Numa floresta de gestos…

Rudolf Hess chamou Carl ao seu gabinete e ordenou: ‘Nunca mais repita a atitude degradante de abraçar um negro’

James Cleveland Owens, ou JC Owens, ou ainda Jesse Owens, pode ter aporrinhado a paciência de Hitler, que não primava por ser substancial, até ao limite durante aquele Verão de 1936, mas verdadeiramente o único nazi que venceu foi mesmo o execrável Adolfo.

Nestas histórias de grandes vencedores costumam existir, por outro lado, vencidos notáveis. E no dia 4 de agosto, no início da prova de salto em comprimento, Jesse teve como adversário um tipo de estirpe que convém não deixar cair nas catacumbas do olvido: Carl Ludwig Long, que os amigos tratavam carinhosamente por Luz. Nascido em Leipzig, a 27 de abril de 1913, tinha apenas mais seis meses do que o fenómeno norte-americano e Hitler contava com ele para demonstrar a superioridade da raça ariana. Com ele e com muitos outros, claro está. Não se pode dizer que os seus arianos o tivessem deixado ficar mal já que a Alemanha arrebatou um total de 89 medalhas, bem acima das 56 dos Estados Unidos, sendo que desses dois números, o primeiro contava com 33 de ouro e o segundo com apenas 24.

Deixemos as estatísticas e regressemos a Carl. Licenciado em Direito, advogado de profissão, era tido como um jovem educadíssimo com o qual valia a pena trocar um valente shake-hands. Aliás, após o seu adversário ter atingido a marca de 8m08 no último salto, garantindo assim o ouro que estava a ser disputado milímetro a milímetro, Carl correu para abraçar Jess num gesto de desportivismo ímpar em toda a história das Olimpíadas. «Senti necessidade de o cumprimentar pelo esforço fantástico que tinha feito», declarou depois. A atitude redobrou de valor quando, vários anos mais tarde, Jesse Owens confessou publicamente que Carl Luz lhe tinha dado indicações concretas sobre a forma de aperfeiçoar o seu desempenho. «Carl corrigiu a forma como eu estava a abordar a tábua de salto. Foram as suas indicações que me permitiram desempatar a melhor marca que tínhamos feito até ao momento, de 7m87».

Jesse pode ter dado uma novidade a muita gente mais distante do que se passou nos bastidores do Jogos Olímpicos de Berlim, mas a verdade é que tanto o abraço vistoso e explícito de Carl como a forma como se relacionou com Owens durante a competição não tinham passado despercebidos aos canalhas da Gestapo.

Hitler fumegou pelos ouvidos por causa da vitória de um negro sobre a excelência rácica do seu alemão. Tinha decidido descer da tribuna presidencial para cumprimentar todos os alemães vencedores de medalhas de ouro, e a verdade é que veio à beira do relvado para dedicar um especial_Heil! ao lançador Hans Wölke antes de ser advertido pelo francês Henri, Conde de Baillet-Latour, presidente do Comité Olímpico, que essa atitude era demasiado grosseira para quem queria fazer de Berlim e da Alemanha o centro do desporto e do desportivismo mundial. O führer não voltou a repetir a brincadeira e, aliás, deixou de passar sequer cartão às provas que se seguiram não voltando a por os pés do Estádio Olímpico a partir daí. Mas que viu Jesse Owens ganhar o salto e comprimento, disso nem o próprio Owens teve dúvidas: «Foi um tipo muito simpático. Acenei-lhe cá de baixo e ele respondeu ao meu aceno».

Dirão alguns, para os quais os gestos assim meio afeminados de Adolfo, levantando a mãozinha numa espécie de adeus, eram tão frequentes que até podiam estar a servir para enxotar moscas, que o aceno do führer para Jesse pode ter sido abusivamente interpretado por este. É bem possível. O americano vivia dias felizes mas não tardou a vê-los azedados por não ter recebido um simples telegrama de felicitações por parte do presidente dos_Estados_Unidos, Franklin Delano Roosevelt. Não lhe perdoou: «Hitler não me ignorou como Roosevelt fez. E, foi com profunda tristeza que quando regressei a Nova Iorque e depois de ter sido aplaudido nas ruas, cheguei ao hotel que me tinham reservado e recebi a indicação que deveria utilizar as entradas e saídas reservadas para o pessoal de serviço. Não me queriam misturado com senhores».

Em Berlim, depois do final dos Jogos, o advogado Luz Long foi chamado ao gabinete do Stellvertreter des Führers, ou seja, do braço direito de Hitler, o adoidado Rudolf Hess. A mensagem que Hess lhe transmitiu foi curta e grossa: «Nunca mais volte a repetir a degradante atitude de abraçar um negro». Em seguida foi enviado para servir na Wehrmacht com o posto de Obergefreiter, correspondente a cabo ou pouco mais do que isso, e terminou os seus dias na Sicília, abatido a tiro na Batalha de San Pietro Infine, sendo enterrado no cemitério de Motta Sant’Anastasia. Uns meses antes enviara uma carta a Jesse Owens: «Se eu não voltar da guerra, conta aos meus filhos como podíamos ter sido grandes amigos se tudo não passasse como passou». Em 1966, trinta anos após os Jogos de Berlim, Owens foi à Alemanha encontrar-se com Kai-Heinrich, o único filho de Luz que continuava vivo. Sobre o que conversaram é lá com eles.

afonso.melo@newsplex.pt