“Andamos atrás do vírus”

Preocupação entre os peritos acentuou-se ao longo da semana em que foi ultrapassado o patamar dos 2000 casos diários. Mau tempo na próxima semana vem agravar cenário.

«Estamos a andar atrás do vírus». O alerta é do epidemiologista Manuel Carmo Gomes e exprime a preocupação com a subida de casos de covid-19, agora acima do patamar dos 2000 casos diários. Entre os peritos ouvidos pelo SOL durante esta semana, a apreensão é grande. O apelo também: só uma adesão maciça às medidas de distância física, o uso de máscara e o reforço imediato das equipas de rastreio de contactos poderão ajudar a gerir e desacelerar a onda que se está a formar e a lidar com o embate, que a esta altura parece certo que será maior que na primeira vaga e exigirá mais recursos de saúde.

O país em estado de calamidade e a incerteza

Foi na quarta-feira, antes de ser divulgado o primeiro balanço de mais de dois mil casos num dia, que o primeiro-ministro declarou publicamente que se assiste agora a uma evolução grave da epidemia. O país entrou em estado de calamidade e o Conselho de Ministros determinou novas para diminuir contactos – e abriu polémica com a proposta de impor a obrigatoriedade da app StayAway Covid, que até aqui tem sido ativada por uma minoria dos doentes diagnosticados com o coronavírus. Quão grave se pode tornar esta onda e as previsões a longo prazo revestem-se de incerteza. E para já são duas incógnitas: a dimensão que pode tomar e quando chegará o pico, o que vai depender das medidas – estas ou novas – e dos comportamentos. Estima-se no entanto que a ocupação hospitalar com doentes com covid-19 só atinja o seu ponto máximo quatro semanas depois de ultrapassado o máximo de novos casos. Esta sexta-feira, foi ultrapassado o patamar dos mil doentes internados e em abril o máximo de doentes hospitalizados com covid-19 foram 1302, pelo que a dimensão do problema começa a avolumar-se.

Vírus ganha terreno e mau tempo não vai ajudar

Carlos Antunes, investigador da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, que trabalha na modelação da epidemia com Manuel Carmo Gomes, consultor da DGS e um dos peritos consultados pelo Governo, explica que um dos fatores de preocupação neste momento é o facto de o RT (o indicador que calcula a taxa de transmissão do vírus, ou seja, em média quantos contágios surgem a partir de cada novo caso) estar a aumentar a nível nacional e não haver sinais sustentados de uma inversão dessa tendência.

Segundo as últimas projeções, divulgadas esta sexta-feira pelo Instituto Ricardo Jorge, situou-se em 1,27 no último período de cinco dias analisado, o valor mais elevado desde o final de março. Na altura, o país estava confinado e registava menos de mil casos diários, pelo que se está agora em território desconhecido. «A duplicação de casos está agora a acontecer a 15 dias, quando em setembro foi preciso um mês para duplicar os casos. Em termos médios, podemos comparar-nos ao que se passa na Holanda. Como o R continua a divergir de 1, a aumentar, o momento do pico é indefinido. Só podemos saber melhor quando será quando o R começar a convergir de forma sustentada com 1. Neste momento o pico pode ocorrer até dezembro ou até em janeiro», diz o investigador. Ou mais cedo, não há respostas fechadas, apenas o que mostram os casos: a onda está a crescer e não a diminuir. E se o país está a fazer mais testes, não é o que mais testa na UE. Esta semana houve dias com mais de 30 mil testes, mas na semana passada o máximo tinha sido 28 mil, pelo que não é aí que reside a diferença.

Nas últimas semanas, com o crescendo de contágios e transmissão, o pico tem sido apontado para cima e para a frente, acreditam os investigadores. Carlos Antunes admite que, num cenário em que não há uma inversão da tendência e medidas adicionais, se poderá chegar aos 6 mil casos diários no país. Se esse cenário implicaria uma resposta hercúlea do sistema de saúde, que poderia ter então de responder a 3000 doentes internados ao mesmo tempo com covid-19, estima, o problema é mais imediato, porque o sistema tem estado a perder capacidade para diagnosticar todos os casos de forma atempada, o que potencia o aumento da transmissão.

O investigador explica o que indicia que se está «a correr atrás do vírus» e com cada vez maior atraso: «Analisando os dados a que temos acesso do Instituto Ricardo Jorge, em função da data de diagnóstico, que é diferente do total de notificações reportadas a cada dia porque há atrasos, estimo que nos últimos cinco dias estivemos a diagnosticar e identificar em média 1600 pessoas, quando na realidade há 2000 pessoas. Portanto estamos em média com um atraso de 400 diagnósticos, pessoas que só são identificadas nos dias seguintes. Há uma semana eram 350, na anterior 300. Não estou a falar das pessoas assintomáticas que nunca serão detetadas e que sabemos que são mais, mas pessoas que entram no sistema de rastreio com atraso e que, entrando mais cedo, podia evitar-se que continuem a transmitir o vírus», diz Carlos Antunes. «À medida que o número de casos aumenta, esta diferença tem aumentado. Se detetássemos os 2000 casos, a epidemia não crescia tanto, tínhamos mais hipótese de estancar as cadeias de transmissão. Desta forma, o que tem acontecido é que o vírus tem ganho território, esta diferença tem-se tornado maior e isso explica porque é que temos tido de rever as previsões e tido valores maiores do que se pensava que seriam a esta altura».

A constatação redunda na necessidade de reforçar rastreio de contactos e identificação de casos suspeitos – algo que o Governo garantiu esta sexta-feira que será feito com o apoio de estudantes de curso de saúde, um apelo que já tinha sido feito pelos médicos. Carlos Antunes alerta no entanto que há outro fator que poderá acelerar a transmissão nos próximos dias, tornando ainda mais premente essa necessidade para que o desfasamento não aumente mais, a par da sensibilização da população para questões concretas do dia a dia. «Começámos a ter frio esta semana. As mínimas estiveram abaixo de 10ºC e as máximas abaixo de 18ºC. De terça a quinta-feira vai chover bem, o IPMA já alertou para isso. As pessoas vão-se confinar no interior, os espaços fechados vão ser mais utilizados, por exemplo nos almoços no local de trabalho, nas universidades. Se não houver a atitude de as pessoas almoçarem isoladas, a adaptação de levarem o almoço de casa e comerem no seu gabinete por exemplo, o tempo vai-nos empurrar para haver mais contacto e mais contágio», explica. «E portanto, se não houver reforço das equipas e a meteorologia continuar desfavorável, vai favorecer a propagação».

Medidas mais duras não podem ser descartadas

Durante a semana o Governo reiterou que não se pretende voltar ao confinamento, mas a recusa deixou de poder de ser taxativa. Para os peritos ouvidos pelo SOL, há o risco de as medidas serem insuficientes, mas poderão existir outras: medidas locais, nos concelhos com menor controlo da transmissão, maior sensibilização e, no limite, o confinamento.

Carlos Antunes sublinha que as decisões cabem à esfera política, mas admite que a trajetória é preocupante e considera que medidas como o ensino misto, à distância, em alguns contextos poderia ser algo a equacionar. Quanto ao confinamento, salienta que do ponto de vista técnico era o que permitiria travar o crescimento numa situação limite: «Só com uma estratégia de diagnóstico pode ser difícil, mas tudo depende também do comportamento das pessoas». Com as medidas anunciadas esta semana pelo Governo, reconhece que poderá haver um abrandamento dos contactos, mas que pode não ser suficiente para achatar um crescimento exponencial – e que já o é há algum tempo. «Basta estar dias seguidos acima de 1, como tem sido. Demorou-se muito tempo a assumir que se estava na segunda vaga», diz.

No terreno é também evidente a preocupação. Embora exista atualmente capacidade de resposta no SNS tanto em enfermaria como em Cuidados Intensivos, e capacidade para expandir camas, a subida de casos e de doentes internados acelerou e um eventual abrandamento não será imediato. Durante a semana, a diretora do serviço de infecciologia do Hospital Amadora-Sintra alertou que em duas semanas se estará em colapso. «A resposta não é suficiente», afirma Patrícia Pacheco. Das unidades de saúde pública continuaram a também a chegar relatos de mais inquéritos pendentes, algo que há entretanto a garantia que será reforçado.

Para o pneumologista Filipe Froes, que na semana passada, em entrevista ao jornal i, alertou que havia pouco tempo para tomar medidas para abrandar a epidemia, a semana confirmou os receios e coloca um cenário de rutura do sistema de saúde mais próximo. «Precisamos de uma adesão maciça às medidas de distanciamento e redução de contactos e de reforçar as estruturas de apoio nas diferentes áreas. É o tempo de valorizar a pandemia e de coesão total», apela.