Bonnie & Clyde. A única solução era morrer

Dois amantes, assaltantes de bancos e assassinos, entusiasmaram os Estados Unidos durante a Grande Depressão e dividiram as opiniões daqueles que seguiam atentamente as suas aventuras. A sua fuga contínua terminou numa curva de estrada à custa de uma rajada de mais de 130 balas de metralhadora. Confirmaram que também pode haver algo de romântico em…

Onde cabe o romantismo quando falamos de dois indivíduos sem escrúpulos? Foi essa, certamente, a pergunta que levou Serge Gainsbourg a cantar a meias com Brigitte Bardot uma canção de homenagem a Bonnie e Clyde, certamente o casal de bandidos mais famoso da história do crime: «Chaque fois qu’un policeman se fait buter/Qu’un garage ou qu’une banque se fait braquer/Pour la police, ça ne fait pas d’mystère/C’est signé Clyde Barrow, Bonnie Parker».

Se havia algo que Clyde Barrow e Bonnie Parker tinham para dar e vender era descaramento. Em plena Grande Depressão, que rebentou em 1929 e se manteve até ao início da II Grande Guerra, eles foram os assaltantes de bancos cujo nome brotava quase naturalmente da boca de qualquer um que iniciasse uma conversa sobre crimes. Outra coisa que ninguém lhes negava era coragem: muitas foram as vezes que, cercados pela polícia, abriram caminho para a liberdade a tiros de metralhadora e arriscando serem abatidos como cães raivosos. Certa vez, à porta de um banco, mataram com absoluto sangue-frio nove agentes policiais e mais de uma dúzia de civis. Quem ousasse fazer frente a Bonnie e Clyde levava para contar, se é que tinha a sorte suprema de sobreviver aos seus acessos de fúria.

Bonnie_Elizabeth Parker nasceu no dia 1 de Outubro de 1910 em Rowena, no Texas. Nada diria que se viria a transformar na mulher infame que se tornou. Frágil de compleição física, entregue em exclusivo aos cuidados da mãe por via da morte extremamente prematura do pai, dava nas vistas pelos seus brilhantes cabelos avermelhados. Estudante atenta, alimentou o gosto pela literatura e sonhou em tornar-se escritora. O casamento com Roy Thornton contrariou a sua vontade. Apesar de a união nunca ter sido oficialmente desfeita, não se deram bem. Feitios conflituosos separaram-nos ao fim de três anos. Roy era um patife de vão de escada e não tardou a ir ver o sol nascer aos quadradinhos numa prisão local por conta de uns poucos de roubos mais dignos de um pilha-galinhas do que de um verdadeiro ladrão. Bonnie não teve outro remédio de não dar corda aos sapatos: aceitou um emprego num bar e foi aí que conheceu o parceiro da sua vida: Clyde Chestnut Barrow, conhecido como Champion.

Clyde também era natural do Texas, estado que fica ligado a alguns dos mais violentos episódios da história dos Estados Unidos, incluindo o assassinato do presidente J.F. Kennedy. Não foi à toa que a expressão – «Julgas que isto é o Texas?» – entrou no léxico do cinema e se espalhou popularmente por todos os pedaços deste planeta redondo, apenas ligeiramente achatado nos polos. Nasceu no dia 24 de Março de 1909, em Teleco, no seio de uma família bastante pobre. O pai trabalhava num posto de gasolina e os Barrow amontoavam-se num casebre de somente uma divisão. Ter passado a infância e a adolescência subnutrido, a roer nacos de pão duro, não impediram Clyde de crescer e se tornar um homem bonito, de fartos cabelos negros e, segundo a lenda, irresistível para as mulheres. Bonnie foi uma das que não resistiu ao seu charme.

 

Canalha precoce

Clyde e o irmão Ivan, mais famoso pela alcunha de Buck Barrow, foram uns canalhas precoces. Os sarilhos com as autoridades surgiram-lhes mais cedo do que o acne. Começaram por tornar-se pilha-galinhas autênticos, ou melhor, pilha-galinhas, pilha-patos ou pilha-perus, com assaltos constantes às quintarolas das vizinhanças e levando as aves de capoeira para vender nas feiras e somar uns tostões. Não tardaram a ir parar com os costados na cadeia da região, acusados de crimes que cometeram e que não cometeram: basicamente todas as trampolinices que sucediam em Teleco eram imputadas aos irmãos Barrow. Foi nessa altura que Champion se tornou amigo e cúmplice de outros dois cafajestes, Ray Hamilton e Ralph Fults, mais tarde membros do ignóbil Barrow Gang.

Mal se viu solto como um passarinho, Clyde tratou de gizar um plano para sacar da cadeia os seus compinchas. Foi bem sucedido mas, pelo caminho, envolto num fortíssimo estado de embriaguez, tratou de matar um polícia a tiro dando definitivamente o salto sobre a ténue linha que separa um fulano vil de um assassino.

Entretanto, já Bonnie e Clyde tinham caído nos braços um do outro, ela incapaz de rechaçar os seus olhos negro de azeviche, ele encantado pelos seus cabelos ruivos e, sobretudo, irmanados ambos numa forte revolta interna contra a sua indigência numa altura em que o mundo vivia uma absoluta derrocada financeira. Nada lhes tiraria da cabeça que poderiam ficar cada vez mais ricos à medida em que os outros ficavam cada vez mais pobres. Daí a engendrarem planos de assaltos não demorou mais do que o riscar de um fósforo e a primeira vítima foi o cofre forte de uma loja de materiais mecânicos na cidade de Kauffman. A sua carreira estava lançada, o seu nome não tardaria a entrar para sempre no imaginário da criminologia: «Alors voilà, Clyde a une petite amie/Elle est belle et son prénom c’est Bonnie/À eux deux, ils forment le gang Barrow/Leurs noms, Bonnie Parker et Clyde Barrow…»

Clyde já fixara o alvo seguinte: a casa da família Bucher, proprietária de uma cadeia de mercearias em Hillsborough. Com Ralf de novo encarcerado por uma tranquibérnia barata, Hamilton seguiu o companheiro. De revólveres na mão, manietaram Mr. Bucher e enquanto Clyde esvaziava o cofre, Ray mantinha a arma apontada à cabeça do infeliz. Muito infeliz mesmo porque, um súbito ruído assustou Hamilton e a bala que saiu do cano desfez os miolos do desgraçado. A coisa ficava preta. Barrow decidiu que o bando devia deixar de vez a zona dos ataques mais recentes e partir à deriva de forma a não poderem ser detetados pela caça ao homem que já estava em marcha.

 

Tac, tac, tac…

Caça ao homem e à mulher, como é evidente. Bonnie fez questão de acompanhar o amante e fizeram-se à estrada enquanto o diabo esfrega um olho. Nesse preciso momento nasceu a lenda de Bonnie e Clyde: «Maintenant, chaque fois qu’on essaie d’se ranger/De s’installer tranquilles dans un meublé/Dans les trois jours, voilà le tac, tac, tac/Des mitraillettes qui reviennent à l’attaque». O tac, tac, tac das metralhadoras tornou-se um som banal para o gangue de Barrow.

Nos meses que se seguiram, Bonnie, Clyde e Hamilton prosseguiram numa avalanche de assaltos e de assassinatos que encheram os jornais dos Estados Unidos. De vez em quando eram auxiliados por Buck Barrow e sua mulher, Blanche, e por mais três homens que se juntaram ao grupo, Joe Palmer, W.D. Jones e Henry Methvin. O curioso, e até grotesco, é que apesar da fama crescente do bando, os assaltos rendiam pouco. Os famosos assaltantes de bancos não assaltavam tantos bancos como isso e, por causa da Depressão, encontravam amiúde cofres vazios como sucedeu num ataque violento que só lhes rendeu a ridicularia de 80 dólares. Se alguma vez a expressão ter mais fama do que proveito fez sentido, então foi quando aplicada aos golpes espetaculares de Bonnie e Clyde.

É evidente que o facto de formarem um casal, os acontecimentos ganharam uma aura de romantismo que não era própria de criminosos sem quaisquer escrúpulos. Houve jornalistas que começaram a seguir os movimentos do grupo com tanto interesse e proximidade como as centenas de agentes policiais que andavam à sua caça. A imagem de Bonnie e Clyde ganhava popularidade e, a partir de certa altura, provocava mais entusiasmo do que medo. Barrow, sempre pronto, desde miúdo, a tirar proveito do que a vida lhe dava, convenceu o jovem W.D. Jones, de apenas 17 anos, a transportar consigo uma máquina fotográfica de forma a ir registando as proezas do casal, além de momentos românticos prazeirosamente ensaiados para encantar a populaça em geral. Afinal eram uns canalhas, mas uns bons canalhas. Se pusermos de lado a parte dos assassínios, claro. E que ainda por cima eram mais frequentes do que o desejável e necessário.

Conduzindo um Ford V8 a velocidades estonteantes, sempre na roda dos 120km/hora, o que era um exagero na altura, o bando dos Barrow ia salteando tudo o que era supermercado, lojas de bricabraque e bombas de gasolina. Os bancos começavam a estar bem vigiados e tendiam a ser armadilhas perigosas.

Envolvendo-se com frequência em acidentes rodoviários – não havia árvore que estivesse segura na beira das estradas que percorriam, havia que ir roubando automóveis aqui e ali para continuar a fuga infindável, uma vertigem que apaixonava os seus seguidores e dividia opiniões quanto à verdadeira estrutura mental de Bonnie e Clyde – faziam-no por prazer ou por simples loucura?

«Un de ces quatre, nous tomberons ensemble/Moi j’m’en fous, c’est pour Bonnie que je tremble/Quelle importance qu’ils me fassent la peau/Moi Bonnie, je tremble pour Clyde Barrow/Bonnie and Clyde/Bonnie and Clyde», cantavam Serge e BB.

 

Ponto final

No dia 20 de Maio de 1934, uma equipa de luxo composta pelos inspectors Bob Alcorn, Ten Hinton, o ex-Texas Ranger Manny Golt e os xerifes Bienville Parish, Handerson Jordan, Prentiss Oakley e Frank Hammer, que seguia a passo e passo os mais recentes movimentos do grupo, montou uma operação gigante para enredar o casal mais famoso dos Estados Unidos. Quando o automóvel em que se deslocavam surgiu numa curva da estrada de Bienville Parish, Louisiana, o tac, tac, tac das metralhadoras começou a cantar. Eram nove e pouco da manhã. Oakley foi o primeiro a atingir o Ford V8 com uma rajada que perfurou uma das portas. Em seguida, todos os policias esvaziaram os carregadores sobre o veículo que se despistara entretanto. Calcula-se que mais de 130 balas puseram fim à vida de Bonnie e Clyde. Barrow foi atingido na cabeça e teve uma morte instantânea. O corpo magrinho de Bonnie ficou praticamente desfeito. O V8 Deluxe fora roubado a um indivíduo chamado Ruth Warren, de Topeka, e os seus destroços foram, nos anos que se seguiram, expostos em feiras com um sucesso incrível.

Emma Krause Parker, a mãe de Bonnie, recusou-se terminantemente a permitir que a filha fosse enterrada lado a lado com o amante. Levou o cadáver e sepultou-o em Dallas, no Crown Hill Memorial. Clyde foi descansar para a eternidade no lado oposto da cidade, no Western Heights Cemetery. No seu túmulo, resta uma pequena placa: «Gone but not forgotten». Centenas de pessoas juntaram-se nos funerais na ânsia de puderem, nem que por um segundo, espreitar os famosos defuntos. O cinema não tardou a pegar num guião irresistível e a fazer de Bonnie e Clyde personagens de romance. Quanto a Serge Gainsbour acertou em cheio: «De toute façon, ils n’pouvaient plus s’en sortir/La seule solution, c’était mourir/Mais plus d’un les a suivis en enfer/Quand sont morts Barrow et Bonnie Parker». Sim, a única solução era morrer.