Covid-19 abre guerra entre Costa e Marcelo

Marcelo Rebelo de Sousa não quer mais atropelos à Constituição e já disse a António Costa que novas medidas restritivas de direitos fundamentais só com estado de emergência. Mas o PM quer evitá-lo a todo o custo. GNR e PSP provocam indignação em Belém e não só.

António Costa considera que o estado de emergência só deve ser declarado em último recurso e – tal como aconteceu em março – continua a defender que é possível adotar todo um conjunto de medidas restritivas indispensáveis para travar a propagação da covid-19 no país sem necessidade de desencadear de chegar àquele extremo. Mas Marcelo Rebelo de Sousa, tal como, aliás, já aconteceu em março, não está de acordo com o primeiro-ministro e líder do PS.

Como ficou bem patente com a resolução do Conselho de Ministros que decretou a proibição de circulação entre concelhos neste fim de semana.

O Presidente da República afirmou publicamente as suas reservas quanto à constitucionalidade da resolução – tal como o constitucionalista Jorge Miranda tinha dito ao SOL, na edição de sábado passado – e desautorizou o Governo e o diretor nacional da PSP, afirmando que a resolução, afinal, se tratava de uma «recomendação agravada, sem consequências» de penalização para os cidadãos e não de uma proibição efetiva, que seria inconstitucional.

O Presidente não quis hostilizar publicamente o Governo, mas também não deixou de vincar que a medida era abusiva e violadora da Lei Fundamental.

Mas Belém também não gostou que o comandante operacional da GNR, confrontado com a afirmação presidencial de que tal proibição não passava de uma «recomendação agravada», tenha vindo reafirmar que os militares da GNR e os agentes da PSP_são responsáveis por fazer cumprir a lei e seria isso que iriam fazer este fim de semana, ameaçando deter todos os cidadãos que cometerem o crime de prestar falsas declarações às auoridades ou desobedecerem às suas ordens. Dando seguimento ao discurso que o diretor nacional da PSP, Magina da Silva, já tinha adotado no início da semana, quando afirmou que a os agentes da Polícia não deixariam de agir repressivamente contra os «cidadãos que não querem aprender nem se deixam sensibilizar».

Sensível aos protestos de quem considera que a pandemia não pode justificar atropelos à Constituição e a derrogação de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos – até porque a Lei Fundamental prevê mecanismos de conformidade, como a declaração do Estado de Emergência –, Marcelo insistiu com António Costa para tentar um consenso político e social alargado no sentido de voltar a ser decretado o estado de emergência, por forma a poderem ser devidamente  enquadradas todas as medidas necessárias ao combate à pandemia.

Recorde-se que, em março, o estado de emergência foi decretadoquando havia pouco mais de 100 novos casos por dia e que o impacto das medidas restritivas adotadas – nomeadamente do confinamento – só se processou uma a duas semanas depois.

António Costa já na altura considerou precipitada a declaração do  estado de emergência, por considerar que o estado de calamidade é suficiente para sustentar todas as medidas restritivas necessárias.

A questão não divide apenas Belém e S. Bento. Entre os governantes que vão sentar-se à mesa do Conselho de Ministros na reunião extraordinária de hoje –  que fixará as novas regras anti-covid – as opiniões também são divergentes.

Se todos, incluindo Belém, consideram que há que tentar tudo para evitar a medida mais radical de um novo confinamento nacional, já quanto à necessidade de declaração do estado de emergência como forma de acautelar a necessidade de outras medidas restritivas dos direitos liberdade e garantias dos cidadãos não há um consenso alargado.

O problema é que os especialistas alertam para a necessidade de adoção de medidas no plano imediato, face ao crescente número de novos casos de infetados e ao agravamento da situação nos internamentos e em particular nos cuidados intensivos, que não se compadecem com mais esperas.

Por outro lado, patrões e sindicatos já alertaram o Governo para o problema das medidas restritivas, lembrando as consequências gravíssimas do confinamento decretado na primeira vaga da pandemia e avisando que as empresas e a economia não aguentarão um novo recolhimento obrigatório.

Posição que também foi partilhada pelos partidos recebidos ontem S. Bento. A opinião dominante é que o Conselho de Ministros de hoje deverá decretar medidas mais cirúrgicas e localizadas, por forma a minorar o mais possível as consequências para a economia. Ainda que não deixe de ser ponderada a declaração do estado de emergência – para enquadrar eventuais medidas de exceção – e se avance com a quase certa obrigatoriedade do teletrabalho sempre que este não for impossível e se admita o recolher obrigatório em novembro e um confinamento total no início de dezembro (ver pagínas seguintes).

 

Governo contesta providência

O Chega, que interpôs uma providência cautelar (ou melhor, uma ‘intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias’) contra a proibição da circulação entre concelhos neste fim de semana, e o PCP_– cujo secretário-geral, Jerónimo de Sousa, veio afirmar que «tem de se compatibilizar a luta contra a pandemia com a defesa dos direitos dos cidadãos» – foram os dois primeiros partidos a tomar posição pública contra uma medida que, como Jorge Miranda expressamente afirmou ao SOL na última edição, «é inconstitucional», porque só admissível em situações de estado de emergência ou de sítio.

A ação interposta pelo partido de André Ventura no Supremo Tribunal Administrativo (STA) não tem, porém, efeitos suspensivos, pelo que não produziu efeitos no primeiro dia em que a GNR e a PSP_(ontem) montaram inúmeras operações de fiscalização por todo o país em cumprimento da resolução do Conselho de Ministros. Ou seja, nem o Chega quis ficar com o ónus da livre circulação entre concelhos.

Como o_PSD, que, como referiu Rui Rio no final da reunião de ontem em S. Bento, preferiu remeter para o tribunal – e para a ‘providência cautelar’ interposta pelo Chega – uma decisão sobre a matéria, optando por colocar-se à margem deste debate sobre o respeito pelos direitos fundamentais dos cidadãos.

Na contestação à intimação (entregue ao final da tarde de ontem), o Governo alegou a «ilegitimidade ativa do requerente, a impossibilidade do pedido [por entender que o STA_não pode condenar o Conselho de Ministros a revogar uma regulamentação administrativa] e a impropriedade do meio processual» utilizado. E impugnou ainda a pretensão do Chega, defendendo que não existe «inconstitucionalidade orgânico-formal» da resolução, nem «inconstitucionalidade material», uma vez que, para o Executivo, não está em causa a derrogação de nenhum direito fundamental mas apenas a «suspensão temporária» do direito de circulação.