Escritor que relatou homicídio em poema acaba absolvido em tribunal

A filha do homicida acusava o homem de desrespeitar a honra do pai e da família no relato do assasinato.

O autor do livro de poesia “Histórias de Vida – Parada de Gatim” estava envolvido num processo judicial por ter relatado um homicídio num dos seus poemas. Agora, António da Silva Correia acabou por ser absolvido novamente, uma vez que a Relação considerou que a linguagem utilizada, a forma do texto e os recursos estilísticos que constam do livro “não se apresentam excessivas, no sentido de poderem denegrir a imagem das personagens”, diz o acórdão de 22 de outubro, a que a Lusa teve acesso.

O livro, lançado em 2017 por António da Silva Correia, conta histórias de Parada de Gatim, em Vila Verde, e num dos poemas relata o episódio de um assassinato que aconteceu naquela freguesia e a filha do homicida não tardou em reagir: moveu um processo contra o poeta por alegada violação do direito à honra do pai e de toda a família e pedia uma indemnização superior a 30 mil euros.

O assassinato remonta a 1984 quando um homem matou o cunhado, tendo sido condenado a 19 anos de prisão. Entretanto o homicida já faleceu.

No poema, António da Silva Correia escreve que o assassino “perdeu a tola” e as crianças ficaram com tanto medo que “não queriam ir à escola. Prossegue ainda, sem mencionar nomes, mas sim as alcunhas pelos quais ambos eram conhecidos, dizendo que o homem e o cunhado “estavam muito zangados” e que o primeiro ia para a cadeia e o outro para o cemitério.

Uma filha do homicida considerou que o escritor terá falado do crime sem referir o contexto em que os factos ocorreram, com uma discussão familiar e violência por parte de ambos, dando a entender que o pai matou o familiar “porque lhe apeteceu, tal e qual um monstro assassino”.

A mulher acusou ainda António da Silva Correia de chegar “ao ponto de ludibriar, desrespeitando seriamente” a honra do pai e da família e de não descrever aquilo que aconteceu de forma adequada e moderada, ignorando o necessário no relato do episódio e qualquer intenção pegagógica.

O tribunal, por sua vez, considerou que o texto se refere a um “acontecimento real” em relação às personagens, local e tempo e que o autor não faz referência aos nomes de família ou os nomes verdadeiros das personagens. Para o tribunal, o poeta demonstra mesmo um tom de “tristeza e lamento” nas palavras escritas.

O acórdão refere que “não é notório qualquer ataque à pessoa ou ao caráter” do assassino e da família e que, ao invés, se trata de uma memória dos intervenientes da qual se pode retirar uma “moral da história”: ambos perderam a zanga – um a vida e outro a liberdade.

“A intenção pedagógica dirigida ao leitor afigura-se evidente”, diz o documento.

O tribunal afirma que o texto “integra-se perfeitamente na coletânea de histórias mais ou menos rocambolescas que constituem o livro” e ainda que “o seu interesse público em termos culturais para a história da freguesia de Parada de Gatim, localidade eminentemente rural, onde acontecimentos deste tipo perduram na memória dos vivos, até pelo conhecimento e grande ligação entre os habitantes destes meios pequenos – contrariamente ao que sucede nas grandes cidades”.

Consta ainda do acórdão que, em casos como estes, quando existe um confronto entre o direito à honra e a liberdade de expressão, “se há um qualquer interesse público a prosseguir, haverá eventualmente que privilegiar o direito à informação e a liberdade de expressão em detrimento de outros direitos individuais”.