Massacre numa feira do livro em Cabul

Há muito que aprender é perigoso no Afeganistão. Quase 20 pessoas, sobretudo estudantes, foram massacradas hoje de manhã numa universidade. 

Durante cinco horas, a prestigiada Universidade de Cabul foi um cenário de horror, com explosões e tiroteios enquanto milhares de estudantes e professores tentavam escapar. Pelo menos 19 pessoas morreram e dezenas ficaram feridas na segunda-feira, quando três homens armados com pistolas e Kalashnikovs, um deles um bombista suicida, atacaram a abertura da feira do livro iraniana. O atentado repete o mesmo padrão dos últimos meses, numa altura em que os talibãs negoceiam um acordo de paz com os EUA: o alvo foram sobretudo civis ligados à comunidade xiita e os talibãs emitiram de imediato um comunicado negando responsabilidade pelo massacre. Se o padrão se mantiver, o ataque será eventualmente atribuído a grupos ligados ao Estado Islâmico, rivais dos talibãs, que tentam romper o processo de paz.

O drama dos estudantes impedidos de fugir da universidade, às 11h da manhã, em Cabul, após uma explosão no portão, foi transmitido em direto nas redes sociais por jovens desesperados, mantidos como reféns enquanto os colegas eram varridos com rajadas de metralhadora. Muitos tentaram esconder-se, outros escalaram os muros.

“Deus dê paciência, os meus colegas de turma foram martirizados e feridos à frente dos meus olhos e eu fui feito refém”, escreveu num post no Facebook Qassem Kohestani, estudante de Políticas Públicas, citado pelo Washington Post.

Nesse mesmo dia fora inaugurada a feira do livro iraniana na universidade, com dezenas de autores do país vizinho, maioritariamente xiita. “Os inimigos do Afeganistão, os inimigos da educação entraram na universidade”, avisou o ministro do Interior, Tariq Arian, à France-Presse. O terror só terminou após horas de tiroteio, com as forças especiais a tomar as instalações. Como tweetou um jornalista afegão, citado pela BBC, “livros, canetas e estudantes já não estão seguros”.

O ataque surgiu uma semana após um atentado suicida num centro de ensino em Dasht-e-Barchi, um bairro maioritariamente xiita de Cabul, matando 24 pessoas, boa parte delas adolescentes. O massacre foi reivindicado pelo Estado Islâmico, que já atacara uma maternidade no bairro com granadas e armas automáticas, matando profissionais de saúde, bebés e as suas famílias, em maio.

Contudo, apesar de o Estado Islâmico ser o principal suspeito do ataque à Universidade de Cabul, os talibãs sempre tiveram instituições de ensino como alvo. O grupo islâmico proíbe todo o tipo de música, televisão ou ensino considerado “ocidental”, sobretudo a mulheres. Uma das suas vítimas mais conhecidas foi Malala Yousafzai, baleada a caminho da escola pelos talibãs do Paquistão, em 2012, que viria a tornar-se a mais jovem galardoada com o Nobel da Paz. 

 

Guerra sem fim Cabul, lar de uma significativa minoria xiita, tem sofrido o grosso dos atentados contra civis, enquanto os combates se intensificam no sul do país, na província de Helmand.

Só nas últimas semanas, uma ofensiva talibã desalojou dezenas de milhares de pessoas na província, com o Governo afegão a retaliar, apoiado por bombardeamentos aéreos norte-americanos. Enquanto ambos os lados enviam tropas para a frente de batalha, os seus representantes sentam-se à mesa de negociações no Catar, em Doha. Contudo, tudo indica que o processo continua bloqueado, à espera do que sairá das eleições dos EUA, esta terça-feira.

Por um lado, o Presidente afegão, Ashraf Ghani, pode muito bem estar à espera de que a eleição do candidato democrata, Joe Biden, constitua um restart das negociações, notam alguns analistas – está em cima da mesa um Governo de transição após a retirada norte-americana, que o deixaria fora do poder. Já os talibãs estão a aproveitar a distração dos EUA para capturar o máximo de território possível, fortalecendo a sua mão no regresso às negociações.