Estados Unidos. Umas eleições repletas de medo e fúria

Lojistas tapam vitrinas por todo o país, receando motins, e analistas temem gente armada em locais de voto. A covid-19 continua a marcar a campanha, com surtos nos swing states.

Numa das mais polarizadas eleições da história recente dos Estados Unidos, com receios de violência durante e após a ida às urnas, cada vez mais estabelecimentos se preparam para o que aí vem como quem se prepara para uma tempestade. Em Soho ou na luxuosa Fifth Avenue, em Nova Iorque, lojas de luxo como a Tiffany ou a Dior precaveram-se tapando as vitrinas com tábuas, recordando os motins no verão, após o homicídio de George Floyd por um agente da polícia. O cenário foi semelhante noutras cidades, como Washington, Chicago, São Francisco e Boston, avançou a New York Magazine, com as autoridades receosas após uma maré de ameaças online por ativistas de esquerda e direita. Ainda este domingo, no Texas, uma caravana de apoiantes de Donald Trump, muitos deles armados, tentaram atirar para fora da estrada um autocarro da campanha de Joe Biden, denunciaram os democratas. Até a segurança dos locais de voto está em questão, com receios que apareçam milícias ou civis armados, após o Presidente Donald Trump apelar aos seus apoiantes para “vigiar” as urnas. 

“As linhas que idealmente distinguem pessoal oficial das forças de segurança da ação de vigilantes estão a ser esborratadas”, avisa ao i Mark Krasovic, professor de Estudos Americanos na Universidade de Rutgers, que tem escrito extensivamente sobre a violência nas eleições norte-americanas.

“Veja o que aconteceu em Kenosha com os Patriot Prayer e o Kyle Rittenhouse, por exemplo”, continua Krasovic. Referia-se à violência que se seguiu aos disparos sobre Jacob Blake, um homem negro baleado sete vezes nas costas pela polícia, com os três filhos no carro. No turbilhão e protestos massivos que se seguiram, o jovem Kyle Rittenhouse, de 17 anos, respondeu aos apelos para proteger as lojas de Kenosha, no estado vizinho, apareceu armado com uma espingarda semiautomática e matou dois manifestantes; dias depois, Michael Reinoehl, de 48 anos, que se afirmava como uma espécie de segurança antifascista, matou a tiro um membro do grupo de direita Patriot Prayer.

“Neste contexto, os apelos do Presidente e de outros por um ‘exército’ de vigias das urnas é alarmante. Se as pessoas escutarem os apelos do Presidente, há um potencial real de confusão e violência nos locais de voto”, assegura Krasovic. “Há precedentes para isto na história americana, certamente nas décadas seguintes à Guerra Civil”, acrescentou.

“Um exemplo mais recente – que está na memória de muitos americanos, incluindo dirigentes do Partido Republicano – seria a autoproclamada Task Force para a Segurança Nacional dos Votos. Polícias fora de serviço de Nova Jersey foram contratados por republicanos para patrulhar locais de voto durante as eleições para governador, em 1981. O propósito expresso foi prevenir fraude. Na realidade, as patrulhas interferiram com o direito de voto através de intimidação e outras formas de supressão eleitoral”, lembra Krasovic. “Um tema comum desta chamada ‘segurança do voto’ era visar eleitores negros”.

Entretanto, com o aumento das tensões raciais dos EUA, o medo de novos motins aumenta. “Mais vale prevenir que remediar”, resumiu o presidente da associação da Fifth Avenue, Jerome Barth, à CBS, quando cada vez mais estabelecimentos fechavam portas, numa altura em que já sofriam perdas económicas devido à pandemia. “Uma série de lojas também tomaram medidas de precaução adicionais, como contratar segurança privada”, acrescentou Barth. 

Os últimos dias de campanha não ajudam a acalmar os receios de violência. Mal se soube que o FBI estava a investigar o assédio à campanha de Biden no Texas, que levou ao encerramento de um dos seus eventos, o Presidente tweetou que a agência devia era investigar os “terroristas, anarquistas e agitadores dos antifa, que andam por aí a queimar cidades governadas por democratas” e que os seus apoiantes “não fizeram nada de mal”. Trump até partilhou um vídeo da caravana acusada de tentar fazer um autocarro de Biden despistar-se, ao som de uma música que dizia “bem-vindos ao reino vermelho” (referência à cor republicana). “Estavam a proteger o autocarro de Biden, porque são simpáticos”, explicou Trump, sorridente, num comício no Michigan, no domingo.

 

Últimos fôlegos Contudo, apesar de todos os receios quanto ao dia 3 de novembro, na prática boa parte da eleição já ocorreu, sem incidentes de maior. Em tempo de pandemia, mais de 95 milhões de eleitores norte-americanos votaram antecipadamente, em pessoa ou por correio, o equivalente a mais de dois terços dos que participaram nas eleições de 2016. Sem que o saibamos, o resultado da eleição pode já estar decidido em muitos estados, mas nem Trump nem Biden desistiram de conquistar alguns votos de última hora.

Na segunda-feira, nos últimos fôlegos da campanha, Trump planeava comícios em quatro estados, a Pensilvânia, Carolina do Norte, Wisconsin e Michigan, todos eles swing states, ou estados indecisos, onde está ligeiramente atrás nas sondagens. Já os democratas, após uma pequena incursão no Ohio, onde Trump lidera as sondagens, focaram-se na Pensilvânia, o segundo maior swing state, cuja perda tornaria quase impossível a reeleição do Presidente.

Por trás da endurance de Trump, está em certa parte a necessidade. Nos últimos meses, foi ultrapassado largamente em doações pela campanha de Biden, que inundou a televisão e rádio dos swing states com anúncios, obrigando o Presidente a depender cada vez mais dos seus famosos comícios, repletos com multidões de apoiantes exultantes.

Trump parte ainda com a desvantagem de ter uma baixa taxa de aprovação da sua gestão da pandemia de covid-19, numa altura em que muitos dos swing states sofrem picos de contágios e mortes, como vemos na Florida, Michigan, Carolina do Norte, Ohio, Wisconsin e Texas e Pensilvânia. Por um lado, as sondagens mostram que ter a covid-19 como prioridade é dos fatores que mais se correlaciona com intenção de votar em Biden; por outro, o medo de sair à rua para votar pode jogar contra os democratas no dia das eleições, defendeu um dos estrategas da campanha Trump, Jason Miller, à ABC. “Bem, e adivinhem o que vai acontecer? Os apoiantes do Presidente Trump vão aparecer na terça-feira. Nada os vai impedir”.