“Há dias em que somos bons. Noutros, somos menos bons ou até maus. Mas, em todos, sem exceção, queremos salvar vidas”

Em tempos de pandemia, a pulseira verde predomina e é senhora do/no esquecimento: dos doentes com Alzheimer, dos doentes que padecem de outras patologias e, acima de tudo, demonstrativa da rígida e pouco gloriosa conjuntura que os profissionais de saúde enfrentam 24 após 24 horas.

Entre Paço de Arcos e um determinado hospital de Lisboa Ocidental, existe uma distância considerável. Na verdade, os números não importam quando viajamos dentro de uma ambulância em marcha de emergência, mas existe uma certa tendência humana para avaliar pormenores aparentemente pouco relevantes nas horas ou dias posteriores a determinados eventos traumáticos. Creio que se trata de um mecanismo de coping, algo que fazemos para neutralizar o sofrimento enquanto esperamos que este seja aliviado ou elevado por um telefonema, uma mensagem automática enviada pelo hospital ou qualquer outra forma impessoal de receber notícias tão íntimas. Agora, este fenómeno é particularmente importante porque temos de respeitar as regras impostas pela situação pandémica “anormal” que vivemos enquanto as mesmas se adaptam à nossa normalidade. Porque esta, apesar de ter sido desafiada nos últimos meses, tem certos contornos constantes. Por exemplo, o Serviço Nacional de Saúde tem vindo a emitir vários comunicados e, em muitos deles, obtemos a informação de que os utentes só devem recorrer ao Serviço de Urgência (SU) em casos urgentes ou referenciados pelo médico de família, pelo médico assistente ou pela Linha de Saúde 24. Todavia, no caso da minha avó, não me foi possível respeitar a pandemia. Lamento, mas o COVID-19 teve de abandonar o seu lugar de destaque e respeitar-nos: a minha avó que sofre da doença de Alzheimer há cinco anos, o estado de saúde débil que apresentava e a minha dor. Ou assim devia ter sido.

“Acho que te conheço de algum lado. Devemos ter andado juntas na escola”. Com o cabelo alaranjado (talvez pintado à pressa antes ou depois de um turno exaustivo) preso numa trança, o cinto a apertar o uniforme que enverga com orgulho desde os 15 anos, quando ainda não trabalhava “a sério”, e a determinação notória no olhar, a bombeira de 22 anos não hesitou em iniciar uma conversa de circunstância para a qual não me encontrava preparada. Demasiada cortesia para um momento de desespero. Aos solavancos na Avenida Marginal, seguíamos velozmente até ao hospital. Não consigo precisar a quantos quilómetros por hora, mas entre segurar com força a maca em que a minha avó estava deitada e passar-lhe a mão pelo cabelo numa tentativa de tranquilização e ouvir a jovem esclarecer-me acerca de detalhes da Alzheimer, que trato por tu há muito tempo, dei por mim a saltar da plataforma da ambulância e a acompanhar a rapariga sonhadora e o bombeiro mais experiente até à sala de triagem. No corredor da entrada dos Serviços de Urgências, a minha avó foi encostada a um canto e eu desviei-me consecutivamente durante cerca de sete minutos para que houvesse espaço de manobra para os enfermeiros, médicos e auxiliares que circulavam tal como para as outras macas que passavam. As cores das batas voavam no meu campo de visão à medida que combatiam as socas de cores igualmente berrantes. A minha aflição era tão grande que continuei a segurar os ferros que sustentam aquela cama improvisada, temendo que alguém transportasse a minha avó sem que me apercebesse de tal acontecimento mas, ao mesmo tempo, verificava se ela se encontrava noutra das macas que circulavam numa espécie de corrida de carrinhos de choque. “Ela vai ficar bem. Vamos ver se podes entrar. A enfermeira que estava aqui de manhã é uma fixe. Mas os turnos mudaram e, se calhar, a pessoa que está aqui agora não é assim tão fixe. Mas vamos tentar, não custa nada”. As palavras da rapariga funcionaram quase como uma reza e, durante largos segundos, repeti interiormente “Vamos tentar”. Já na triagem, o enfermeiro questionou-me acerca do motivo pelo qual nos encontrávamos ali. Tinha a resposta programada até porque, antes de telefonar para o 112 a explicitar a emergência que me levara a contactá-los e pedir transporte para a minha avó, redigira um documento no Word – naquela altura, estava verdadeiramente amachucado –, imprimira-o (depois de quase partir a impressora que teimava em não cumprir as suas funções) e baseava-se nestes pilares: o vínculo que existe entre nós, a doença que tem vindo a destruí-la, a medicação que toma dividida em fases do dia e detalhes do quotidiano (por exemplo, a referência às massagens que lhe faço com Diclofenac para ativar a circulação). 

De uniforme cor de laranja com letras pretas garrafais a indicar a profissão e teclando no computador, apático, provavelmente por não suportar a carga de trabalho imposta pela situação pandémica, desde março, o enfermeiro olhou para o estagiário sentado a seu lado e, de seguida, ouviu-me falar sobre os sintomas que a minha avó apresentara naquele dia bem como naqueles que o antecederam: a fraqueza, a sonolência extrema, a falta de apetite, a alternância entre hipertensão e hipotensão, a escalada da desorientação, a prostração. Sem hesitação, arrancou uma pulseira verde da caixa organizada de acordo com a Triagem de Manchester e os bombeiros encaminharam a minha avó novamente para o corredor que, naquele dia, funcionava como sala de espera. Enquanto aguardávamos pela chamada, peguei no telemóvel e iniciei uma pesquisa rápida para me assegurar de que ainda mantinha a minha lucidez e não me havia esquecido do significado da atribuição daquela cor. No site do Grupo Português de Triagem, verifiquei que a pulseira vermelha se destina a doentes emergentes, a laranja a doentes muito urgentes, a amarela a doentes urgentes, a verde a doentes pouco urgentes e a azul a doentes não urgentes. Não censuro o enfermeiro. Afinal, no passado mês de junho, as conclusões preliminares de um inquérito online realizado por investigadores da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP), Centro de Investigação em Tecnologias e Serviços de Saúde e Escola Superior de Educação do Politécnico do Porto (ESE.P. PORTO) revelavam que cerca de 52% dos profissionais de saúde apresentam sinais de exaustão física ou psicológica, e até mesmo de burnout, devido à emergência e ao desenvolvimento do coronavírus, em Portugal.

“Olá, estás bom desde há bocado? É tão fixe conhecer imensas pessoas aqui”. Quis ter a ingenuidade e os sonhos da bombeira, pois provavelmente anestesiar-me-iam. Com as mãos a tremer, segurando o papel amachucado com as indicações que julguei serem imperativas, pedi ao bombeiro mais velho que me ajudasse. “Vou tentar que entre, mas, se isso não acontecer, colo o papel ao fundo da maca. Arranja-se uma forma”. E eu agradeci a simpatia, vendo a porta automática que separa a receção da sala do SU a abrir e fechar num ápice e a suplicar a alguma entidade superior que a minha avó recuperasse magicamente e não tivesse de ser observada por um profissional de saúde. Afinal, havia pedido à minha mãe que não tomássemos esta decisão, pois a minha avó poderia morrer com coronavírus porque integra o denominado grupo de risco. “Mas pode morrer com outra coisa e nós não somos médicas”. Por vezes, quando estamos imersos numa situação de prestação de cuidados a outra pessoa – neste caso, refiro-me especificamente aos cuidadores informais –, a realidade começa a distorcer-se aqui e acolá e chegamos a ter algo que se assemelha a alucinações. Quase como se, mesmo sem um certificado de habilitações dos cursos de Enfermagem ou Medicina, achássemos que somos capazes de resolver os problemas das pessoas por quem zelamos. Uma transformação do Complexo de Deus em Complexo dos Cuidados de Saúde. Tal não acontece deliberadamente, mas sim por excesso de preocupação.

Entre as 19h e as quase 3h (recorri às mensagens que troquei com a minha mãe, que se encontrava no exterior do edifício, para apontar as horas com exatidão), somente uma enfermeira se aproximou da minha avó para lhe medir os níveis de tensão arterial. A máquina apitou variadas vezes até um enfermeiro a desligar da corrente e deslizá-la pelo pavimento até outro paciente. Observei as olheiras da enfermeira, que manuseava sacos de soro a uns vinte passos de distância, na sala de enfermagem, e anotei os valores no bloco de notas do telemóvel. Nestas quase oito horas, ocorreram episódios que considero, no mínimo, caricatos. Naquela sala despojada de afetos ou cor, em que médicos, enfermeiros e auxiliares tentam injetar doses industriais de familiaridade com esforço hercúleo, as macas estão sempre encostadas a algo. A armários de um azul pálido frio, a paredes brancas ou umas às outras. Quase como se as próprias não tivessem força suficiente para sustentar os doentes. À minha avó, calhou a correnteza dos armários, onde – daquilo que me recordo – se viam apenas seringas, carregadores de telemóvel e uma impressora.

No extremo do lado esquerdo, a senhora Ana (nome fictício) que sofrera um AVC chorava, pedia que a levassem à casa de banho e recebia sempre a mesma resposta “Não pode ser, tem de ficar quieta, corre o risco de ter outro AVC”. Não suportando mais aquele massacre, ainda que tenha sido fruto das circunstâncias precárias em que os profissionais trabalham, puxou as cuecas brancas com flores verdes para baixo e urinou na cama. “Que coisa tão linda, agora vou ficar aqui toda mijada por causa deles”. Queixando-se de frio, fui até junto dela e tapei-a com o cobertor com o nome do hospital debruado. “Agora já não tenho frio, mas obrigada”. A seu lado, um senhor fazia o mesmo pedido, reclamando “Já vou, já vou, e nunca vem ninguém” (realço que “Já vou” era a resposta que um enfermeiro lhe deu durante algumas horas, enquanto se desdobrava para mudar os pensos de uns, medir o nível de glicemia de outra ou verificar a fralda de outros) e acabou por baixar a grade da maca autonomamente e dirigir-se à casa de banho. No lado direito, o senhor Manuel (nome fictício) – uma pessoa a quem, na gíria, podemos chamar um osso duro de roer – soltou um sincero “Vai para o caralho” ao enfermeiro que não teve outra hipótese senão fazer-lhe a colheita de sangue enquanto tentava dormir. O suspiro do jovem transmitia aquilo que as palavras não conseguiam: somente queria ajudar. A minha avó ao centro e, de seguida, um senhor que vivia numa casa de repouso precisamente em Paço de Arcos e que, com as lentes “fundo de garrafa” dos óculos embaciadas pelas lágrimas e imobilizado, dizia “Eu não sou maluco, tirem-me daqui”. Por aquilo que ouvi da conversa breve das enfermeiras, que se elucidam sobre os processos dos doentes quando existem mudanças de turno, era autónomo e começara a apresentar comportamentos irracionais e violentos há cerca de dois dias. No extremo do lado direito, a senhora Joaquina (nome fictício) que, com uma pancreatite grave, pediu-me duas vezes que contactasse o filho que aguardava novidades, no exterior, há dez horas. À frente da minha avó, e antes de receber alta, a senhora Joana (nome fictício), com cerca de sessenta anos, o cabelo branco com corte Bob muito aprumado e uma indumentária em cores neutras que conjugavam demasiado bem naquele ambiente deprimente. Estava a almoçar com o marido em Sesimbra quando se apercebeu de que perdia progressivamente a força e estaria perto de desmaiar. 

Os doentes que rodeavam a minha avó receberam a tão desejada alta hospitalar ou começaram a adormecer (ou, a bem dizer, uns fizeram-no de forma natural e alguns tiveram de tomar medicação porque não sossegavam). Suja e com os intestinos a emitirem sons preocupantes, a minha avó agarrava-me nos dedos com a mão esquerda e tentava tirar a fralda com a direita. O resultado não foi bonito. Dirigindo-me a uma médica que se encontrava a teclar, sentada num banco alto cor de laranja, disse “Boa noite, doutora, pode ajudar-me? A minha avó fez diarreia” e, com os olhos arregalados e quase indignada, a médica respondeu-me “Desculpe, mas não a posso ajudar”. Encolhi os ombros, mas posteriormente questionei: será que alguém a ajuda também? Com um braço, impedi que a minha avó retirasse a máscara da cara e, com o outro, limpei-a com toalhitas que havia levado. De cinco em cinco minutos, uma jovem empurrava a tia, na cadeira de rodas, até à sala e saíam. Nunca obtinham uma resposta e estavam à espera há 13 horas. Quando a idosa foi observada, a rapariga explicou-lhe que iria a casa rapidamente comer e voltaria num instante. “Vais comer ou vais abandonar-me? Tu não me deixes aqui sozinha!” mas, com o amor visível nos movimentos e na apreensão que lhe toldava a voz, prometeu que regressaria. E assim foi.

O tempo passava e continuava sem saber que problema estava a debilitar ainda mais a minha avó. Observei uma médica que estava sentada a uma das secretárias pequenas, com uma bata azul bebé, o cabelo preso com um elástico rosa e a sorrir enquanto olhava para o telemóvel com uma capa de brilhantes. “Boa noite, doutora, desculpe incomodá-la, mas sabe se falta muito para que as pessoas com pulseiras verdes sejam atendidas?”. Achei que a minha pergunta era, mais do que inofensiva, absolutamente justificável. “Você nem sequer devia estar aqui, portanto, veja lá se para de pedir coisas”. A resposta atingiu-me como uma bala, mas engoli em seco, pensando naquilo que a mulher já vivera e desculpando-a através da criação de cenários hipotéticos, e caminhei até junto da minha avó que, na minha ausência de segundos, conseguira tirar a máscara da cara. E se, com a dormência que começava a sentir nos braços, deixasse de ser capaz de a proteger do coronavírus? E se, naqueles ínfimos momentos, ficasse infetada por minha causa? Consolei-me com o célebre pensamento “fazem aquilo que podem com aquilo que têm” e esperei. A minha avó esticava o braço direito em direção ao tecto e soltava expressões como “É agora” às quais tentava atribuir um significado. Na minha mente, perguntava-me se seria finalmente atendida ou anunciava a morte. Fiquei em pânico até recordar-me de que as funções cognitivas dela se encontram extremamente comprometidas e é pouco provável que ainda consiga elaborar raciocínios tão complexos. Afinal, na fase avançada da maldita Alzheimer, e como se pode ler no site oficial da Alzheimer Portugal, “algumas capacidades permanecem, embora muitas se percam à medida que a Demência progride. A pessoa mantém os sentidos do tato e audição e a capacidade de responder a emoções”. Naquela madrugada, a minha avó manifestou o poder da vertente emocional enquanto segurava nas minhas mãos e, por vezes, acariciava os meus dedos como antigamente. E se aquela fosse a última memória que guardaria da existência da minha avó? E se aquele fosse o princípio do fim?

Perscrutando a sala de uma ponta à outra, perto das 3h, aproximei-me da secretária da doutora Mariana (nome fictício) e perguntei se a minha avó seria atendida brevemente. “Já ia chegar lá” foi a resposta imediata e pediu que me sentasse. A desidratação tinha de ser investigada. Do outro lado do SU, com a sala de enfermagem a ocultar o panorama que poderia ter caso o meu campo de visão estivesse totalmente desimpedido, eram emitidos grunhidos. Viscerais, de quem sofre. Em sobressalto, tentei focar-me de novo na minha avó, cujo braço esquerdo segurava para que a médica conseguisse fazer a colheita de sangue numa artéria do pulso “para medir os iões”. Quando a punção foi feita com sabedoria, a minha avó inclinou-se subitamente, fez um esgar de dor e repeti “Minha querida, está tudo bem, já vai passar”. Mais tarde, através da consulta online da versão portuguesa do Merck Manual of Diagnosis and Therapy, percebi que havia sido submetida a uma gasometria cujo objetivo principal é a medição dos “níveis de oxigénio e dióxido de carbono no sangue arterial” e também “determina a acidez (pH) do sangue”.

Seguia-se um pesadelo intitulado de cateterismo vesical intermitente limpo. À época, tratei-o de modo informal: “Senhora enfermeira, vamos ter de esvaziar a bexiga à minha avó?”. Enquanto empurrava a maca na direção da sala de enfermagem, com a profissional de saúde morena e visivelmente cansada (que havia realizado a medição da tensão arterial algum tempo antes) a pedir-me auxílio, percebi que estava a ter oportunidade de aprender mais. Ou, como diria um auxiliar de barba mal aparada e sobrancelhas grossas que gritara comigo horas antes, “ver estas coisas vai fazer-lhe mal”. Pensei que, dificilmente, algum procedimento médico seria mais traumático do que assistir à degradação diária da minha avó desde 2015 e realizar um luto moroso. Todavia, quando tive de lhe afastar as pernas para que o cateter fosse inserido, e vi a urina viajar diretamente até ao frasco transparente, compreendi que ainda não tinha visto tudo. Nunca temos o conhecimento absoluto, mas, na minha inocência, achava-me perita em determinadas questões médicas pela experiência adquirida como cuidadora informal. Estava enganada.

E esse engano funcionou como mecanismo de alerta. Enquanto esperava que os resultados das análises chegassem, pedi a uma auxiliar que mudasse a fralda à minha avó. Estou habituada a fazê-lo, mas não com a mesma deitada. Tenho medo de a magoar. A rapariga pegou na maca, empurrou-a até à sala de enfermagem onde eu havia tido um papel ativo minutos antes e, passivamente, ouvi-a gritar “Não tire a máscara. Não me está a ouvir? Está num hospital!” e, aumentando o tom de voz gradualmente: “Está a ouvir-me?”. Corri, afastei a cortina e gritei “Não entendeu que a minha avó tem Alzheimer?”. Limitou-se a responder: “Eu sei, por isso é que falei mais alto”. Nunca havia assistido a uma comparação da demência com a surdez. Mas aquela ignorância seria, certamente, passageira: o cansaço toldava-lhe o raciocínio. Alguém – não sei quem, estava demasiado revoltada – fechou a cortina e fiquei parada junto ao lugar em que a maca da minha avó havia sido instalada pelas 19h. Depois dos exames invasivos, pedi uma cadeira – fi-lo com receio de ser repreendida outra vez, sentindo-me culpada por não aguentar mais do que nove horas a pé numa instituição pública –, sentei-me junto da maca da minha avó e, ao telemóvel, percorri os parágrafos de variadas notícias que havia lido antes. Doença de Alzheimer em tempos de Covid-19: Um assunto que é de todos, Doente com Alzheimer desaparece após ter alta do Hospital de Cascais, Encontrada morta mulher com Alzheimer que desapareceu após alta do hospital de Cascais, Idoso com Alzheimer que desapareceu do Hospital de Gaia foi encontrado bem. A leitura aliada à sede, à fome, à bexiga cheia e às dores nas pernas surtiu efeito em mim como se tivesse de me punir por ter concordado com a minha mãe naquilo que diz respeito ao transporte da minha avó para o hospital mas, por outro lado, quisesse certificar-me dos perigos da permanência desta naquele centro hospitalar e ter “cartas na manga” para confrontá-la caso o desfecho fosse trágico. Misery likes company e, nas minhas horas de agonia, obedeci à expressão de modo cego.

Estava a amanhecer e a minha avó não repousava. Pedi à enfermeira amorosa mas estafada que lhe desse a medicação para dormir. Entregou-me um copo de plástico branco com água e uma Quetiapina. Antes de a recordar que é impossível dar medicamentos sólidos a uma pessoa cuja deglutição está comprometida e pedir que triturasse o comprimido, afirmei “Desculpe, mas não sei se isto vai funcionar. É que a minha avó só dorme se tomar uma Quetiapina e um Lorenin. Juntos. Individualmente, não surtem efeito”. Esforçando-se, pediu que falasse com a médica porque a medicação habitual tem de ser substituída pela medicação prescrita no hospital. Não me lembro das palavras iniciais do discurso da médica porque a minha atenção dividia-se entre a minha avó que, cerca de três ou quatro metros atrás, puxava ferozmente os elásticos da máscara, e as informações transmitidas. O Lorenin não seria dado para que não ficasse prostrada e apreendi os seguintes dados: creatinina elevada indicadora do comprometimento da função renal (nas minhas pesquisas posteriores, descobri que o valor normal situa-se entre 0,6 e os 1,1mg/dL para mulheres), desidratação grave provocada pela diarreia aguda, necessidade de observação por mais 24 horas.

“Pode ir a casa. Vá descansar e volte. A sua avó fica bem, a dormir” repetiram os enfermeiros e a médica. Com a Quetiapina triturada dentro de água e a seringa de 5ml que havia pedido prontas, abri ligeiramente a boca da minha avó e esperei que repousasse. Deixei uma mala com documentação importante, um suplemento Fortimel, fraldas e medicamentos debaixo da maca e prometi voltar. Mas quebrei a promessa porque, quando o turno de profissionais mudou, fui impedida de regressar ao SU. “Já lhe disse, isso é impossível, nem sei como é que esteve toda a noite com a sua avó” dizia a funcionária do guichet da receção, com uma voz desnecessariamente esganiçada, e desligava o microfone cada vez que eu falava. Ou tentava, porque o desprendimento dela (não gosto de fazer juízos de valor, todavia, mais uma vez, quero acreditar que este tipo de atitudes integra um leque de anormalidades do comportamento humano geradas pelos tempos nada normais que vivemos) misturado com o sabor amargo da proibição sobrepunham-se à minha capacidade de compreensão e à manutenção da boa educação. A chorar, ciente de que me tinha sido concedido um privilégio, mas desgostosa por ter visto as expectativas criadas pela equipa da manhã caírem por terra, saí do edifício. A minha mãe pegou no meu braço e encaminhámo-nos apressadamente para o guichet e exigimos ter informações acerca do estado de saúde da minha avó. “Já disse que não há nada a fazer. Têm de telefonar” e assumi a minha autoridade: “Se não me disser como está a minha avó, faço reclamação” e com um sorriso amarelo desafiante e os olhos contraídos, a senhora proferiu as seguintes palavras: “Faça, faça, então faça”. Não fiz porque me obriguei a refletir acerca das condições laborais dos profissionais de saúde e demais funcionários daquele hospital. A única coisa que me deixou feliz foi ter coragem para dizer “Não quero ir ver a minha avó porque sim. Quero ir vê-la porque a cognição está afetadíssima, não sabe dizer se lhe fazem bem ou mal, não lhe posso telefonar como os outros familiares fazem com os pacientes lúcidos e pode morrer de desgosto”. A resposta chegou por meio do telefonema para um dos médicos que estava de serviço e que apareceu três horas depois, porém, tranquilizou-me dizendo “a função renal está má, mas a recuperação está a ser positiva”. Derramei mais lágrimas gordas e, secretamente, depositei toda a minha esperança na única pessoa que vira, nas últimas horas, que poderia servir de ponte entre mim e a minha avó.

Não posso esquecer a enfermeira-chefe – não é necessário mencionar o nome, disse-lhe que escreveria sobre ela – que me encorajou com a sua doçura, imprimindo cópias de análises e ecografias para me auxiliar, telefonando para a instituição hospitalar para a qual a minha avó seria transferida implorando que lhe facultassem os números das linhas diretas dos médicos e dos enfermeiros para que o meu coração ficasse um pouco menos dorido. Ser-lhe-ei eternamente grata pela seguinte frase: “Há dias em que somos bons. Noutros, somos menos bons ou até maus. Mas, em todos, sem exceção, queremos salvar vidas”.

Já junto da parede da entrada, uma senhora com um rabo de cavalo quase desfeito, uma t-shirt verde da Adidas inapropriada para a temperatura agreste que se fazia sentir e o sofrimento estampado na cara, contorcia-se sentada numa cadeira de rodas. “Esta perna vai matar-me. Ninguém imagina as dores que eu tenho”. Pois não, tinha uma pulseira verde no pulso. Atrás dela, uma jovem ucraniana ou russa, com uma barriga proeminente – grávida de quatro ou cinco meses, diria – caminhava de um lado para o outro e afagava a barriga adornada com uma blusa de alças azul clara enquanto respirava com dificuldade. Quando tentava comunicar com o pequeno ser através das mãos, via-lhe a pulseira verde prestes a cair do pulso magro. No fim da fila, um idoso pálido e a parecer mais morto do que vivo, levantava-se de uma cadeira de rodas e sentava-se. Este conjunto de movimentos repetia-se e o senhor não expressava aquilo que sentia. Limitava-se a tossir ininterruptamente. Quando tirou o boné com um padrão axadrezado da cabeça rala, revelou-se a pulseira verde no braço escanzelado. Encostado à máquina de bebidas e snacks, não parando de tentar movimentar a cadeira de rodas, um homem moreno na casa dos 40 anos deixava no ar um cheiro nauseabundo. Não lhe vi a cor da pulseira, mas talvez fosse da cor da esperança que é destruída pelo caoticismo, naquele hospital – e em tantos outros -, do maldito vírus que nos domina. Em tempos de pandemia, a pulseira verde predomina e é senhora do/no esquecimento: dos doentes com Alzheimer, dos doentes que padecem de outras patologias e, acima de tudo, demonstrativa da rígida e pouco gloriosa conjuntura que os profissionais de saúde enfrentam 24 após 24 horas.