Diário de um infetado, num mundo kafkiano

Se conseguirem gerir a doença COVID, não liguem para ninguém do sistema de saúde, nem atendam nenhuma chamada. Quer seja de médicos, enfermeiros, administrativos, apoio social, psicólogos, polícia, autoridade de saúde, entre outros. Terão uma estadia muito mais tranquila, mais zen, menos angustiosa e menos stress . Mais saúde portanto. “Ganha saúde se não ligar…

Dia 1 do isolamento

Sou contactado pela senhora da autoridade de saúde. Más noticias, isolamento para toda  a família. Tom firme, discurso treinado. A senhora enfermeira era decidida e determinada. A autoridade decreta, um no quarto, os três pela casa. De preferência cada um no seu quarto.

-“Então é isto? Pergunto? “. “Sim, vai ser contactado pelos médicos que o vão seguir diariamente.”

 

Dia 2

Em casa, os miúdos não compreendem porque não estreiam o novo ano letivo, revoltam-se, motim à vista… testaram negativo. Não querem ficar em casa.

Liga o primeiro médico:” – sente-se bem? “.“Sim já não tenho febre. Estou bem. Já agora, onde posso obter o código da Stayaway Covid? “ Hummm…não sei, sei que é uma coisa nova, mas mais nada… E ….então continuação, as melhoras…”. “Obrigado, com licença.”

 

Dia 3

Depressão, discussão, anarquia, negação…

Liga-me a senhora da assistência domiciliária:“-Precisa de apoio para ir buscar as compras?”,  “Pois, bem pensado, como é que vamos fazer compras sem sair de casa?”,” O senhor não está abrangido pelos apoios. Ligue para o continente online!”.

-“E que tal alguém que ligue aos miúdos para se acalmaram?” Estava mesmo fraco com este corona em mim…

-“Claro, mandamos aí uma brigada da proteção civil, um psicólogo” e mais o diabo a quatro. Pensei eu para mim, queres ver que vão mandar os Village People?

-“E ficamos à porta, com máscara, mas fazemos-lhes uma evangelização, que não vão mais pensar em sair de casa. “

-“Não, obrigado eu trato. Mas e apoio psicológico que tal? Não está fácil isto…”

– “Sim sem problema, vamos falar com a junta de freguesia e a psicóloga vai contactá-lo.”

Entretanto, lembrei-me, epá, ninguém manda os certificados de isolamento? Como justificamos as ausências? Ao trabalho. À escola?

Alguém em casa diz, isto agora é tudo automático, há de aparecer por sms ou mail . É a digitalização da transição digital. Ah pois, claro, no mundo da uber e da glovo, só códigos, tudo fácil…

Mas já agora, onde anda o código da stayaway covid? Não devia ter aparecido no meu telemóvel? O dowload da app, esse já havia sido feito há muito…

 

Dia 4

Liga a psicóloga: -“Então o que precisa?”, “ Bom, precisava que tivesse uma conversinha para alinhar a cabeça dos meus filhos. Isto aqui em casa está um pouco anárquico. E eu estou um pouco fatigado.”.”Com certeza, envie-me por favor um mail a dar o seu consentimento e nós ligamos-lhe.”. Assim se fez.

Mas, onde andava o raio do código da stayaway covid?

Um médico liga para o lote dos não infetados da casa. A mãe da casa fica a saber que afinal há um link com uma plataforma, prontamente ditada pelo médico, com carateres que nunca mais acabava. E os interessados têm de preencher e solicitar a emissão do certificado de isolamento profilático. Mas qual é o dia de início? Dia dos sintomas, início de isolamento, dia do teste ou dia do resultado? Bom há várias teorias em todo este SNS. Para todo o gosto.

Lembrei-me da senhora do dia 1, a enfermeira principal determinada. Porque não preencheu ela na plataforma? Enquanto falava, preencheria? Certo? E depois eu receberia esse certificado no mail. Só que não…não poderia ser assim tão simples. O sistema, o tal SNS, tinha que complicar.

Bom, vamos à plataforma preencher, que remédio! Bom aspeto, bom layout. Tudo preenchido. Tudo tratado. Mas, e confirmação para o mail? Nada? Não há? Estranho… Não estou habituado. Será que ficou tudo registado para os três? Não há forma de saber…

 

Dia 5

O médico para o infetado: – “Sente-se bem? Tem febre? “.”Agora só ausência do paladar.”. –“Precisa de mais alguma informação? “,”Por acaso sim. O código da staway covid. “.”Aah, pois, sei que isso é uma coisa nova.”.”Não é não. Olhe que não. O PM apresentou isso com pompa e circunstância aí há quatro semanas, ele e a ministra… Que era uma tecnologia assim e assado, que frito e cozido. Eu só queria cumprir o meu papel de cidadão infetado, percebe? Ajudar os outros a saber se estiveram próximos de mim. “.”Ah pois, deixe estar que eu vou tentar saber e amanhã já lhe digo.”.” A sério, consegue? Excelente.”. Nem podia esperar por ter finalmente o código para carregar na stayaway covid.

 

Dia 7

Liga a Polícia. Eh lá, o que é que eu fiz?

-“Caro senhor, temos aqui registado que está infetado. Como se sente, melhor?”.” Sim, obrigado.”.” Então votos de rápida recuperação. “

Então pensei, muito bem, bem melhor do que dizer: Estamos de olho em ti, não te atrevas a sair de casa, senão vais direto para o xilindró…

Depois liga a médica:-“ Já tenho o seu código.”.”Excelentes notícias. “.”Vou ditá-lo. São só 20 algarismos ok?”

Pois, pensei eu, seria mais fácil recebê-lo por sms, não? Como acontece com as app deste século, certo? Mas muito obrigado, depois de sete dias, e várias tentativas, consegui cumprir o papel de cidadão que devia ter sido cumprido no primeiro dia. Bom, adiante…

 

Dia 8

E os certificados de isolamento?

-“ Isso é com o sns 24”- diz o médico que entretanto ligava.

Na casa, alguém liga ao sns 24. –“Isso penso que é com o centro de saúde”- dizem de lá. Aí vamos. Mas, ninguém atende no centro de saúde?  Normal, só o nome já assusta.

Entretanto aleluia, alguém atende. Claro, enfadada, enfadonha, nem boa tarde, nem bom dia…”Isso não é connosco, é com o delegado de saúde.”

-“E onde posso contactá-lo?”.” Na administração de saúde de Lisboa e Vale do Tejo.” Ah ok, muito obrigado.”

Lembro-me de enviar dois mail para os contactos que aparecem na plataforma, em caso de necessidade de ajuda…Um do sns 24, outro da tal ARSLVT.

 

Dia 10

Mais um médico a ligar.-“ Senhor doutor, sobre os certificados, sabe alguma coisa ?”.” Sim, é normal, estão dentro do prazo, ou seja, atrasados.”.” Mas, preciso deles para justificar…”.”Tem de esperar. Não há nada a fazer. “.

– “E um atestado para mim?”,” Para si só pode ser baixa.”.” Como assim? A Empresa paga-me o salário em teletrabalho. Não quero lesar o Estado.”.” Pois, mas… Bom se calhar posso passar um atestado sem data de fim.”.” Pois se calhar…pode…”.

 

Dia 12

Tudo mais oleado, tudo mais calmo. Liga o médico. –“Pode fazer o teste covid.”. Boas noticias, consegui menos um dia do que estava à espera…

-“Vai receber o código da receita e depois marca num laboratório. “.”Quais os laboratórios que posso marcar ?”.”  Não sei. Ligue para o sns 24.”. Assim fiz, mas também não sabe. Normal, o sns 24 nunca sabe…

E o código da receita será que vem mesmo?

Pergunto: -“E se testar positivo outra vez? Tem de ficar em casa mais 14 dias antes de fazer outro teste.”.” Ehla ! Não pode ser 8 dias ? “.”Não, mas quem me dera estar 14 dias em casa casa, dê-se por feliz.”.” O senhor doutor já esteve 14 dias fechado num quarto ?”.” Não. Então experimente primeiro…”, disse eu irritado.

 

Dia 13

Recebo o código da receita, este veio, vou à web, descubro um “drive through”, ligo para o número indicado (gerido pela Câmara Municipal de Lisboa ). Uma simpatia,  uma diligência total.-“ Sim queria fazer no centro de recolha do parque das nações.”.” Muito bem, agendado, vai ser logo o primeiro dia, às 9 horas.”.” Pode enviar-me o comprovativo? “.”Com certeza. Feito…

 

Dia 14

-“Papá, ligou uma psicóloga. Eu estava meia a dormir. Foste tu que pediste ?”.” Sim, filha, mas foi há duas semanas, naquela altura em que vocês estavam em estado de negação.”.” Pois, ela perguntou-me se estava tudo bem e eu disse que sim.”-  Apoio psicológico, check. Mas pensava eu,  mais uma etapa de utilidades inúteis deste sistema de saúde …

 

Dia 15

O dia do teste, aleluia…

Miúdos já na escola, certificados népia. E se o dia em que terminava o isolamento não era este?

Chegada ao centro de recolha covid PDN. Fila de 20 carros. Será que marcaram todos às 9h?

Ligo para o laboratório. –“Minha senhora, eu marquei para as 9h, estou à hora e tenho 20 carros à espera ?”.” Como se chama? “.”Fulano tal.”.” Não tenho nenhuma marcação no seu nome.”.” Mas eu tenho aqui o comprovativo. “Parêntesis: Mais uma inutilidade dos serviços públicos. Alguém quis criar um serviço municipal de contact center de laboratórios covid. Mas esta plataforma não liga, nem interliga com os contact center dos laboratórios. Mais uma app, mais uma plataforma sem saída…nem entrada ! Contado não se acredita…

Adiante, marcação feita na hora, zaragatoa na narina, siga a marinha…

Recebo resposta ao mail de ajuda da plataforma. Como se esperava. “Este serviço não tem nada a ver com a emissão de certificados de isolamento.”.” Nem perdi tempo a responder : “Então porque é que o mail figura nos contactos de ajuda ? Hellooo !!!”.

 

Dia 16

Fim do diário. Esperemos pelo  resultado.

Quarentena cumprida.

Saldo: 0 certificados, três  apps/plataformas falhadas, contacto inútil com mais de 20 funcionários públicos e profissionais de saúde.  E com mais de 5 instituições  em modo “loop”.

 

Conselho do dia :

Se conseguirem gerir a doença COVID, não liguem para ninguém do sistema de saúde, nem atendam nenhuma chamada. Quer seja de médicos, enfermeiros, administrativos, apoio social, psicólogos, polícia, autoridade de saúde, entre outros.

Terão uma estadia muito mais tranquila, mais zen, menos angustiosa e menos stress . Mais saúde portanto. “Ganha saúde se não ligar para o sistema de saúde“. Caso contrário, terão que passar por uma via sacra de: funcionários que não sabem do que falam, nem sabem responder, plataformas que não funcionam e não comunicam entre si, marcações de serviço sem sucesso, códigos perdidos em labirinto um  ping pong entre  de instituições e serviços.

Se não estiver a morrer, ou se achar que não vai morrer, em caso algum ligue para o serviço nacional de saúde.

Ah, já me esquecia, os certificados. Apresente os resultados dos testes no trabalho e na escola. Esqueça os certificados de isolamento profilático. Cheguei à conclusão de que não existem. São uma quimera, ninguém anda os viu. Estão enterrados na tal plataforma dos muitos carateres. E daí não saem.

 

Lisboa, 3 de Outubro do anus horribilis de 2020