O carteiro que gostava de pêssegos

Com nome de fidalgo de Cervantes, Félix não resistiu ao chamado do pomar e interrompeu a maratona para roubar fruta.

Tinha nome de fidalgo de desafiar qualquer Cervantes: Félix de la Caridad Carvajal y Soto. Do quilé! Convenhamos. Não é de la Caridad Carvajal y Soto um badameco qualquer. E, no entanto, Félix nasceu na mais absoluta das pobrezas. A miséria do casebre onde viveu a maior parte da sua infância, em Santo Antonio de Los Baños, cerca de trinta quilómetros a sul de Havana, em Cuba, era de fazer inveja ao próprio Job das_Escrituras já depois deste ter sido vítima de_Satanás e ter perdido as suas sete mil ovelhas, três mil camelos, mil juntas de bois e quinhentas jumentas mais uma caterva de servos muito provavelmente da maior utilidade na lida de tanto gado.

Bem, deixemos Job em paz e vamos a Carvajal que cedo ganhou a alcunha de Andarín pelo seu vício de andar sempre a correr de um lado para o outro como se tivesse sido picado pelo bicho carpinteiro. Na tentativa de contribuir para o orçamento familiar, Félix tornou-se carteiro. Não restam dúvidas que se trata de uma profissão adequada para um bom andarilho a despeito dos sarilhos que os carregadores de sacos de cartas e de erros de ortografia costumam ter tanto com sopeiras como cães de guarda. Também fazia uns biscates como hombre anuncio: colava no peito e nas costas uns reclamos publicitários e desatava a cirandar espalhando a mensagem por todos aqueles que conseguiam pôr-lhe a vista em cima. É aqui que quero chegar: o inquieto indigente de nome aristocrático raramente tinha um tostão no bolso mas ninguém seria capaz de dizer que era um borra-botas

Félix viveu momentos alegres em Santo Antonio de Los Baños porque a alegria fazia parte da sua natureza meio selvagem. Mas nasceu no centro da capital cubana, no dia 18 de março de 1875 num edifício em ruínas na esquina do Melecón com a Calle Águila, no Barrio de Colón, nessa altura ainda Reino de Espanha, pelo que a referência a Cervantes deixa de ser menos deslocada do que possa ter parecido de início. A mãe chegou a vender maçãs para dar de comer aos filhos e parece que as roubava nos quintais dos vizinhos. Era um bom negócio: se não vendesse as maçãs, dava-as aos miúdos e resolvia a questão da única refeição do dia. Carvajal y Soto recebeu nome finório, mas assaltar pomares entrou-lhe no sangue que nada tinha de azul.

 

Teimoso como um muar, Félix enfiou na cabeça dura que o objetivo da sua vinda ao mundo tinha algo de divino. Fora feito por um Deus qualquer, com tempo suficiente para perdê-lo em excentricidades, para correr a maratona olímpica de St Louis dos Jogos de 1904. Desatou a correr, não em direção a St. Louis, obviamente, até porque tinha uma boa porção de Atlântico pelo caminho, mas pelas ruas de Havana exibindo um cartaz onde mendigava aos transeuntes os tostões que lhe serviriam para custear a viagem. Acreditem ou não, é facultativo, juntou o suficiente para se deslocar até Nova Orleães no meio de um autentico bacanal de bebida, jogo e mulheres. Habituado a meter a mão no bolso e a só tirar de lá cinco dedos, viu-se outra vez na penúria e tratou de fazer o que sempre fazia: foi a pé até St. Louis, calcorreando mais de mil quilómetros.

Félix de la Caridad Carvajal y Soto, com toda a sonoridade de cavalheiro andaluz, apresentou-se na linha de partida da maratona da II_Edição dos Jogos Olímpicos da_Era Moderna no dia 30 de agosto. Fazia um calor  de Porgy and Bess de George Gershwin, a despeito de Gershwin ter na altura apenas seis anos:_«Summertime, and the livin’ is easy/Fish are jumpin’ and the cotton is high/Oh, your daddy’s rich and your ma is good-lookin’/So hush little baby, Don’t you cry». Pobre Félix que nunca teve uma vida fácil.

De uma magreza extrema, com um metro e meio de altura e bigodes empinados como se estivessem presos por balões, trazia vestida uma camisa de mangas largas e umas calças compridos até aos pés, e calçava as suas botas preferidas, aquelas com que tinha iniciado a sua carreira como carteiro.

Sabe-se como o espírito humano tende a ser maldoso. Ouviram-se gargalhadas sonoras em redor de Andarín. E também houve quem se apiedasse do moço. Pelo menos ao ponto de lhe cortar as calças pela zona dos joelho e lhe emprestar um par de sapatilhas. Félix ouviu o tiro de partida e desatou a correr.

O percurso da maratona de St. Louis foi desenhado em ambiente campestre e Carvajal sentiu-se de regresso aos locais bucólicos da sua meninice em Santo_Antonio de Los Baños. Ao ladear um terreno de pessegueiros, não resistiu: apanhou uns poucos, sentou-se à sombra da árvore, e devoro-os num ápice. Afinal, por escassez de verbas, estava há quase 40 horas sem comer. Os pêssegos atacaram o estômago e os intestinos de Félix com violência. O resto do percurso foi feito aos bochechos com paragens frequentes para libertar a diarreia de que foi acometido. Apesar de tudo, cortou a meta em quarto lugar. Em Havana há uma placa em sua homenagem. Diz: «A Félix, o mais glorioso dos vencidos!»

afonso.melo@newsplex.pt