A estranha construção do Jesus republicano

O Jesus republicano é branco, pró-vida, fã de armas e da pena de morte, odeia impostos e homossexuais. E nasceu de interpretações descontextualizadas, defende Tony Keddie no seu livro Republican Jesus.

Quando olhamos para um comício de Donald Trump, para os cânticos quase ritualísticos, para multidões que percorrem quilómetros e ignoram a praga da covid-19 para o escutar, exultantes, é difícil não notar uma certa qualidade messiânica na coisa. É um messias improvável, antigo dono de casinos, casado três vezes e conhecido pela promiscuidade, mas há antecedentes, argumentariam alguns desses fiéis – comparam-no frequentemente com Ciro o Grande, imperador da Pérsia, pagão, ungido por Deus para libertar o povo escolhido do cativeiro na Babilónia. Contudo, este Ciro dos tempos modernos não está sozinho. Caminha ao seu lado uma personagem omnipresente e omnipotente na política americana, o Jesus republicano, cuja história é estudada em detalhe no livro de Tony Keddie, Republican Jesus: How the Right Has Rewritten the Gospels (University of California Press), publicado este mês.

Branco, ardentemente pró-vida, fã de armas e da pena de morte, o Jesus republicano focou-se em pregar a oposição a homossexuais, impostos, aceitando cuidados de saúde gratuitos apenas sob a forma de milagres, regressando a Israel após um breve período como imigrante legal no Egito. Se praticamente todos os conceitos citados lhe soam a anacronismos, corte e colagem de passagens avulsas dos evangelhos, é porque é isso mesmo que são, garante Keddie. «Não é só religião, é religião mais política e economia. É aquilo que poderíamos descrever como nacionalismo-cristão».

Uma mistura poderosa, que será chave nas eleições de 3 de novembro, mobilizando a direita conservadora americana. Particularmente evangélicos brancos, uma demografia conhecida pela baixa taxa de abstenção, que compõe 15% apenas da população mas 26% dos eleitores de 2016. 79% deles votaram em Trump, tornando Jesus republicano no seu mais importante apoio eleitoral.

Para Keddie, originário de Filadélfia, a urgência em escrever sobre o tema surgiu quando dava aulas de História e Literatura do Cristianismo Primitivo, na Universidade da Colúmbia Britânica, em Vancouver. Um aluno canadiano, intrigado, perguntou porque é que os americanos que mais parecem adorar Jesus são os que o usam de uma forma mais odiosa. Na altura Keddie não soube responder, hoje tem mais algumas luzes sobre o assunto.

«Houve um século de um desenvolvimento gradual de interpretações de Jesus por conservadores de direita nos EUA, que aproveitaram o conservadorismo económico, racial, dos ‘valores da família’», explica o professor. «Comecei a pensar mais nos motivos por trás das interpretações republicanas de Jesus, desde as fases iniciais, nos anos 30 da reação ao New Deal de FDR [Franklin D. Roosevelt], que trouxe programas sociais estatais fortes, segurança social e tudo mais. Desde o início dessa reação que há este movimento financiado por empresas, para recrutar clérigos que criem um Jesus muito particular, com base numa interpretação que lhes interessa. Há uma motivação financeira». No caso de Trump, «ele usa muito a linguagem do poder. Num discurso em 2016, numa universidade cristã – é o discurso que fica famoso por ele dizer que podia balear alguém na cara e não perder eleitores –, ele continua e diz: ‘Eu vou dar poder ao cristianismo’. Sempre em termos vagos, como se houvesse um único cristianismo, representando pela direita. Poder e riqueza parecem sempre ser a motivação por trás de interpretar Jesus de uma certa maneira, particularmente quando todas as evidências apontam num sentido contrário».

 

A bíblia critica o aborto e a homossexualidade?

Para a base cristã conservadora, talvez nada seja tão mobilizador como a oposição ao aborto, parte da defesa da família tradicional. Hoje parece que ser pró-vida é requisito básico para se ser cristão, mas nem sempre foi assim. Sobretudo antes do famoso caso Roe Versus Wade, em que o Supremo Tribunal declarou o aborto legal nos EUA. «Dois anos anos antes, a Convenção Batista do Sul apoiava um acesso mais amplo ao aborto. Nos anos 60, as principais revistas cristãs estão a debater se o aborto é uma bênção ou uma maldição, falam sobre como não há ensinamentos claros na bíblia quanto ao assunto», conta Keddie. À época, o aborto era uma preocupação quase exclusiva dos católicos, expressa sobretudo através do partido democrata. Contudo, os anos 70, quando os republicanos conquistavam o sul e a perdiam o norte, viram-no como oportunidade de galvanizar o voto evangélico branco.

«O aborto não é mencionado em lado nenhum na Bíblia. Isso não quer dizer que não haja passagens que não possam iluminar perguntas modernas quanto a se o aborto é ético, se a humanidade do feto acontece em algum ponto antes do nascimento. Mas não há uma passagem clara, criar uma já é impor uma interpretação ao texto».

 «Essa vulnerabilidade, esse reconhecimento de que há diferentes ensinamentos na bíblia que pode ser aplicados quanto ao assunto desapareceu, simplesmente já não vês isso», continua o autor.

À falta de uma resposta direta, talvez facilite um pouco olhar para o Jesus histórico. «Sou muito cético sobre quanto podemos saber do Jesus histórico, qualquer interpretação dele é inevitavelmente especulativa e conjetural – o que não quer dizer que não o devamos fazer, pode ajudar. Os judeus, no tempo e contexto de Jesus, tenderiam a ver a vida a começar com a primeira respiração, que é a vida a entrar no corpo, segundo que lemos na literatura rabínica. Ou então poderiam ter uma visão mais greco-romana, conhecida como gradualista, associada com Aristóteles, de que o não-nascido lentamente ganha vida dentro do útero, passa por formas diferentes. Só a partir de certo ponto desconhecido pode ser considerado vida humana, por oposição a vida animal ou vegetal».

«Dito isto, este simplesmente não era um assunto quente na altura, não é algo que surja muito nas nossas fontes. E quando surge é embrulhado em longas discussões de moralidade que incluem coisas que nunca consideraríamos hoje, tipo como tratar dos teus escravos».

No que toca a pessoas LGBT+, há mais por onde se pegar na Bíblia. O problema é que se falássemos do assunto com os antigos, nem eles fariam ideia o que significa algo como orientação sexual, nem nós perceberíamos do que eles estavam a falar. «No tempo de Jesus e do apóstolo Paulo as discussões sobre relações entre o mesmo sexo não eram sobre escolha, eram sobre poder. A pessoa que penetra outro homem é visto como poderosa, masculina, mas o homem que é penetrado é visto como feminino. A dinâmica de poder parece ser parte da razão que alguns moralistas antigos se opõem a relações do mesmo sexo, tinha a ver com a ação de humilhar a outra pessoa», nota Keddie. «Alguns filósofos do mundo antigo denunciavam-no como um excesso de luxúria, significava que um homem não tinha autocontrolo. É engraçado que muitas vezes aparece no contexto a críticas ao adultério. Alguns filósofos, talvez o apóstolo Paulo também, diriam que seria pior ter um caso com a mulher de outro homem que violar os seus escravos homens. Corpos de escravos eram vistos como descartáveis e acessíveis aos seus senhores para sexo, para qualquer tipo de exploração sexual, inclusive no tempo do Levítico, que é tão citado quanto ao assunto».

Já no que toca a género, a direita religiosa tende a usar o famoso verso do Génesis, «Deus criou o homem e a mulher», para chutar o assunto. «Veem sempre isto como um guia para os papéis de género bíblicos, casamento heterossexual como o único caminho, o género como algo biológico. Mas param de ler aí. Mais à frente, Jesus fala de eunucos de uma forma muito interessante. Diz que há três tipos de eunucos: eunucos de nascimento, eunucos castrados por outros e pessoas que se castraram voluntariamente para o Reino de Deus. No contexto antigo, eunucos eram considerados como andróginos ou intersexo, usando termos modernos, descreviam-nos como meio-homem, meio-mulher. São uma minoria sexual, e numa das suas manifestações é algo de nascimento. Comparando com o verso anterior, ‘Deus fez o homem e a mulher’ e o eunuco! Não creio que Jesus esteja a dizer que Deus se enganou».

Mas se há tão poucas evidências na Bíblia, como é a visão sexual da direita religiosa se tornou tão comum nos EUA? «Houve esforços concertados, à medida que tentavam reagir às revoluções sexuais dos anos 60», considera o professor. «Uma parte chave disto é que estes líderes religiosos, sobretudo homens brancos, quando tentam controlar corpos de outros, mulheres ou minorias sexuais, encaixam-nos seu programa de conservadorismo económico, na visão de o Governo estar a atacar liberdades religiosas individuais».

 

Guerra e o fim do mundo

Seria de esperar que grupos religiosos tão focados na família, nos valores tradicionais, pudessem chocar-se com Trump. Mas como esperar que os fiéis se revoltem contra o escolhido de Deus? «Ciro é a única pessoa no Antigo Testamento que não é judeu e é nomeado como messias. Vemos isso em Isaías, versículo 44 e 45, embora muitas pessoas que apoiam esta visão digam que é só em Isaías 45, porque ligam-no a uma profecia sobre Trump ser o 45.º Presidente», explica Keddie. «É a interpretação mais louca. E esquecem-se de que esta divisão em versículos vem do período medieval, muito depois», acrescenta, entre risos. Quem quiser comprar merchandise de Trump ao lado de Ciro já pode fazê-lo online, sejam camisolas, pins, chapéus, moedas comemorativas.

«Em Isaías, fala-se como Ciro subjuga nações, é essa a linguagem usada, para proteger Israel e devolvê-los à Terra Prometida. Diz-se até que Ciro não conhece Deus, por isso não interessa se faz parte da aliança, é um instrumento para ajudar o seu povo. Essa é a analogia perfeita para Trump. Francamente acho muito inteligente, porque permite-te dizer que ele é um forasteiro rude, mas faz muito do que a direita religiosa considera bom, sobretudo quanto a valores familiares», nota o professor.

Pode parecer bizarro, mas é uma crença com efeitos no mundo real, para justificar intervenções militares e assassínios. «A direita religiosa tem tendência para não ler criticamente partes da Bíblia como a conquista de Canaã, onde há genocídio, violações, escravatura. Lavam essa parte, tentam livrar-se dela. Em igrejas mais progressistas, é comum reconhecer que estes são os chamados ‘textos do terror’, que estão na Bíblia mas são vestígio de uma cultura antiga, que é muito problemática e devemos falar disso».

«Parte do problema vem da analogia com Ciro. Quando Trump assassinou o general iraniano Qassem Soleimani, houve referências a Ciro para o justificar. Mas, a um nível mais amplo, há um aspeto militarista para o pensamento da direita cristã que já vem da Guerra Fria, quando emergiu o nacionalismo-cristão». Ou seja, «a ideia que a América é uma nação cristã, sempre o foi e deve ser defendida como tal».

«Nesse período, sobretudo nos tempos da presidência de Dwight D. Eisenhower, houve a construção de um dualismo. De um lado está o mercado livre, capitalismo e cristianismo, todos bons; do outro lado está o socialismo, o nazismo. Dentro do mesmo saco foram metidas igrejas cristãs mais liberais, constantemente julgados nas perseguições a supostos comunistas de Joseph McCarthy. Este enquadramento de pensamento via quem não concorda com o cristianismo de direita como pagão. Durante a guerra do Vietname, e em guerras subsequentes, isso foi justificação para intervenções militares, para subjugar nações para que o cristianismo chegasse lá» .

Aliás, importa notar que Trump nem sequer é o primeiro Presidente norte-americano a ser proclamado um novo Ciro na terra. Antes dele já o fora Ronald Reagan, um antigo ator de Hollywood divorciado, que a direita religiosa apoiou face a Jimmy Carter, um evangélico apaixonadamente pio. «Há enormes semelhanças, por exemplo o slogan ‘Make America Great again’, repleto de significados nacionalistas-cristãos. E Reagan definitivamente era retratado como uma figura messiânica pelos seus apoiantes».

«A grande diferença é que Reagan cumpria muito melhor o papel, falava muito mais explicitamente de fé e moralidade», considera Keddie. Mas Trump, por sua vez, pôs a direita evangélica muito mais próxima dos seus sonhos apocalípticos no que toca a Israel, movendo a embaixada em Israel para Jerusalém, legitimando a ocupação dos montes Golã e abrindo caminho a uma anexação da Cisjordânia. «É muito importante para ganhar o voto evangélico, os seus líderes que veem o apoio a Israel como apoio aos cristãos – o tipo certo de cristãos», explica o professor.

«Em primeiro lugar, há um certo escorregar entre Israel ser visto como um conceito teológico e ser visto como um Estado real e moderno, uma entidade geopolítica. E mudar a embaixada para Jerusalém é uma parte de tantos cenários apolíticos. É suposto judeus da diáspora voltarem a Jerusalém, antes que possa chegar o fim. E, em cenários cristãos, antes que Jesus possa voltar. O interessante é que enquanto esse apoio muitas vezes é visto como uma perspetiva positiva quanto aos judeus, os cenários para o regresso de Jesus, vistos pela direita religiosa, frequentemente implicam que se os judeus não se converterem serão erradicados ou atormentados. Ser judeu não é aceitável no fim dos tempos», remata.