu não reconduzir Joana Marques Vidal, Marcelo mostrou uma total passividade.
E agora voltou a suceder o mesmo.
Note-se que defendo uma boa colaboração entre o Presidente da República e o Governo para manter a estabilidade política.
Não sou dos que defendem a ideia de que o Presidente deve ser um contrapoder, como defendia Mário Soares.
Nem acho que deva ser uma força de bloqueio, como fazia Mário Soares em relação a Cavaco Silva.
Mas também não pode ser um tabelião.
Se o for, não serve para nada.
Ora, nos dois casos referidos, foi exatamente assim que ele funcionou.
Neste último, para tranquilizar a consciência, perguntou a Rui Rio se concordava com o novo nome proposto pelo Governo para o cargo – e, como este não se opôs, assinou alegremente o decreto de substituição.
Fez mal.
Não estão em causa os nomes das pessoas.
O principal problema da não recondução de Joana Marques Vidal e Vítor Caldeira foram os sinais transmitidos à sociedade.
Recorde-se que a antiga procuradora-geral da República era mal vista por muitos socialistas, sobretudo por causa do ‘caso Sócrates’.
E o ex-presidente do TC tinha sido atacado pelos mesmos círculos em virtude de pareceres mal aceites pelo Governo e pelo presidente socialista da Câmara de Lisboa, Fernando Medina.
Perante isto, haveria que ter um cuidado especial.
Não poderia ficar a ideia de que a não recondução de ambos constituía uma retaliação – ou, pelo menos, uma satisfação aos militantes do PS que não gostavam deles.
Ora, foi precisamente essa a ideia que passou.
Quem hostiliza o PS, é despedido – foi o sinal que passou para a sociedade.
E Marcelo acabou por avalizá-lo.
Em duas oportunidades soberanas que teve para mostrar a sua independência em relação ao Governo, Marcelo fraquejou.
E tinha todas as armas do seu lado, até porque o argumento usado por António Costa para não reconduzir os dois funcionários era ridículo.
Depois de ter apelado a Marcelo Rebelo de Sousa para se recandidatar, fazia algum sentido dizer que não concordava com a renovação dos mandatos?
O princípio só serve para aplicar aos ‘adversários’?
Alguém acredita que, se a anterior procuradora-geral da República fosse alguém de quem António Costa gostasse muito, não a teria reconduzido?
E que, se o presidente do TC fosse um boy do PS, o Governo não teria arranjado um pretexto qualquer para o manter no cargo?
Todos sabemos como os políticos criam ou alteram os ‘princípios’ ao sabor das conveniências.
Quantas vezes já não assistimos a isso?
E com um Presidente tabelião tudo se torna mais fácil.
Deve dizer-se, a terminar, que as não reconduções de Marques Vidal e Vítor Caldeira terão como efeito inevitável tornar mais dócil a ação dos responsáveis das entidades fiscalizadoras do Governo.
Eles já sabem que, se os seus pareceres não forem bem aceites pelo poder político, serão postos à porta da rua.
E o certo é que a nova procuradora-geral da República não tem revelado a mesma energia que a sua antecessora para combater a corrupção no Estado.
Pode ser apenas uma coincidência, mas…