“Há muita gente que acha que o nosso trabalho é andar a dar festinhas aos animais”

Nasceu em Moçambique, voluntariou-se desde novo para projetos de conservação e estudou no parque de vida selvagem fundado pelo naturalista Gerald Durrell na Ilha de Jersey. O empenho foi recompensado:hoje José Dias Ferreira é curador de mamíferos do Jardim Zoológico de Lisboa e coordena a nível mundial o programa de reintrodução do leopardo-da-pérsia no seu…

“Há muita gente que acha que o nosso trabalho é andar a dar festinhas aos animais”

No dia em que visitamos o Jardim Zoológico de Lisboa, há sinais de agitação no Templo dos Primatas. Os chimpanzés parecem nervosos. «É um comportamento natural, não há aqui nenhuma agressão brutal, são empurrões e umas palmadas», explica José Dias Ferreira, curador de mamíferos do Zoo. Ainda assim, os sons produzidos pelos animais denotam agressividade e são por vezes um pouco assustadores.

Essa agitação contrasta com a tranquilidade que reina na instalação dos leopardos-da-pérsia. «Três machos lindíssimos», como os descreve o curador, e uma fêmea, que veio da Alemanha. É um animal que «pode atingir cem quilos, o maior leopardo que existe». E que tem o estatuto de extinto. Dias Ferreira coordena o programa de reintrodução de espécimes no seu habitat natural. «Estamos a libertar na Rússia, em zonas guardadas pelo exército russo, onde não há caça furtiva.

A primeira reprodução de leopardos-da-pérsia na Rússia foi de um casal de leopardos português, a Andreia e o Zadig, que foi para lá enviado em 2012».

Ali perto, encontra-se «um dos animais mais difíceis de ver, tanto no habitat natural como em zoo», um grande felino com uma pelagem magnífica e um nome não menos magnífico. «É uma pantera-nebulosa. Ela só vai para o pé do público porque fechámos de tal maneira a vegetação aqui à volta que ela acha que consegue-nos ver mas nós não a vemos assim tão bem».

A pantera está a dormir. Para os visitantes do Zoo, pode ser um pouco aborrecido, mas «é um bom sinal», garante Dias Ferreira. «Os animais não estão sempre em movimento: se estiverem é péssimo sinal, é sinal de que estão em stresse.

Os gatos, como sabem, armazenam energia. Quando estão habituados à instalação descansam durante o dia».

Deixemos, pois, a pantera dormir descansada.

O Jardim Zoológico acaba de receber uma nova espécie.

Sim, o canguru vermelho.

Como é que estes animais chegam aqui? São comprados a outro zoo?

Não. Nós fazemos parte da Associação Europeia de Zoos e Aquários, que tem regras específicas e tem uma filosofia específica. Não há vendas nem compras de animais, só há trocas. Nós podemos enviar gorila para Berlim e receber em troca um canguru vermelho, por exemplo. Trocam-se animais, não há contrapartidas financeiras associadas.

Então nunca podem comprar nem vender animais?

Nada. Essa é uma das vantagens de fazer parte dessa associação. Tendo em conta que ela agrega 600 zoos, é relativamente fácil. Cada uma das espécies tem um coordenador, esse coordenador determina que trocas há entre os jardins zoológicos. Nós coordenamos cinco programas de reprodução, entre eles o do leopardo-da-pérsia, que existe em 50 zoos em todo o mundo. Nós, em Lisboa, é que dizemos que animais são trocados, que animal é que vai reproduzir com outro. Pagamentos: zero. São trocas. E acordos de empréstimo. Posso emprestar um animal a Zurique para reproduzir lá, e depois ele volta para aqui.

Esse sistema permite-vos ter quase um zoo ideal, no sentido em que cada um pode receber as espécies que existem noutro zoo qualquer?

Exatamente. Existe um programa informático que analisa a população do jardim zoológico e diz exatamente qual é o melhor match genético. Nasceram-nos três machos de leopardo da Pérsia há um ano e pouco. Pelo menos um desses machos, mas até podem ser todos, vai ser colocado em situação de reprodução. Vou ter que ver que fêmea será geneticamente mais compatível, e é aqui que determinamos que transferência vai ser feita.

E não há guerras entre zoos por quererem ficar com um determinado animal?

Isso é outra questão. Há espécies mais ‘políticas’ do que outras. O coordenador de uma girafa, por exemplo, tem um trabalho infernal. Se nos disserem que uma determinada girafa tem de ir para um determinado zoo e nós temos uma ligação especial com aquela girafa, ou não queremos ficar com menos girafas, é difícil. Com os leopardos também acontece isso. As pessoas querem os melhores animais, toda a gente quer reproduzir, mas não podemos ter toda a gente a reproduzir. Este programa do leopardo-da-pérsia tem uma particularidade interessante. Estamos a enviar animais para um centro de reprodução em Sochi na Rússia, fornecemos os casais reprodutores que vão produzir as crias, que depois são treinadas para caçar e vão ser reintroduzidas. Não fazemos a reintrodução direta mas fornecemos os pais dessa geração. Neste programa o ciclo é completo: reproduzimos em jardim zoológico, mostramos ao público, falamos sobre as questões de conservação no Cáucaso, e paralelamente produzimos leopardos para serem reintroduzidos no habitat natural. Já foram reintroduzidos vários.

E como é lidar com as entidades russas? Há muita burocracia, por exemplo?

A cultura russa é completamente diferente da nossa. Temos colegas russos espetaculares na WWF Rússia com os quais trabalhamos, mas depois eles reportam a pessoas com mais poder no país.

Uma coisa que deve ser complicada é o transporte desses animais…

É verdade. Há empresas especializadas que só fazem isso. Até lhe digo uma coisa: a este nível, há mais cuidado no transporte de animais selvagens do que há no transporte de pessoas. Qualquer pessoa que tenha feito viagens em económica – eu fiz várias – percebe que ninguém tem em conta o tamanho das suas pernas. Se eu tiver dois metros de altura vou a viajar com os joelhos ao pé da cara. No caso dos animais, as caixas são feitas especificamente não só para a espécie como para aquele indivíduo em particular. Se eu tiver um leopardo macho muito grande, vou fazer a caixa de maneira a que ele se consiga movimentar, levantar, baixar. E o transporte é o mais curto possível. Temos muitas vezes tratadores a acompanharem esses transportes mais complicados, a zona de carga da camioneta é também constantemente controlada em termos de temperatura e humidade, o animal também é controlado, com câmaras, para saber se está bem se não está durante a viagem. Na maior parte dos casos tudo isto é feito sem qualquer tipo de contenção química [tranquilizantes], a melhor forma de fazer o transporte é esta: habituar o animal à caixa, de maneira que ele considere a caixa de transporte, que foi feita para ele, como parte do seu território. Isso é logo 70% do processo, com o mínimo de stresse para o animal. A caixa é colocada na instalação, o animal entra e sai, há um dia em que as portas são fechadas, e vinte horas depois o animal está no destino. Mas ele está numa caixa que tem o seu cheiro, para a qual ele foi habituado durante quinze dias, entra sem qualquer tipo de stresse. Tudo isto tem consequências positivas em termos de habituação do animal ao novo zoo.

Temos ideia como foram transportados os animais quando vieram para cá há cento e tal anos? O primeiro rinoceronte, por exemplo?

Com o conhecimento que havia na altura. Mas eu olho para as instalações antigas e vejo que foram feitas com muito cuidado. Por muito que o aspeto não fosse o melhor – olhamos para uma instalação nova e não tem grades, tem água na frente, tem relva, tem sombras. As instalações antigas não eram assim, mas havia um cuidado muito grande com a parte técnica: a forma como os animais são movimentados no interior, a forma como as portas abrem e fecham, a flexibilidade da instalação. O Raúl Lino, que foi o arquiteto das instalações antigas, estava associado a um técnico da área animal. O nosso Jardim Zoológico é dos mais antigos da Europa, e já nessa altura havia uma transferência interessante de informação entre jardins zoológicos, até porque não se sabia assim tanto sobre aqueles animais, muitas vezes era a primeira vez que iam estar sob cuidados humanos.

O que se estuda para se ser curador de mamíferos do Jardim Zoológico? Qual é a sua formação?

Licenciei-me em Engenharia de Produção Animal, Zootécnica, depois fiz diversas formações na área de jardins zoológicos. Estive nas Ilhas do Canal, Ilha de Jersey, numa escola para pessoas que estão a trabalhar em conservação e em jardins zoológicos.

É um centro especializado em vida selvagem?

Tem uma escola tanto para as pessoas que estão a trabalhar no habitat natural como para as que estão em jardins zoológicos, e faz essa ligação entre umas e outras. É um conceito lançado e criado pelo Gerald Durrell, que defendia que os jardins zoológicos têm de estar ligados diretamente ao habitat natural. Cinquenta anos depois, a linha é a mesma. Nós, Jardim Zoológico, temos vários projetos em que estamos a fazer isso.

Quando fez a sua formação académica foi já a pensar que queria trabalhar no Jardim Zoológico?

Pensei sempre trabalhar em conservação, tinha uma visão romântica – todos nós temos – de que se calhar aos 20 anos estaria a viver em algum sítio, a trabalhar diretamente na natureza, até porque vivi os dois primeiros anos da minha vida em Moçambique, tenho ligação à Gorongosa desde sempre, portanto há alguma memória e há também todas as histórias da família, que os avós contavam. Dizem que quem vive os primeiros anos em África fica sempre com uma ligação especial. Portanto havia essa visão romântica. E por isso é que desde novo comecei a experimentar em regime de voluntariado, visitei por conta própria vários locais com espécies criticamente ameaçadas em que estavam a desenvolver projetos de conservação, estive em Manaus a trabalhar como voluntário num projeto de conservação do saguim-touro e fiquei logo a saber o que se passa no terreno realmente. Isto é a melhor forma de sabermos como funciona, é dar um choque, em vez de passarmos a vida inteira a imaginar.

E como é esse confronto com a realidade?

É forte. Não é nada daquilo que estávamos à espera. Quer dizer, a base está lá, só que puxa-nos um bocadinho de volta à terra. Vejo muito cinema, aqueles filmes todos com alguma ligação a essa parte natural e de conservação, e depois o nosso imaginário faz o resto. No próprio Jurassic Park [livro de Michael Crichton], que li há 25 anos ou mais, no fundo ele está a falar de um jardim zoológico, só que com espécies já extintas. Inclusivamente o Hammond, a personagem que cria o Jurassic Park, é baseado no Durrell, e no filme foi interpretado pelo Richard Attenborough [irmão do naturalista David Attenborough]. É uma pessoa apaixonada por aquele conceito todo. Mas lá está: ele quer falar às pessoas das espécies extintas. Não quer só ter um parque, quer falar do problema de conservação.

Falou do choque com a realidade e da visão romântica. Quase todos os empregos têm uma parte mais chata e outra mais gratificante.

Adoro a preparação de habitats para animais, é das coisas mais giras para se fazer num jardim zoológico. Cada espécie que temos aqui tem um guia de maneio de 100 a 150 páginas, que explica exatamente o que aquela espécie em particular precisa. Com base nesse guia de maneio pomo-nos na posição do animal e pomo-nos na posição do público, e tentamos criar um habitat que funcione bem para ambos.

E em relação ao lado mais chato?

Tem a ver com a parte de arquivo, tenho também uma parte administrativa, essa é a de que menos gosto. Mas como todos os dias de manhã a primeira coisa que faço é dar uma volta pelo jardim, falar com o máximo de pessoas possível, tratadores das diversas áreas, ver como está tudo, ver também a parte dos visitantes, quem está a entrar, essa parte limpa-me um bocadinho o resto. Das 11 ao meio-dia estou preparado para ficar à frente do computador e responder àquilo a que tiver de responder.

Aqui há dois anos houve um acidente com uma girafa: um visitante atirou-lhe comida e o animal caiu e morreu. Apesar de todos os cuidados ainda acontecem acidentes aqui no Jardim Zoológico?

Cada vez menos. Temos reparado numa coisa interessante: quanto melhor é a instalação, melhor é o comportamento do público. É quase como, se tiver um canteiro mal arranjado, toda a gente pisa, toda a gente atira porcarias. Se tiver um canteiro impecável, se tiver flores, as pessoas não pisam, nem precisa de ter vedação. Aqui é a mesma coisa. Se a gente tiver o animal numa instalação horrorosa…

Uma jaula, por exemplo?

Sim, atrás de grades… Mas atenção: pode ter grades e ser espetacular. Ter grades não é sinónimo de ser mau, porque as grades são utlizadas pelos animais. É preciso desconstruir esta visão simplista do ‘grades é mau, não grades é bom’.

Para nós é sinónimo de prisão.

Pense assim: se eu tiver esta instalação com grades, não consigo tirar fotografias, os animais estão com um aspeto horrível, mas o animal consegue usar toda a instalação. São primatas. E com primatas há instalações com o mesmo espaço disponível em que se eu tiver grades é melhor para o animal. Claro que temos de dar aquilo que o público quer, mas se houver outra solução melhor para os animais temos de perceber que a vontade dos animais se sobrepõe à do visitante.

Há ilações a tirar desse acidente ou simplesmente não havia nada a fazer?

Hoje tenta-se manter os animais o mais possível afastados das pessoas para que não se consiga alimentar na mão. Há placas em todo o lado a dizer ‘Não alimentar’. A maior parte das pessoas cumpre, e o comportamento do público tem vindo a ser alterado também pela forma como nós temos os animais. Só que às vezes a tentação é muita. E a natureza humana é impossível de controlar. Depende da pessoa. Mesmo que não tenha essas consequência imediata, o facto de estarmos a dar uma coisa que nem sabemos o que é, que pode ser tóxica para aquela espécie, coloca o animal em risco. Nós temos um departamento de nutrição que tem uma dieta específica para cada uma das espécies que cá estão. O tal guia de maneio que cada uma das espécies tem já traz vinte páginas sobre o que podem comer, temos um cuidado brutal em termos de dietas para se cumprir exatamente o que está pedido. Se um visitante chega aqui e atira uma coisa qualquer, mesmo que não aconteça nada, é uma falta de respeito para o trabalho todo que nós temos.

Há animais que têm dietas esquisitas?

Podemos falar nos coalas, que só comem eucalipto, e só comem o rebento do eucalipto, portanto temos que ter, e fornecemos-lhes, cerca de vinte espécies de eucalipto, e têm de ter por dia quatro ou cinco diferentes, porque são plantas com toxicidades diferentes e só o animal é que sabe qual é que comeu quando, ele faz o equilíbrio, mas tem de ter disponível. Temos quem vá buscar essas folhas a 130 km daqui, de três em três dias, traz de madrugada, nós escolhemos, entregamos, e os coalas só comem 5% daquelas ramagens, só comem as folhas mais tenras. E depois tudo o resto. Temos animais que são insetívoros. Temos o urso-formigueiro, já há dietas comerciais para estas espécies.

Tipo ração?

Rações, caras, muito caras, mas específicas. Há insetívoros, há folívoros, primatas que só comem folhas, é preciso ter isso tudo em conta.

No seu dia-a-dia tem oportunidade de ver os animais mais de perto, de tocar num elefante?

Não há toques nenhuns, o mínimo possível. A ideia é, em 90% das espécies que cá temos, nunca tocar. Os animais têm o espaço deles, nós temos o nosso. Imagine que vou limpar os elefantes. Quando limpamos a instalação dos elefantes, durante esse período os animais não estão lá, depois as outras 23 horas do dia e noite têm eles acesso à instalação. Nós não partilhamos a instalação com os animais por várias razões: bem-estar do animal, segurança, sanitárias. Há cada vez mais um afastamento, mas eles sabem quem são os tratadores, tem de haver o mínimo de controlo. Os animais estão aqui para ser animais o tempo todo, não é para a gente pegar no chimpanzé, pegar nisto, naquilo. Por muito prazer que isso pudesse dar – a nós.

Mas quem escolhe trabalhar com animais…

Há muita gente que tem essa ideia, eu nunca tive. Uma faixa enorme de pessoas quer trabalhar aqui ou no habitat natural, e acha que o trabalho é andar a dar festas nos animais. Isso não podia andar mais longe da verdade. Se falar nos animais domésticos, se tiver um cão, é uma coisa. Não tenho um chimpanzé em casa. Tudo o que seja animais espécies selvagens não há vantagem nenhuma nessa proximidade.

[Entretanto começa a haver alguma agitação entre os chimpanzés]

Hoje estão mais nervosos do que o costume ou é um dia normal?

É normal. Não há muita gente com grupos tão grandes como o nosso, o que é positivo… São animais gregários, num grupo grande há uma série de dinâmicas, estes gritos são as dinâmicas deles. O que estamos a ver é a marcação [do território], é o macho alfa, o Dori… Tem um cabedal desgraçado. Isto é comportamento natural, não há aqui nenhuma agressão brutal, são empurrões e umas palmadas…

E há fases do ano em que estejam mais excitáveis?
No cio. Há mais problemas, há mais conflitos, é normal. É mais complicado nessas alturas. Sabe como é que não acontece nada? Se eu tiver os animais todos separados, cada um na sua instalação. Isso é que é uma aberração.