Bruno Schulz. O arqueólogo da imaginação

Descrito como um ‘monge sem Deus’, ‘homem minúsculo e rejeitado pela vida’, o escritor e artista judeu Bruno Schulz deixou uma obra breve e fragmentária, mas profunda e intensa. O seu romance desaparecido, O Messias, continua a produzir ecos e a suscitar ansiedade.

Precisamos de alguma coisa que nos ponha em sentido, tensos, que nos sacuda de cima a baixo, qualquer coisa que, escrita, tenha o gosto de um desastre, e que nos ajude a “fugir à odiosa premeditação do romance” (Breton). Um começo, mas longe, fora daqui, como naquele conto de Cortázar que arranca como todos deviam, com essa incerteza que se subentende na vertigem que está lá no início dos melhores: “Nunca se saberá como se deve contar isto, se na primeira pessoa ou na segunda, usando a terceira do plural ou inventando continuamente formas de que nada servirão. Se se pudesse dizer: eu viram a Lua subir, ou: dói-me-nos o fundo dos olhos e sobretudo assim: tu a mulher loura eram as nuvens que vão correndo diante dos meus teus seus nossos vossos deles rostos. Que diabo!” Ah, pois: assim já nos fazemos entender.

Para um bom começo tem de se atirar uma pedra que se tem no fundo de si, e que lá faz falta, mas que é necessário para pôr as coisas a andar, dar uma ideia de voo, nem que seja cometendo uma terrível injustiça. A primeira pedra: chame-se-lhe o que quiserem. Começar de um tal modo, com um balanço tal que não nos seja possível num momento posterior pedir desculpa, dar o dito por não dito, recuar embaraçado. Um arranque que, mesmo se saia vagueando no vento, à deriva, ande armado, com aquela “paixão feroz pelo belo”, uma paixão frenética, ainda que não se saiba bem do quê, e isto para ir aportar naquela conclusão a que chegou Roberto Calasso quando nos dizia que “o mundo – chegou a altura de o dizer, embora a notícia vá ser desagradável para muitos – não tem nenhuma intenção de se desencantar por completo, porque, se conseguisse, iria aborrecer-se demasiado”. Daí que tenhamos ainda, nestes nossos dias que são encarados com as maiores suspeitas, com um cepticismo em si mesmo criminoso, boas condições de ir dar à algum lado, acabar mesmo indo longe, e não há que recear o tom menor, o ir apalpando os ares com um assobio, pois é mesmo necessário fazer frente a este clima seco, hostil. Por isso é que nos diz o editor e escritor italiano que a paródia se tornou uma película fina que tudo envolve. “Hoje, qualquer coisa que se manifeste aparece antes de mais como paródia. Paródia é a própria natureza. Depois, com esforço e leves correcções, pode ser que alguma coisa revele ir além da paródia.”

Senão for por mais nada, ainda há aquela esperança que não é muito diferente desses fumadores que andam à caça das priscas, sustentando o vício a partir daquilo que os outros dão como acabado, resolvido, morto. Devido a um imane deslumbramento, são os velhos hábitos que nos ressuscitam, e esses actos imóveis, solitários, de que quase ninguém desconfia, assumem “uma inaudita concentração de potência”. E de Calasso chegamos a Benjamin, para levarmos em conta como “o leitor, o pensador, aquele que espera, o flâneur, são tipos de iluminados como o fumador de ópio, o sonhador, o ébrio”. “E mais profanos do que eles. Isto, para não falar já da mais terrível das drogas – nós próprios –, que tomamos quando estamos sós.”

Não é difícil, de resto, dar-se conta de que as melhores coisas que vão sendo publicadas são textos que não fazem grandes ameaças, mas tomam-nos a vista como “barcos que procuram ser olhados para poder afundar-se tranquilos” (Lorca), e diante desse desastre sereníssimo somos aquele velho que, sentado nalgum parque ou jardim, tinha já cogumelos a crescerem nele, da tão profunda atenção que sustinha perante o que está além de si. Como se a morte nem pudesse beliscá-lo, ao passo que outros, de tão focados nesse drama ridículo, não se dão conta do quanto isso os prende, já que “o que teme a morte tem de levá-la sobre os ombros”. E gostaria aqui, e seguindo este balanço, de chamar a atenção para um dos títulos que melhor exemplificam este regime entre o que se vem publicando entre nós nos últimos tempos. “Sanatório Sob o Signo de Clepsidra”, de Bruno Schulz, um livro que saiu já no ano passado.

Comecemos por citar uma passagem, do terceiro conto (“A Primavera”) para dar o tom, dar a sentir o cordel com que se ata uma narrativa feita mais de descrições, daquilo que prefere à ficção de eventos o retrato de um ambiente, assim nos vemos acossados pela respiração de um miraculoso trovador das coisas de nada, das contingências da vida interior, esses detalhes que engrossam a sensação do mundo: “Debaixo dessa imensidão disforme [o céu cinzento, abafado] acocoravam-se os homens, atordoados e sem nenhum pensamento, com a cabeça entre as mãos, pendiam curvados nos bancos dos jardins com uma pétala de jornal ao colo, da qual escorria o texto para a enorme e parda insensatez do dia, pendiam desajeitados numa pose ainda de ontem e babavam indolentemente.”

O que aqui temos são narrativas com mais pregos que tábuas, um galope de impressões, num real trespassado pela fantasia, com uma tal coceira poética que forja este estilo que, com os seus arcos e covas, a sua rede de túneis, dá uma abada ao fôlego do leitor. Veja-se outra passagem: “O que é o crepúsculo primaveril?/ Será que já chegámos ao cerne das coisas, será que esse caminho não leva a mais lugar nenhum? Chegámos ao fim das nossas palavras, que aqui já se tornaram delirantes, disparatadas e irresponsáveis. Porém, só para além dos seus confins começa o que nesta Primavera é incomensurável e inexprimível. O mistério do crepúsculo! Só para além das nossas palavras, onde a força da nossa magia já não alcança, sussurra esse elemento obscuro e imenso. A palavra decompõe-se em factores e dissolve-se, retorna à sua etimologia, penetra novamente no fundo, na sua raiz obscura. No fundo, em que sentido? No sentido literal. Eis que escurece, e as palavras se perdem entre associações confusas: Aqueronte, Orco, Subsolo… Sentem como essas palavras fazem escurecer, como a casa da toupeira se espalha, como passa o sopro da profundidade, do porão, do túmulo?”

Com o selo edições do tédio, conta com uma adaptação cuidadosa da tradução feita do polaco para português do Brasil por Henryk Siewierski, e é um livro de um apuro gráfico extraordinário, tanto ao nível da composição e da mancha de texto, como dos desenhos de Ricardo Castro que vão pontuando os contos, como órgãos difíceis de identificar, apontamentos de uma vitalidade poderosa, que nos lembram que “a verdadeira dor que mantém as coisas despertas/ é uma pequena queimadura infinita” (Lorca uma vez mais).

Na edição original, publicada em Varsóvia nas vésperas da Segunda Guerra, estes treze contos faziam-se acompanhar de trinta desenhos do autor, como esclarece Ricardo Castro numa nota que encerra um breve dossier à laia de posfácio, o qual conta ainda com um breve e penetrante ensaio crítico de Schulz (“A Mitificação da Realidade”), onde este elabora a sua concepção do poder da palavra, afirmando que esta “é o órgão metafísico do homem”. Diz-nos que, se habitualmente consideramos a palavra como sombra da realidade, como reflexo, seria mais justo dizer o contrário: “A realidade é uma sombra da palavra.”

Schulz reclama para a arte uma função de arqueologia da imaginação, de tudo aquilo que se concebe e ganha, por isso, existência, um meio de proceder que passa por um levantamento desses ossos em torno dos quais as ficções se vão dispondo, e que, no fundo, as reconduzem a uma genealogia mítica. Num outro texto, diz que o artista é um aparelho que grava percursos em profundidade, sugerindo a imagem de “uma sonda mergulhada no inominável”. Assim, vai-se vislumbrando o método numa obra que beira sempre o limite de saturação, obrigando o sonho a uma decomposição lenta, investigando-lhe os processos, familiarizando-se com esse território convulsivo, para que as suas histórias, ao invés de meros devaneios inspirados, sejam os passos na busca de uma origem mítica.

Schulz mostra-se obstinado na recolha desses sinais profundos, tentando salvar os traços essenciais dos outros, desse enredo estéril feito do “joio do tempo”, e imagina que a sua mitologia privada possa revelar-lhe um destino particular. Se este mapa tem a firmeza de uma mordedura, em que cada dente marca uma posição, enquanto a “sua milenária saliva” desenha os caminhos, Schulz projecta uma sombra colossal sobre o pano da arte a partir da sua fraca figura, vingando-se da pobre impressão que sabia inspirar nos outros, e com isto justifica a sua vulnerabilidade, vira-a do avesso.

Com apenas dois volumes de contos, este “monge sem Deus”, como lhe chama Witold Gombrowicz no seu diário (“um gnomo, um homem minúsculo, com uma cabeça desproporcionada, demasiado amedrontado para ter a coragem de existir, rejeitado pela vida, alguém que se movimentava sorrateiramente nas suas margens”), consegue justificar todas as suas crises, erguer um mito literário a partir de uma vida aparentemente estéril, e, no fim de contas, defende-se, agiganta-se, à medida que o joio do tempo e a ordinarice das suas ficções dão lugar a outras, e prova como a solidão lhe foi útil, mostrando-se “o reagente que leva a realidade ao ponto de fermentação, à decantação das formas e das cores”.

E aqui emerge aquele elemento constante de paródia, esse limiar que tanto nos achaca quanto nos estimula e espicaça, pois, como nota Schulz, “no próprio facto de uma existência individual se encontra ironia, troça, a triste língua do truão entregue a zombarias”. Antes afirmava que a espontaneidade exige um apuramento, pois nela se encontra algo de mais profundo: “Está nessa errância das formas o genuíno princípio da vida. E por isso emana desta substância a aura da ironia universal”, escreve numa carta a outro artista plástico e escritor, S.I. Witkiewicz.

Nestas indagações, Schulz detecta algo de muito profundo na própria instabilidade do que nos cerca, essa que produz em nós uma imensa desilusão, estando sujeita a uma “mascarada geral”: a realidade só como aparência, brincadeira, jogo, assumindo certas formas, exercitando tensões a partir de oposições algo circunstanciais. Mas então, há quem seja capaz de se indemnizar desse fraco papel que lhe calhou na distribuição superficial que é feita quando a vida encena esta sua produção grandiosa e ao mesmo tempo miserável, desoladora para a maioria dos actores. “De certo modo”, diz-nos Schulz, sentimos uma satisfação profunda quando a trama da realidade abranda, sentimo-nos interessados por essa bancarrota [da realidade].”

E se muitos chegam aí, se experimentamos constantemente essa “atmosfera de bastidores, de fundo de palco onde os actores, já despidos dos trajes, troçam do pathos dos seus papéis”, o certo é que, nos nossos dias, a intriga consegue impor-se-nos, amolecedora da vontade, dissolvendo a consciência numa névoa fantasmagórica de inebriantes psicológicos e físicos. E é aqui que surge essa arqueologia a que o artista se entrega numa forma de resgate do sentido original, servindo-se desse uso poético recalibrador das palavras, do pó que se inspira nas oficinas onde foram usados os elementos das antigas histórias desmontadas. Onde a palavra recobrou os sentidos, é aí que uma existência mais profunda é resgatada aos humores da realidade, essa que se exprime enquanto natureza paródica.

Assim, no ensaio crítico incluído na edição portuguesa do segundo volume de contos de Schulz, ele insiste que “a palavra primitiva era divagação que girava ao redor do sentido da luz, era um grande todo universal. Na sua acepção corrente, hoje a palavra é apenas um fragmento, um rudimento de uma mitologia antiga, omnipresente e integral. Daí a sua tendência a regenerar-se, a rebentar, a completar-se para regressar ao sentido inteiro. A vida da palavra consiste em tender para milhares de combinações, como os pedaços do corpo esquartejado da serpente lendária, que se procuram nas trevas.”

Retomando a realidade que tanto achincalhou este poeta, numa espécie de crónica, Patrícia Guerreiro Nunes exalta a excepcionalidade desta obra, que descobriu através da edição de “As Lojas de Canela”, o outro livro de contos de Schulz, que Aníbal Fernandes traduziu do francês, e transmite-nos em jeito de nebulosa a ideia de “uma vida muito pobre em acontecimentos”, mas que se aferrou ao que tinha, à pequena povoação de Drohobycz, de onde o autor nunca conseguiu ausentar-se por muito tempo, um desses “lugares afastados do mundo e que se convertem num mundo para o fugitivo que nunca chega a ir-se” (Antonio Muñoz Molina).

Quando Schulz nasceu, em 1892, esta cidade ficava na região da Galícia, parte do Império Austro-Húngaro; em 1919, juntamente com toda a “Mala Polska” (Pequena Polónia), reverteu para a Polónia; no ano em que Schulz foi assassinado, estava sob ocupação alemã; hoje faz parte da Ucrânia. É sobre esta povoação, sobre as figuras que dão corda a essa caixa de música que ao ecoar desdobra “um mundo mesquinho, aliciante, banal e mágico” (Giorgio Van Straten), é com essa “República dos Sonhos” que Schulz aprende a induzir soberbas variações numa escala modesta, a convocar o imponderável, elaborar glosas sumptuosas, bafejando a superfície reluzente de escamas daquela aparência ao mesmo tempo ridícula e tumultuosa de um mundo que estava a desaparecer, ruas em que lojas humildes e anacrónicas se confrontam com os indícios de um futuro voraz, que em breve dará conta daquela povoação. “Enquanto na cidade velha ainda prosperava um comércio nocturno semiclandestino e cerimonioso, neste bairro novo tinham desde logo florescido sóbrios e modernos métodos de traficar. Enxertado neste chão gasto, um exuberante pseudo-americanismo engendrara um estilo insípido e sem cor, de uma vulgaridade cheia de pretensão. (…) Esta urbe de mediocridades não dá lugar a instintos exuberantes nem a paixões sombrias e insólitas.” 

Filho de um comerciante judeu que tinha uma loja de tecidos, Bruno nutria pelo velho Jakub Schulz uma admiração e uma estima que viriam a dilacerá-lo, sentindo o pai desgastar-se naquela rotina mortificante à medida que a depressão tomava conta, fazendo dele uma ausência cada vez maior sob o “céu fechado de uma paisagem desfalcada”. E foi contra aquele abatimento, foi o tédio insuportável o que empurrou Bruno para esse registo agravado dos sintomas da realidade, esse balanço entre o fascínio e a repulsa, a fábula e o pavor, apanhando os fios e traços mais belos e os mais turvos, os aspectos mais sórdidos que estão nos seus desenhos e, de forma ainda mais impressiva e original, na sua prosa.

Começa por se inspirar na obstinação daquele homem, ao mesmo tempo próximo e inabarcável, (“nele tudo era irremediavelmente insólito e ambíguo”), capaz de uma grande doçura como de impulsos tirânicos. Viu o seu génio incompatibilizar-se com os limites daquela realidade provinciana. “O meu pai não lançara raízes em nenhum coração de mulher, não tinha podido incrustar-se em nenhuma realidade, planara eternamente acima da periferia da vida, em regiões semi-reais, à margem da realidade.”

E depois Bruno sentiu que fazia o luto a sós, e deu por si a nutrir um secreto rancor contra a mãe, “por lhe ter sido tão fácil aceitar a perda do meu pai”. Foi num ajuste de contas com tudo isso que Bruno quis vingar aquele sonhador que só a doença libertou da servidão da loja, e, como resume o crítico catalão Marcos Ordóñez, em “As Lojas de Canela”, Jakub aparece como um demiurgo enlouquecido, um maestro rejubilante que se entrega a experiências de hipnotismo, criando pássaros exóticos no sótão, doando a sua adega de vinho de framboesa aos bombeiros da cidade, um inventor de geringonças, a tentar insuflar vida nos seus manequins enquanto um bando de comerciantes que se encheram de dinheiro com a guerra e os poços de petróleo na povoação vizinha de Boryslaw não o largam, querendo que lhes venda a sua loja, e tudo isto tendo à perna a azucrinante Adela, a empregada doméstica que está lá para varrer esses cacos de fantasia, que insiste em que o homem ganhe juízo, dê ouvidos à voz da razão, e abandone de vez os seus miríficos projectos.

Em 1915, Jakub morre, e com a perda da loja e da casa onde a família morava, numa maldição que se agrava com a irmã que fica viúva e enlouquece, seguida da morte do irmão, recaem sobre Bruno os encargos familiares, um acumular de dívidas, forçado a sustentar a mãe, a irmã e os sobrinhos com o seu magro salário de professor de desenho e o que mais conseguisse arranjar com biscates. Mesmo o sucesso que obtém em 1933 com a publicação de “As Lojas de Canela”, livro exaltado pela crítica e que lhe fez chegarem uma série de convites para colaborar em revistas literárias, de onde tirava mais algum todos os meses, nem isso lhe trouxe verdadeiro desafogo, e a sua morte precoce, num segundo momento da ocupação nazi, em 1942, é um fim carregado dessa nota de mofa de uma realidade que parece ter gozo em espezinhar alguns. 

Schulz tinha atraído o favor de Felix Landau, o oficial nazi que tinha a seu cargo um pelotão das SS encarregado de confinar e exterminar os judeus da região. Como tantos membros da elite do partido nazi, este magarefe também revelava uma particular sensibilidade artística, e sinal disso é o facto de ter reconhecido em Bruno Schulz um talento fora de série. Nas cartas que enviava à namorada, fala-lhe dos seus “exercícios de tiro”, gabando-se dos seus crimes, e conta-lhe também que arranjou “um cão” que revela promessa, pois “desenha muitíssimo bem”. “Um cão” era um judeu que se mostrava útil e que, estando sob a protecção de um oficial, gozava de uma certa liberdade, que pagava ficando às ordens do seu dono.

Landau tinha encomendado a Schulz que pintasse um mural para o quarto do seu filho retratando as cenas dos contos dos Irmãos Grimm. Em troca, Schulz recebia “várias rações extra de comida”. Por azar, num dos seus exercícios de tiro, Landau matou o dentista pessoal de um chefe da Gestapo, Karl Günther. Por essa altura, Schulz tinha planos para escapar do gueto. Alguns amigos a quem tinha confiado os seus desenhos e manuscritos tinham-lhe conseguido arranjar documentação falsa e algum dinheiro. Infelizmente, na manhã de 19 de novembro de 1942, ao atravessar o bairro ariano em direcção à sua casa, na rua Stolarska, levando uns cacetes de pão que lhe tinham sido entregues por ter terminado o mural nesse dia, sentiu alguém no seu encalço e estugou o passo antes de largar a correr. Foi o pretexto para Günther sacar da pistola e o abater com um tiro na nuca.

O corpo terá ficado caído por várias horas na esquina entre as ruas Czachi e Mickiewicz sem que ninguém tivesse coragem de se acercar dele. Ao encontrar Landau, Günther ter-lhe-á dito: “Mataste o meu cão, eu matei o teu.” Quanto ao mural pintado por Schulz, este viria a ser descoberto em 2001 por um documentarista alemão. Benjamin Geissler deu-se conta de que havia figuras que pareciam querer emergir à medida que começava a descascar uma capa de tinta rosa revelando as cenas dos contos de Grimm. A descoberta foi feita na despensa de uma casa que havia pertencido a um líder comunista da cidade. Geissler informou da sua descoberta o Museu Adam Mickiewicz, em Varsóvia, o qual conta no seu acervo com mais de 300 obras de Schulz, e os técnicos começaram as obras de restauro do mural.

Em maio de 2002, uma delegação do Yad Vashem, o centro de estudos e museu dedicado à memória do Holocausto, apresentou-se no local para examinar o mural e, segundo a equipa que estava a cargo do restauro em Drohobycz, o grupo israelita arrancou cinco fragmentos e levou-os para Jerusalém. O Yad Vashem desmente esta versão, garantindo que isto foi feito com o conhecimento da autarquia, tendo os cinco fragmentos sido comprados. Depois de anos de trocas de acusações, em 2008 Israel reconheceu que as pinturas que tinham sido levadas de Drohobicz fazem parte do “legado cultural ucraniano”, mas insistiu que, uma vez que Schulz era judeu, estas deviam permanecer no espólio do Yad Vashem, sendo cedidas à autarquia de Drohobyz num regime de “aluguer a longo prazo”.

Nas décadas que se seguiram à morte de Schulz, a obra por pouco não acabou também sepultada, alvo de desprezo pela “volúpia do fracasso” que ali se expressa, pela migração das formas, a perversa efabulação, a encantadora e às vezes magoada estranheza de um mundo entregue a convulsões mágicas, na sucessão de impressões de uma prosa tiritante, que vai insistindo, recriando a forma como a imaginação na infância absorve o mundo antes de se deixar dominar pela realidade. Tudo isso foi encarado como o género de devaneios típicos do decadentismo burguês, imprestáveis em face dos valores do realismo socialista que então se impunha.

Mesmo em vida, nos dois anos em que a Polónia tinha estado sob ocupação soviética, quando procurou oportunidades como escritor, foi-lhe dito simplesmente: “Não andamos em busca de Prousts”. Tudo o que conseguiu foi que lhe encomendassem cartazes de propaganda. É de entender que um escritor que tinha claro que é “a arte que distribui tarefas à ética e não o contrário” não fosse muito apreciado nesses que iam para a literatura numa visita guiada, escrevendo composições que deviam baloiçar como palitos entre os cantos da boca da utopia. Mas, hoje, Bruno Schulz não está apenas reabilitado, mas continua a movimentar-se sorrateiramente nas margens, tendo escapado a esse museu onde a glória trata do processo de canonização dos autores, embalsamando-os, ao ponto de os neutralizar. Ao mesmo tempo, este mito esquivo mantém-se em fuga, e não são poucos os escritores que sobre ele se debruçaram, e em particular sobre um romance desaparecido, intitulado “O Messias”, em que Schulz andava a trabalhar há anos e que considerava a sua obra decisiva.

Disso nos fala Giorgio Van Straten, no pequeno volume de ensaios “Histórias de Livros Perdidos”, publicado entre nós pela Elsinore, no final de 2018. Há provas da existência desse livro, indícios da sua ambição desmesurada, como nos diz Straten, não só porque Schulz vai dando conta da sua dedicação obsessiva, referindo-se-lhe numa série de cartas escritas entre 1934 e 1939, mas porque chegou a ler o início, quando este estava quase acabado, ao amigo e crítico literário Artur Sandauer, que ficou com passagens remoendo-lhe a memória.

As outras provas da existência do romance são os desenhos que compõem “O Livro Idólatra”, que ilustraria o livro, e há ainda dois capítulos que Schulz eliminou do romance, incluindo-os como contos autónomos em “Sanatório…”. Os primeiros dois textos.

Entre os inúmeros relatos, rumores e conjecturas que foram feitas à volta de “O Messias”, seja quanto ao seu conteúdo ou o destino que Schulz lhe deu, Straten diz-nos que “alguns defendem que o texto dactilografado foi enterrado num jardim, outros escondido num muro, outros ainda enfiado debaixo do empedrado de um pavimento e assim por diante, porque esconder de qualquer maneira os seus textos foi o que fizeram muitos escritores judeus na tentativa de salvá-los”. Ao longo de anos, o poeta e investigador polaco Jerzy Ficowski foi recolhendo tudo o que não se perdeu, todas as cartas, desenhos, anotações e, em grande medida, a urgência desses bocados, desses haustos formidáveis, esses sinais de uma intensidade de forças recobradas, gestos de uma elegância extenuada que nos provocam vertigens, e a promessa de algo mais, seja só mais outra página ou um romance inteiro, isso é também o legado de Schulz.

Isso mesmo se retira das palavras de Witkiewicz, quando descreve o amigo como “um demonólogo, autor de uma literatura que nos é revelada sob a forma de fragmentos, unidos pelo mesmo fio condutor – lugar, tempo e personagens – e que, mais do que uma antologia de contos ou novelas, se torna coesa graças a uma espécie de metafísica”. Essa obra para a qual não há feriados ou dias de descanso, que aspira a uma vida de errância, disponível para se deixar encadear por novos sentidos, hipóteses remotas, mostrar que a realidade não está completa nem acabada, que é possível dizer outra coisa, dar um passo e com o seu ímpeto adiantar qualquer coisa a esta mundo, não só a energia mas mesmo um metro quadrado de terra húmida, ou nem isso, algo numa escala ainda mais modesta, porque, como nos diz Lorca, “só o diminuto banquete da aranha/ basta para quebrar o equilíbrio de todo o céu”.

É esse desequilíbrio mínimo mas apaixonante que Schulz persegue, “esses exageros e apogeus, essas acumulações e êxtases” que ingressam no desabrochar da vida, dos sentidos. É significativo, de resto, o facto de os contos de “As Lojas de Canela” terem nascido das cartas que Schulz que começou a trocar com a poeta Debora Vogel, em 1929, e nas quais, à margem dos assuntos que discutiam, talvez para impressioná-la, se alongava em prodigiosas descrições da sua infância, da sua família e de Drohobycz, as quais foram ganhando um fulgor e empenho mitologizante, revelando assim o seu espantoso génio literário. Mas mais curioso é notar como um romance que falta pode, mais até do que outros de puro génio que estão aí para ser lidos sempre que quisermos, gerar uma espécie de ansiedade que transtorna tanto mais, e produz consequências notáveis, desde logo toda uma biblioteca urdida à sua sombra, uma inquietação que vai bem mais fundo do que tantos exercícios de exegese crítica.

Talvez isto ocorra porque esta é uma obra que nos dá a medida não do que se alcança mas daquilo que se perde, do que fica soterrado em nós, das coisas que perdem a vez, acabam prisioneiras dos seus excessos, numa espécie de limbo. E o génio de Schulz exercita-se e defende-se nas profundezas da sua espontaneidade, no vigor do que é improvisado, e, por isso, exalta esse ambiente de “fermentação constante, germinação, vida secreta”.

A errância que há nesta escrita não se deixa limitar, continua a produzir ecos, e talvez exprima melhor do que qualquer outra obra esse sentido de desilusão universal, o desejo mais profundo que há em nós e do qual apenas se extrai uma recusa, ao ponto de se ficar sem saída. “Gostaria de flanar, não fazer nada, vadiar, extrair um pouco de alegria à paisagem, extraí-la do firmamento que se abre entre as nuvens da tarde”, escreve Schulz noutra das suas cartas a Witkiewicz. “Talvez a melodia me voltasse, a onda de prosa me submergisse. Os meus deveres profissionais enchem-me de horror, nojo, paralisam-me no que é alegria de viver. Nestes tempos de desemprego só se ouvem ameaças e censuras. E o dever atinge dimensões apocalípticas.”

Schulz é aquele escritor que nos acolhe no limbo, ou por outra, nos nossos projectos destinados ao fracasso, nessas ânsias que se debatem contra o tempo enquanto a razão varre os cacos das nossas fantasias.

Há ainda um outro episódio envolvendo “O Messias” relatado por Straten no seu livro e que dá bem a noção de como este mito se mantém pregnante e desafiador, e até de que pode bem ter em si a matéria para uma intriga clássica indo buscar inspiração aos romances de espionagem do período entre a Guerra Fria e a desintegração do império soviético. Vale a pena transcrevê-lo: “Poucos anos depois da queda do império soviético, no início dos anos 90, Bronislaw Geremek, historiador e então ministro dos Negócios Estrangeiros polaco, contou a Francesco Cataluccio [um escritor apaixonado pela cultura polaca] que um diplomata sueco se aproximara dele há algum tempo. Este diplomata fora, por sua vez, contactado em Kiev (Drohobycz, como disse, faz agora parte da Ucrânia) por um ex-agente do KGB, ou pelo menos por alguém creditado como tal, o qual afirmava que nos arquivos da polícia política havia o texto dactilografado de “O Messias”, de Bruno Schulz, e que, se o governo sueco estivesse ou quisesse fazer de mediador com o governo polaco, ele estaria disposto a vendê-lo. Geremek conseguira obter uma página deste manuscrito para o submeter a peritos que pudessem avaliar a sua autenticidade, entre os quais Jerzy Ficowski. O juízo foi que podia efectivamente tratar-se de ‘O Messias’. Foi então confiado ao diplomata sueco o dinheiro necessário ao resgate do texto, e ele, com a quantia pedida, foi à Ucrânia.” A partir daqui a história perde de novo a firmeza e não se sabe se o diplomata sueco conseguiu ou não o texto dactilografado. O que se sabe é que, na “viagem de regresso o seu carro teve um acidente, incendiou-se e morreram tanto ele como o motorista”.