E se vier uma pandemia a sério?

Conheço homens e mulheres que desde Março quase não voltaram a sair de casa, não foram almoçar ou jantar a um restaurante, não foram a um espetáculo, não deram sequer uma volta na rua. Sei de pessoas apavoradas que não saem de frente do televisor a ver as notícias sobre a pandemia. Há pais e…

Marcelo Rebelo de Sousa fala demais, e por isso muito do que diz acaba por se perder. Mas um destes dias disse uma coisa em que devíamos meditar. Afirmou mais ou menos isto: «Não podemos querer medidas mais duras contra a pandemia e depois lamentarmos a queda da economia». Dito de outra forma: não podemos querer sol na eira e chuva no nabal. Ou apostamos tudo no combate à pandemia e fechamos os olhos à economia, ou valorizamos a economia e admitimos correr alguns riscos provocados pela pandemia.

O que não é possível é querer o melhor de dois mundos.

Foi este o dilema com que se viram confrontados todos os Governos, com uns a decretar medidas extremas, como o Governo chinês, e outros a desvalorizar a doença, como Trump ou Bolsonaro.

Desta forma, houve uma certa politização da covid-19. Grosso modo, criou-se a ideia de que os governos de esquerda eram ‘bons’, porque valorizavam a doença e tomavam medidas adequadas, e os de direita eram ‘maus’, porque, à força de quererem evitar a crise económica, desprezavam a vida das pessoas.

Acontece que uma análise mais fina às mortes em vários países desmente esta tese. Os EUA têm uma população de 335 milhões de habitantes e registaram até agora 213 mil mortes. A França tem uma população de 65 milhões e teve 33 mil mortos. A Itália tem 60 milhões e teve 36 mil mortos. A Espanha 49 milhões e 37 mil mortos. O Reino Unido 67 milhões e 44 mil mortos. E, finalmente, o Brasil, com 218 milhões e 151 mil óbitos.

Projetando o número de mortos para uma mesma base populacional, a quantos mortos corresponderia o número de óbitos registados até hoje em cada país se tivesse a mesma população dos EUA?

A França registaria 170 mil mortes; a Itália 203 mil; a Espanha 253 mil; a Inglaterra 220 mil; o Brasil 232 mil.

Concluímos, assim, que a Espanha está no topo da lista, seguindo-se o Brasil, a Inglaterra, os EUA, a Itália e, por último, a França. Ou seja, o pior registo é de um país com um governo de esquerda, seguindo-se três governos de direita, um tecnocrático e um de centro. E, surpreendentemente, os EUA estão a meio da tabela.

Acrescente-se que a Espanha tem também o pior registo no binómio mortes-recessão económica: tem o maior número de mortes por milhão de habitantes e regista a pior recessão dos países considerados (e mesmo de toda a União Europeia). Se a comunicação social fosse objetiva, estaria hoje a apontar o dedo a Pedro Sánchez e não a falar a toda a hora de Trump e Bolsonaro.

Reconheço que é dificílimo lidar politicamente com um problema como este. O próprio António Costa tem dito reiteradamente que não podemos voltar a um novo confinamento. E tem toda a razão. Não só por causa da economia, que é uma entidade abstrata para muita gente, mas também por causa das pessoas. Há já muita gente desempregada. Há muitas empresas e estabelecimentos que fecharam. Há famílias a passar fome. Há milhares de pessoas com depressões, tristes, desconsoladas, angustiadas, sem vontade de viver.

Vamos ter cada vez mais fome, pobreza, depressões, suicídios.

Conheço homens e mulheres que desde Março quase não voltaram a sair de casa, não foram almoçar ou jantar a um restaurante, não foram a um espetáculo, não deram sequer uma volta na rua. Sei de pessoas apavoradas que não saem de frente do televisor a ver as notícias sobre a pandemia. Há pais e mães que deixaram de ver os filhos, avós que deixaram de ver os netos. Ora, será isto viver?

Venho a escrever desde o princípio que temos de ser capazes de conviver com a pandemia. Há que tomar precauções, obviamente, mas a vida não pode ser interrompida. Não é fechando-nos em casa que resolveremos o problema. Até porque, quando voltarmos a sair à rua, quando tentarmos voltar à vida normal, o problema regressará. A sociedade não pode andar num carrossel: confina, desconfina, confina, desconfina…

Dizem alguns que terá de ser assim enquanto não houver vacina. Trata-se de uma ilusão. Por um lado, não sabemos quando virá a vacina. Recordo que a vacina contra a sida é investigada há décadas e ainda não foi descoberta. E, depois, antes que haja vacinas para toda a gente passará muito tempo.

Todos os anos por esta altura eu ia à farmácia perto de minha casa, dizia que era para me vacinar contra a gripe, o farmacêutico mandava-me entrar para um gabinete e vacinava-me na hora. Este ano tentei fazer o mesmo. Ora, quando lá cheguei, o farmacêutico disse-me que havia 700 pessoas à minha frente…

Finalmente, devemos ter em conta que uma vacina não acabará instantemente com a covid-19: há muito tempo que há vacina contra a gripe e a gripe não acabou…

Só há, pois, uma maneira de lidarmos com isto: aprendermos a conviver com o vírus. Até porque, com a globalização, as epidemias tenderão a ser cada vez mais frequentes – e algumas bem mais graves. Se, com um vírus relativamente benigno, com uma taxa de mortalidade baixa, com a maioria das pessoas infetadas assintomáticas, a vida parar, o que acontecerá se aí vier uma pandemia grave? Se vier um vírus verdadeiramente mortal? Trancamos os prédios com as pessoas lá dentro? A sociedade deixa de funcionar, suspendem-se os abastecimentos, as empresas fecham as portas e o dinheiro deixa de circular?

Repito: é preciso manter a cabeça fria e perceber que temos de conviver racionalmente com esta situação. Temos de nos ajustar à nova realidade – e não pensarmos que, fechando-nos em casa, resolveremos o problema.

Muita gente julga que a epidemia vai passar e daqui a uns meses tudo voltará ao normal.

Ora, temos de passar a ver a questão ao contrário: nada voltará ao normal e teremos de ser nós a mudar de hábitos.

Vamos ter de passar a viajar menos, a reunir menos, a consumir menos, a não frequentar tantos concertos e outros espetáculos de massas, etc..

Se não podes vencê-lo, adapta-te a ele – tem de ser o lema.